Diário de uma atriz em confinamento e em criação

Processo de criação da peça Pandas ou Era uma vez em Frankfurt

30 de junho de 2020 Processos

Fui investigar agora e vi que começamos a nos falar, eu e Mauro Schames, sobre qualquer coisa aleatória, em 18 de março. Eu estava em casa, já em quarentena, desde o dia 16. Já tínhamos nos visto umas 4, 5 vezes. Temos as mesmas agentes. Já nos vimos em cena. Não éramos amigos. No dia 18 de março um perguntou pro outro:

– E você, tá bem de quarentena?

No dia 02 de abril já tínhamos lido pela primeira vez o texto A história dos ursos pandas (contada por um saxofonista que tem uma namorada em Frankfurt) de Matei Visniec, proposto pelo Mauro, cada um na frente do seu computador. Logo pintou um primeiro edital e nós dois batemos a cabeça fazendo testes de como iríamos nos filmar para propor esse texto ao edital do Itaú Cultural, que tinha inscrições abertas entre 06 a 10 de abril. Depois de algumas tentativas mal sucedidas de filmagens de trechos de cenas da peça, Mauro sugeriu sabiamente Bruno Kott para a direção. Eu nunca tinha ouvido falar nele e descobri, depois, que ele já havia me visto em cena. Bruno e eu nunca nos encontramos pessoalmente. E isso é incrível.

Bruno chegou com uma proposta muito clara. Tínhamos que diminuir o texto, pensando no tempo de real atenção do público, em casa, olhando para uma tela de um computador. Continuaríamos nos filmando via zoom, pois a possibilidade de usar os backgrounds nos interessava para a narrativa, mas ele tinha outros conhecimentos tecnológicos e uma proposta estética fascinante para essa história. Mergulhamos profundamente em ensaios diários, que duravam em média 4 horas. Tínhamos menos de uma semana para produzir uma filmagem de qualidade desse texto, que não fosse uma leitura, e sim uma verdadeira provocação. Falei com o autor Matei Visniec por e-mail, que respondeu prontamente, e mandou uma carta dizendo que estava de acordo com a nossa experiência, e que o texto era de fato muito propício para o momento absurdo que estávamos vivendo.

Terminada a maratona, com o vídeo pronto e a inscrição feita no edital, eu não consegui mais dormir. Não dá pra ser apenas isso. Não dá. Apenas um vídeo, eu não vou suportar. Eu quero fazer teatro on line, pegando ou não esse edital. Buzinei a cabeça dos meus pares. Disse que era urgente, que tínhamos que tocar o projeto. Isso era 10 de abril. Nossa proposta para o edital era exatamente o que fazemos hoje: experiência teatral on line com microfones abertos através do zoom.

A partir daí a gente começou a aprofundar o processo. Ensaios longos diários, estudo de texto, pesquisa de linguagem. Bruno nos conduziu com maestria. Fiquei perplexa com a destreza e a tranquilidade do cara. Tivemos crises, como em qualquer processo, eu duvidei muitas vezes da minha capacidade para me adequar a tantas mudanças. Sou uma atriz de palco, gosto do grande, uso o corpo, falo alto. Como manter a teatralidade inerente ao texto estando a um palmo de uma câmera? Foi árduo pra mim. Bruno domina cinema, ia pedindo a adequação, mas nunca abrindo mão do absurdo na interpretação.

A distância entre nós, o fato de que eu conhecia muito pouco os meus companheiros de trabalho, a interface do computador, a dificuldade de se expressar, vozes passando por cima de vozes. Me via lutando e falando alto na frente do computador pra me fazer entender. Algumas noites de choro, pensando: gente, vale a pena? É real isso que estamos fazendo? Muito trabalho diário. Muito estudo. Muita repetição.

