A crítica sem juízo: entre o cânone e o consenso

25 de abril de 2016 Estudos

Vol. IX, nº 67 abril de 2016 :: Baixar edição completa em PDF

Resumo: Este ensaio tem por objetivo pensar o campo da crítica de arte nos últimos vinte anos. E, de modo especial, a crítica teatral diante do diagnóstico de esvaziamento e perda de força com que se depara, seja com a redução do espaço da crítica nos veículos de comunicação de massa, seja o lugar de estabilidade entre o cânone e o consenso que parece caracterizar os exercícios críticos recentes.

Palavras-chave: crítica, recepção, juízo estético, cânone, consenso

Abstract: This essay aims to discuss the field of art critique in the last twenty years. The discussion focus especially in the theater critic, faced with the diagnosis of the latest draining and loss of strength that confronts it, either by reducing the critical space in the mainstream media, either by the place of stability between the canon and the consensus that seems to characterize the recent critical exercises.

Keywords: critical reception, aesthetic judgment, canon, consensus

 

 

“O crítico é um leitor que rumina. Deveria, por isso, ter mais de um estômago.”

Friedrich Schlegel

À Flora.

 

Ficções críticas, derivas

Quando Flora Süssekind publicou, em 2010, “A crítica como papel de bala”, no caderno “Prosa & Verso” do jornal O Globo, houve um sismo no campo dos estudos literários no país. Isso porque o artigo de Flora, ao comentar os necrológios de Wilson Martins, falecido no mesmo ano, diagnosticava nestes escritos “reações de ressentimento nostálgico e certo proselitismo agressivamente conservador”, bem como a figuração do “crítico enquanto herói solitário e combativo”, com as vestes renovadas e glamourosas do especialista monotemático (SÜSSEKIND, 2010).

Ao evidenciar a retração e o conservadorismo hegemônico que marcariam os contornos da produção crítico-literária do país nos últimos anos, Flora apontava para a perda de densidade das discussões críticas, cujo baixo grau de tensão e conflito, no campo das ideias, reverberaria a idealização, os compadrios e os clichês cordiais que colonizam os exercícios críticos de veículos literários cada vez mais próximos da linguagem publicitária.

A diminuição das formas potenciais de dissensão e a resistência a qualquer interferência capaz de fomentar um campo ativo de intervenção não teriam por consequência apenas o desinteresse e a perda de lugar social da crítica. A crítica fecunda parece se retrair em face da crítica estéril, realizando ironicamente a figura do crítico como “o oráculo dos seus aduladores”[1] a que chamava atenção o jovem colunista do Diário do Rio, Machado de Assis, em 8 de outubro de 1865. Não é de estranhar que nesta mesma coluna, intitulada “O ideal do crítico”, Machado alerte para “o risco de naufragar nos mares sempre desconhecidos da publicidade” (ASSIS, 2015, p. 1080). E aponta a indiferença, o ódio e a camaradagem como as três chagas da crítica que se furtasse à tarefa analítica e meditativa, isto é, a de produzir juízos reflexivos nas discussões de que se ocupasse, seja ressaltando aspectos formais das obras, seja em sua inserção no campo ampliado das produções artísticas e da cultura.

O fato é que, hoje, há uma tendência na crítica de arte – e especialmente dos últimos vinte anos – em tentar neutralizar os aspectos propriamente crítico-judicativos em seus processos de análise. Nesse horizonte, duas vias hipotéticas podem ser esboçadas na tentativa de fundamentar este diagnóstico, que aponta tanto para a distensão dos debates, evidenciando um refluxo do campo da crítica no cenário artístico brasileiro, quanto para a supressão dos espaços formais de discussão nos veículos da grande imprensa, quase extintos, em detrimento dos guias semanais de artes.

Em primeiro lugar, é patente a transformação dos corpos discursivos dos exercícios críticos em vitrines expositivas de produtos aptos ou inaptos para o consumo de determinado público, cujas formas sintéticas planificam os textos em estruturas invariáveis, com léxico padronizado. Se a crítica aparece como instrumento e não como problema, isto é, como esforço de tematização dos objetos, de sua recepção e de sua força potencial, então sua função também se perde em meio aos encômios ou à cumplicidade de críticos que visam menos à análise das obras do que prestar favores a seus afetos ou, impositivamente, proscrever alguma produção[2].

A institucionalização do modelo crítico impositivo – notadamente na crítica jornalística –, sem dúvida, esteriliza as discussões críticas mais alargadas, aplainando tudo segundo fundamentos estéticos ocultos, ou, não raro, que festejam os extratos naturalistas e o mimetismo, sublinhando a “organicidade” das obras ou dados biográficos do artista – formas de inteligibilidade que persistem, para além de todos os movimentos de ruptura e de deslocamento do século passado.

A dificuldade de reinvenção e de expansão da potência interventiva da crítica, nesse sentido, se deve tanto ao esvaziamento espantoso da problematização (das formas, dos efeitos, do campo de atuação) quanto de uma análise mais alargada, que dialogasse não apenas com os aspectos formais e composicionais das obras e processos, mas também sociais, culturais e econômicos, tensionando o monopólio intelectual dos grandes veículos de difusão cultural, nos quais o espaço para diálogo e divergência é mínimo, senão inexistente, nos pequenos tijolos reservados à atividade crítica dos domingos ou das quartas-feiras[3].

Certamente, se poderia objetar que, em tempos de globalização e de facilidade de criação de suportes no universo das mídias eletrônicas, qualquer um pode, com três ou quatro cliques, forjar estes espaços de trânsito. Não se pode ignorar, todavia, que o alcance dos blogs especializados é ainda bastante restrito a grupos com interesses mais ou menos comuns, no interior dos quais circulam os textos, as críticas e onde ocorrem os debates. Por outro lado, o espaço diminuto e a baixa circulação da produção crítica parece antes o reflexo do que a causa da ausência de tensionamento e da perda de vigor dos conflitos no campo estético. Aqui, é preciso notar a predominância de um consenso estéril, que faz coro à cantilena da dissolução de ideologias, da globalização das ideias e da ausência de divergências no espaço público da crítica: o homem cordial reina soberano no campo das artes, onde os personalismos de toda espécie se unem à neutralização discursiva de uma voz atópica – que se pretende monotonamente unissonante.

Se “cada cabeça, uma sentença” aparece como a máxima daqueles que, indiferentes às discussões do século XVIII – e ao máximo expoente do trabalho de diferenciação, a Crítica do Juízo de Kant –, ignoram a distinção entre “gosto”, “preferência” e “juízo”, então, o que passa a vigorar é um relativismo farsesco[4]. A crítica, deste modo, não passaria de um guia de consumo, abundante em lugares-comuns e referências, que simulam uma erudição correspondente aos anseios, autores e obras apreciados pela classe média e pelos consumidores de arte – devidamente decodificada e pouco problemática, sem dúvidas.

 

Crítica-em-cacos

Mas a indústria da cultura não opera transformando somente os produtos de arte em objetos facilmente assimiláveis e compreensíveis para o grande público. Ela reduz o seu potencial crítico-contestatório em detrimento da diversão casual, leve e sem incômodos[5]. A crítica também apresenta os reflexos dessa indébita apropriação, com a valorização crescente dos espaços onde reinam a conformidade, o personalismo e a anuência do público-alvo, sedento pela novidade. Declarações de cunho emocional que visam a promover gostos pessoais e de classe; formas estabilizadoras; e múltipla adjetivação sem análise substantiva são algumas das operações frequentes mobilizadas pelo discurso da crítica hoje, segundo padrões prefixados.

Não é fortuito, desta feita, que, nesses últimos vinte anos, o refluxo e a retração dos debates tenham dado lugar ao elogio das formas antigas, aos resgates históricos, à celebração das cifras e a denúncia da crise das instituições culturais, transformadas pelos marchands em polos de negociação e de grandes leilões internacionais. A crítica adquire a função de referendar o canônico, quando não de promover lançamentos e reafirmar, via discurso crítico, que já não caberia mais a ela distinguir, selecionar, decidir, tal como indica sua etimologia. Sua prática, paradoxalmente, se torna reafirmação de um modo de apreciação exclusivo, cujo objetivo, parece, é criar um campo de compreensão ordenado, pautado pela defesa do gosto pessoal.

O esgotamento da forma crítica como valor estético, tal como conceitua Hal Foster[6], torna visível o colapso dos próprios critérios de julgamento e do ato do juízo, para os quais as categorias prontas e os conceitos estáveis não conseguem instrumentalizar as análises de obras que mesclam linguagens emergentes e intermídias, diferentes níveis discursivos, e desconcertam as definições canônicas das poéticas de gênero.

A “crise” da crítica, nessa perspectiva, é também sintomática por apontar a necessidade de expansão dos lugares de produção destas ferramentas teóricas, e a redefinição do papel das instituições universitárias, que, a todo custo, tentam se readequar ao mode d’emploi irregular dessas poéticas e estéticas contemporâneas, que embaralham as cartas e as categorias distribuídas outrora de modo tão inequívoco pelos departamentos.

Além disso, os novos agenciamentos e proposições representados pelas práticas curatoriais e museológicas operam, evidentemente, uma tensão no campo dos exercícios críticos, em direção à produção de outros horizontes de recepção, procedimentos discursivos e lugares de locução. Complexificação tipológica – até mesmo topológica – que, como nos lembra Mammì em O que resta, requer especial atenção para o fato de que:

A interseção entre vários níveis de operação (escolha do material, ma­nipulação, montagem, apresentação) é hoje mais intrincada. A autonomia da arte perdeu força, a obra tornou-se campo de embate entre diferentes planos de discursos — teorético, ético, estético. Mas não fomos eximidos de emitir juízos (MAMMÌ, 2012, p. 27).

Ao se confrontar com trabalhos de diferentes escalas, linguagens e materiais, caberia à crítica, portanto, a um só tempo, aproximá-los e diferenciá-los em sua singularidade e potencial crítico. Todavia, as divisões e fronteiras – que se questionam ou demarcam no embate com os objetos, por vezes, em vez de suscitar debates interdepartamentais, questionamentos dos modos de formalização e dos problemas operatórios e de categorização – são alvos da recusa cega, desqualificante, sem atentar para a complexidade da percepção e do ajuizamento – mormente em relação a objetos desestabilizadores, capazes de fazer ruir a solidez dos edifícios epistêmicos habituais.

Por esta via, a teoria e a crítica se retroalimentam, pois não há crítica nem teoria que não seja trabalho com materiais complexos, e, portanto, uma prática para a qual as distinções e as justificações são fundamentais. Se as regras estão dadas e as fórmulas “funcionam” sem que seu estabelecimento provoque qualquer atrito ou deslocamento, é sinal de que a estabilidade dos cânones epistêmico-discursivos e do instrumental analítico converge para a classificação nas categorias pré-estabelecidas e nas narrativas tranquilizadoras, definidas a priori e sem nenhum grau de tensão: “sem risca ou risco”, para lembrar o Museu de Tudo, de Cabral.

Essa calmaria não sinaliza, como se poderia supor, precisão e facilidade de tematização por parte do analista argucioso. Ela revela, antes, a tendência à redutibilidade de campos e perspectivas díspares, em nome de abordagens mais ou menos simétricas e conservadoras, segundo procedimentos facilmente reconhecíveis, como a estrutura de análise das críticas de Bárbara Heliodora, no Segundo Caderno de O Globo, e seu exame hierarquizado partindo do sobrevoo pelo autor/obra, passando pelo diretor e, finalmente, lançando um olhar sobre os atores e os elementos que compõem o espetáculo – mais estritamente, visando à produção de um sentido globalizante. Não é à toa que:

Quando os tempos políticos se mostram outros, e uma homogeneização impositiva parece barrar as cisões necessárias à experiência crítica do próprio tempo, quando já não se constituem, com facilidade, margens articuladas de resistência e situações definidas e consequentes de conflito, talvez seja mais fácil converter a crítica em operação reativa, disfuncional, mas virulenta, cujo motivo condutor passa a ser o retorno autocongratulatório a um passado de glórias, no qual os textos de intervenção podiam ainda provocar controvérsia, e o prestígio das Belas Letras enobrecia igualmente críticos e escritores (SÜSSEKIND, 2010, p. 2-3).

É curioso que o tom nostálgico dos tempos de glória diante da disfuncionalidade da crítica passe a ocupar hoje, de modo crescente, os escritos sobre a crítica. E se o lamento não se direciona somente para o período em que os espaços concedidos à prática de escrita crítica eram mais generosos, bem como os debates e as polêmicas, é ainda o olhar fixo – e melancólico – no passado que sublinha a dificuldade de criação de uma zona de trânsito e de interferência na vida pública, tal como Antonio Candido ou Décio de Almeida Prado o fizeram, para além da delimitação de seu próprio campo de atuação. Reterritorialização, portanto, a que escritores e críticos recorrem como última tentativa de impedir o que avaliam como fragmentação, dissolução expansiva e o abandono de formas clássicas. O que parece significar, ainda, baixa acuidade para problematização das formas, dos procedimentos intermeios e de lugares de atuação mais inventivos para a crítica.

 

“São farpas que saem dessa língua”[7]

A dificuldade de posicionamento da crítica atual, para além da institucionalização das formas críticas e dos apelos mercadológicos, é sintoma de um tempo em que “tomar partido” aparece por si só como um ato condenável. Como se, ingenuamente, a neutralidade fosse um atributo de distinção dos “bons” e dos “maus” críticos. Reflexo, é bem verdade, exposto pela própria cultura política brasileira, em que os consensos político-partidários e o jogo cristalizado de sujeitos e agentes políticos, sob o signo da simbiose, do mesmo e da repetição, aparecem como paradigmáticos – e sem que haja qualquer distinção entre politização e partidarização. Como pensar então o papel e o estatuto da crítica nesse espantoso cenário, em que falar em nome próprio e demarcar um lugar de fala tornou-se já condenável, por antecipação? Neste cenário de superfícies planas, em que os recortes, as narrativas e as práticas discursivas comuns conformam grande parte do pensamento crítico nacional, não é de estranhar que a democracia – por excelência, o regime do dissenso –, se confunda com a homogeneização e com o consenso. Há, por outro lado, significativo encolhimento do espaço comum onde apareçam as diferenças, pautado pela pluralidade de vozes e pela produção de dissenções no campo das artes.

É como se as obras, em nome de uma falsa liberdade, não fossem mais passíveis de ser julgadas. Não havendo mais nada a ser julgado, tudo é possível e ninguém deve ficar ditando regras. É justamente contra esse tipo de reducionismo que devemos defender a crítica, contra essa vinculação entre julgar e condenar ou enquadrar (…). Julgamos em nome do dissenso, e não do consenso (OSÓRIO, 2005, p. 9).

Liberada do juízo de valor, a crítica não perde somente a força, mas a função social e estética, o caráter interventivo e a possibilidade de expandir os horizontes e os espaços de pensamento no âmbito da cultura e da produção contemporânea. A complacência com os objetos e a tentativa reiterada de apagamento do traço (do) crítico transformam o modo de operação da crítica em prática domesticada, caracterizada por enunciações consensuais e por uma economia discursiva padronizada, destinada a circular por espaços confortavelmente definidos e estratificados. Não raro, na recusa do ajuizamento, indicam produções entrincheiradas na autorreferencialidade segregadora, incapazes de reverberação no interior de um campo, de criação de espaços de produção e de modos de circulação mais amplo para as artes.

O fato é que, para alguns curadores, críticos e produtores de arte, essas questões já não aparecem mais, na medida em que, colonizada pelas exigências institucionais, fazer crítica tornou-se sinônimo de expor os produtos de forma elegante, ou ainda, coisa do departamento de “propaganda e marketing” – crítica-release –, conferindo às exposições, às mostras e aos festivais um título atrativo e um catálogo com algumas citações de artistas célebres. No campo teatral, particularmente, alguns críticos se especializam na escritura de resenhas de grupos determinados ou de temáticas, retirando-lhe o caráter exploratório, o deslocamento de sentidos e, por conseguinte, no que concerne à escritura e à recontextualização de linguagens e práticas artísticas, a percepção de suas alterações formais à medida que se confrontam com obras e processos de criação que exigem repensar o próprio exercício crítico. O que levaria Meschonnic, em “Silêncio: linguagem”, a atentar para o fato de que “vemos em torno dela [a crítica] a polêmica, o resenhismo, as sociedades de elogio mútuo. A escritura é sempre crítica, por necessidade vital, para descobrir sua própria historicidade” (MESCHONNIC, 2006).

Evidentemente, não significa aqui execrar o mercado, como se, por si só, ele desestabilizasse qualquer tentativa de pensamento, desvinculado das relações comerciais e dos interesses econômicos. Trata-se, porém, de estabelecer um limite entre a crítica autônoma, com dimensão reflexiva, e o comentário propagandístico, meramente apelativo, descritivo e informativo. Informativo que Barthes chamaria de “A crítica ‘nem-nem’”, em Mitologias (2012), que “recusa o engajamento” e que “não emite juízo”, mas louva euforicamente o “estilo” do escritor, na “afirmação personalista, sob a forma de crônicas e de resenhas de fácil leitura” (SÜSSEKIND, 2014).

Se, por um lado, este processo de retraimento muito se deve à dificuldade de estabelecimento de espaços de discussão que reflitam as operações de ajuizamento das obras em veículos de ampla disseminação, como os jornais, por outro se nota nos próprios mecanismos da crítica e nos discursos de artistas uma diluição valorativa em nome de uma suposta “liberdade irrefreável – e invalorável – de criação”, para a qual a crítica seria ilegítima ou estaria sempre aquém como discurso eminentemente normativo da obra. Por isso, proliferam os discursos – repetidos à exaustão – que condenam a crítica, os críticos e os teóricos, “todos da mesma estirpe”, dizem, condenados aos mares gélidos da chatice institucionalizada, inerte e abstrata de quem “fala, fala, fala, mas seria incapaz de melhor fazer”.

Não é de estranhar, nesse sentido, que as querelas que se travam no interior das próprias produções universitárias se polarizem entre aqueles que denunciam a tendência algo “policialesca” da crítica acadêmica, e aqueles que mapeiam nas produções artísticas e culturais das instituições o enfraquecimento das práticas experimentais e instabilizadoras, em detrimento de trabalhos que repetem fórmulas serializadas e arcaísmos. Ora acusada de proximidade com o autoritarismo, ora condenada ao estatuto de discurso estéril, a crítica dos espetáculos, por exemplo, frequentemente se depara com o discurso que pretende deslegitimá-la, como coisa de gente disposta a “criar problema e polêmica”, ali onde tudo está apaziguado e tranquilo, sob os auspícios dos financiamentos privados e do glamour refletido na afluência do público.

A tendência acrítica – e anti-intelectual vigente – rejeita a discussão e o debate, na recusa obstinada de qualquer ajuizamento. Problematizar os processos e as produções acadêmicas se converte, nesta via, em “sufocamento das liberdades individuais de criação”, como se a reflexão crítica, com seus sismos imprevisíveis, pudesse fazer ruir os privilégios desfrutados por grupos que, atuando não raro em instituições públicas de ensino, pesquisa e extensão, não mascaram o intento de privatizar espaços e de neutralizar, pela via da polêmica personalista, as tentativas de indagação dos processos, das operações e das escolhas em suas produções.

A diferença entre o ajuizamento e o enquadramento em normas inflexíveis parece se esboroar nas vozes dos que denunciam a censura à liberdade de expressão por parte dos críticos pernósticos. Juízos, todavia, não são sinônimos de condenação. E se o ajuizamento não ratifica o já sabido é justamente porque lida com o que está em processo de criação e com seus modos de recepção e de enunciação. Ao nomear o que não se conhece, ou no ato de produzir valor semântico, o exercício judicativo, nos antípodas do que se imagina, se coloca em contato com a diferença, com a singularidade das obras e com o dissenso público. O que evidencia, ainda, a dimensão política da crítica. Segundo Rancière:

A escolha desse termo [dissenso] não busca simplesmente valorizar a diferença e o conflito sob suas diversas formas: antagonismo social, conflito de opiniões ou multiplicidade das culturas. O dissenso não é a diferença dos sentimentos ou das maneiras de sentir que a política deveria respeitar. É a divisão do núcleo mesmo do mundo sensível que institui a política e sua racionalidade própria. Minha hipótese é portanto a seguinte: a racionalidade da política é a de um mundo comum instituído, tornado comum, pela própria divisão (RANCIÈRE, 1996, p. 368, grifos meus).

A abertura para campos de leitura mais amplos e menos direcionados – como blocos monolíticos –, contra interpretações restituidoras de significações prontas e últimas, talvez seja um dos grandes desafios da prática crítica de hoje enquanto inflexão especulativa. A instituição deste comum marcado por suas divisões, igualmente. É preciso inventariar o que pode – não no sentido de seleção/exclusão normativa, mas de potência – a crítica hoje e sua função no sistema de produção e circulação de arte, malgrado os reflexos da investida mercadológica em seu campo. Mesmo estas incursões trazem a exigência de repensar seu modus operandi e sua forma de apresentação, pois não se trata de “digestão acelerada da obra” ou de uma função de mediação entre os artistas e seu público, mas de exercício criativo, que reinscreve a obra em sua relação com outras produções e, segundo Josette Féral, leva o crítico a:

rastrear, no campo cultural escolhido, as linhas que delimitam os movimentos, as tendências e correntes artísticas que ele tenta identificar e, algumas vezes, nomear, contribuindo, através de suas leituras e observações, para o surgimento destes movimentos (FÉRAL, 2008).

Na tensão de ter que se redefinir constantemente, a crítica, no entrechoque de suas recepções, na espessura de sua própria atividade e na pluralidade das perspectivas teóricas que inflexionam seu exercício, pode angariar novos espaços de legibilidade e romper com as injunções homogeneizantes das vozes consoantes, sem potencial de instabilização e de interferência, cuja ressonância hoje evidencia senão a própria afonia.

Nesse sentido, as noções de “deslocamento crítico”, de “ajuizamento”, de “valoração” e de “fronteira” têm se mostrado figuras ainda pertinentes e operatórias para esta discussão, articuladas ao debate em torno da cultura e da produção artística, dos procedimentos, das estéticas e das poéticas que propõem outros modos de legibilidade e valoração no campo das artes.

 

Toda mudez será castigada

O trânsito entre a crítica ensaística, a literatura e práticas artísticas múltiplas parece estabelecer, assim, zonas de contato mais porosas e móveis, no diálogo entre linguagens, gêneros e espaços críticos. Trânsito, ademais, de uma crítica em interlocução com seu tempo, com os campos de força e com as linhas de fuga possíveis para além dos consensos e da estabilidade em que tem permanecido nos últimos anos – neutralizando sua verve crítica e suas forças expansivas, não raro, em nome dos exercícios de escrita encomiásticos[8].

O cânone e o consenso: os dois extremos inférteis para a crítica. O cânone impede que se alcem voos mais ousados, libertos das referências sacrossantas reconhecidas por uma tradição, embora a relação da crítica com o campo histórico seja imprescindível. O consenso, por sua vez, homogeneíza as vozes que se plasmam num uníssono ensurdecedor – uníssono de um silêncio de vozes que, compulsivamente, reiteram o mesmo, sem margens, ecos ou distorções.

Discutir o funcionamento dos operadores críticos capazes de tensionar o campo da crítica de arte é indispensável para iluminar o debate acerca das fronteiras discursivas, dos espaços conflituais e dos trânsitos entre registros, textualidades e vozes complexas, quando se problematizam as fronteiras e as especificidades das artes. Importante ressaltar, nesse sentido, a realização do Simpósio Crítica & Indisciplina[9], ocorrido na UNIRIO, em outubro de 2015, com Flora Süssekind, Silviano Santiago e Ronaldo Brito. A proposição de pensar o campo da crítica como importante modo de agenciamento das enunciações nas artes em geral e no diálogo das obras com sua contemporaneidade, bem como as condições de seu exercício e seus meios neste cenário, mobilizou o encontro. Com o objetivo de traçar linhas de contato entre a crítica de intervenção e o mapeamento, no campo das artes, das produções capazes de produzir disjunções, a conversa se pautou pela problematização dos meios, dos procedimentos e dos deslocamentos no campo da crítica. Operação, cabe assinalar, que requer análise, redefinição conceitual e compreensão histórica para firmar seu potencial interventivo. E, não se pode deixar de notar, os trabalhos de Flora, Silviano e Ronaldo dão mostras inequívocas da intensificação deste potencial, com alto grau de tensão e força disruptiva em seus escritos.

É fundamental para a crítica que se pretende realmente interventiva tornar legíveis certos aspectos das produções, como via criadora, capaz de deslocar olhares, propor associações reflexivas, diálogos com outras produções artísticas e com a história da arte, para além dos próprios objetos. Talvez seja este o imperativo categórico da crítica de arte hoje, em um momento no qual assumir uma posição crítica ainda é o grande desafio em face da “cafonice” estagnatória, da diluição diarreica e da “convi-conivência” farsesca que nos paralisa – já apontadas por Hélio Oiticica, desde a década de 70, como traços marcantes da “cultura” brasileira.

Exigência, portanto, do mergulho em nosso presente histórico e da recusa da tarefa crítica como discurso institucional de uma obra ou de um artista, sob o risco de se configurar como crítica sem qualquer densidade discursiva, cujo destino é desembocar na superfície incapaz de inaugurar novos horizontes e de propor associações reflexivas. Como no verso de Char, “aquilo que vem ao mundo para nada perturbar não merece respeito nem paciência” (CHAR, 2008, p. 7).

Referências bibliográficas:

 

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Diego Reis é doutorando em Filosofia no PPGF/UFRJ, mestre e licenciado em Filosofia. Bacharelando em Teoria do Teatro/UNIRIO.

 

Notas:

[1] ASSIS, M. O Ideal do Crítico. In: ____. Obras Completas. Vol. III. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 2015.

[2] É Foucault em entrevista a Christian Delacampagne, em 06/04/1980, publicada no Le Monde-Dimanche sob o título de “O Filósofo Mascarado” [Le Philosophe Masqué], quem sugere, para além dos moldes estáveis dos exercícios críticos de seu tempo, uma crítica interventiva, cujo potencial de criação e imaginação faria “acender fogos”, pois: “reproduziria (…) sinais de vida; invocá-los-ia, arrancá-los-ia do seu sono. Quem sabe os inventaria? Tanto melhor, tanto melhor. A crítica sentenciosa faz-me atormentar; gostaria de uma crítica feita com centelhas de imaginação. Não seria soberana, nem vestida de vermelho. Traria consigo os raios de possíveis tempestades”. FOUCAULT, M. “Le Philosophe masqué”. In: _____. Dits et écrits II, 1976-1988. Paris: Éditions Gallimard, 2001, p. 923-929.

[3] Como sublinha Costa Lima: “É conhecido o papel que desempenhavam os suplementos de cultura. Era através do que neles se publicava, das possíveis polêmicas aí travadas, que o público leitor, já por si bem restrito, era informado do que circulava no plano das ideias. Ora, ou eles foram suprimidos ou encolheram de modo que suas resenhas são quase meros anúncios de títulos recentes ou se converteram em informativos publicitários”. LIMA, L. C. Frestas – a teorização em um país periférico. Rio de Janeiro: Editora Contraponto/PUC-Rio, 2013.

[4] Cf. KLINGER, F. “Sobre o juízo – a fundação epistemológica da crítica”. In: SÜSSEKIND, F. et alli (orgs.). Crítica e Valor: seminário em homenagem a Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2014.

[5] Segundo Adorno e Horkheimer, “quanto mais firmes se tornam as posições da indústria cultural, mais sumariamente ela pode proceder com as necessidades dos consumidores, produzindo-as, dirigindo-as, disciplinando-as (…)” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 119).

[6] Cf. FOSTER, H. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

[7] Danilo Bueno. “De Dia Útil”. Microantologia de poemas. Pessoa – Revista de Literatura Lusófona. Set 2014. Disponível em: http://www.revistapessoa.com/wp-content/uploads/2014/09/Danilo-Bueno-microantologia.pdf. Consultado em 20/01/2016.

[8] É interessante, nesse sentido, o comentário de Raúl Antelo, em entrevista ao site Interartive, de abril de 2014, quando ressalta a homogeneização de vozes promovida pelos consensos: “Não se contentar com o consenso tem uma dimensão ética, porque acaba de algum modo nos angustiando. O crítico que não se angustia não me interessa. Se eu ou o artista, ou alguém na cena contemporânea não se angustia, sinceramente não me interessa, porque quem não se angustiar só vai poder desenvolver um discurso cínico”. Disponível em: http://interartive.org/2014/04/entrevista-raul_antelo/. Consultado em 20/01/2016.

[9] Organizado por mim e por Rodrigo Carrijo, o Simpósio Crítica & Indisciplina ocorreu em 6 de outubro de 2015, na Escola de Teatro da UNIRIO. A participação dos convidados, bem como das intervenções por vídeo, foram essenciais para o debate que aconteceu sob a mediação de Manoel Ricardo de Lima e Kelvin Falcão Klein. Além de Flora Süssekind, Silviano Santiago e Ronaldo Brito