Quatro semanas intensas até chegarmos na primeira abertura para o público. O corpo, acostumado que está aos procedimentos de estreia, pede alongamento, aquecimento, limpeza vocal (sem aquecimentos vocais para não estourar os ouvidos do público), maquiagem, rituais. Desço do meu quarto para o escritório, onde fica meu teatro particular. O público chega, o diretor o recebe serenamente no zoom e a experiência teatral se inicia.

Está sendo uma aventura doida, mas, acima de tudo, estimulante.

Foto de cena / Print de tela: Guto Muniz.
Foto de cena / Print de tela: Guto Muniz.

Estamos agora em 23 de junho, já fizemos mais de 20 apresentações, sempre com bastante público. Tivemos o privilégio de apresentar para o Matei, no dia 14 de junho, num horário possível para os amigos na Europa. Tivemos público de Londres, Paris, Bienne, Amsterdã, Porto, Lisboa, Dubai, NYC, Berlim, Colônia, Frankfurt, Bogotá, Cidade do México, Buenos Aires, Catamarca. Descobri na pele que esse tipo de teatro tem algumas qualidades. A possibilidade de atuar ao vivo para pessoas do mundo todo; o fato de sentirmos a respiração, ruídos e eventuais risadas do outro, por deixarmos os microfones abertos; o fato de podermos conversar ao final da peça com qualidade de escuta e intimidade com o público em casa. O fato de que o público, através do debate, também desenvolve uma intimidade entre si e pode manter a conversa depois, através das redes sociais. O participar de uma experiência teatral on line tem aproximado espectadores de uma mesma sessão.

Na primeira temporada, no mês de junho nós optamos por deixar 50% dos ingressos gratuitos e 50% dos ingressos com renda destinada ao Fundo Marlene Colé, organizado pela APTI de São Paulo. O amigo André Acioli, que assistira a peça ainda nos ensaios abertos, fez a ponte do Fundo com a gente. Foi ele também que nos apresentou ao Eduardo Pimentel, da Sympla, plataforma que optamos por utilizar.

Percebemos que a quantidade de pessoas que retirava um ingresso gratuito e não aparecia na sessão era alta. Muitas pessoas optavam por apoiar o Fundo Marlene Colé, o que muito nos alegrou. Doamos um total de R$1.575,00 ao Fundo que atende técnicos na base teatral: camareiras, contrarregras, assistentes de palco.

Foto de cena / Print de tela: Guto Muniz.
Foto de cena / Print de tela: Guto Muniz.

Na segunda temporada arriscamos a cobrança de ingressos a R$20,00, sabendo que uma porcentagem de R$2,50 fica para o site Sympla. Estamos seguindo dessa forma. Temos que entender como monetizar a nossa profissão. Percebemos que uma quantidade grande de público dos Pandas não era público teatral, não consumiam teatro com frequência. Estamos encontrando o nosso público. Está sendo uma grande aventura estar em cartaz em casa. Eu espero que continuemos indefinidamente. Eu espero que possamos encontrar parceiros que vejam nessa iniciativa uma forma de divulgação de suas marcas. Nosso pacto é continuar enquanto o público quiser nos assistir nesse formato. Mauro estaria em cartaz com Tectônicas, no SESI. Eu, provavelmente continuaria com Chernobyl, que foi tão bem até o final de 2019, e que se torna cada vez mais pertinente nos tempos de “ameaças invisíveis”. Bruno estaria tocando seus filmes e séries.

Estamos entendendo o nosso tempo através desses encontros. Num momento como esse, em que as pessoas se veem no mercado ou na farmácia utilizando máscaras, me sinto uma cidadã privilegiada, juntamente com os meus colegas, ao ter a possibilidade de um real encontro com pelo menos umas 500 pessoas que já passaram pelos Pandas desde final de abril. E mais privilegiada ainda de ter tido a oportunidade de conhecer e desenvolver uma amizade profunda e muito sincera com dois amigos e novos parceiros que a necessidade do isolamento social me trouxe.

Nicole Cordery é atriz e produtora. Mestra em Estudos Teatrais pela Universidade Paris 3 – Sorbonne Nouvelle.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores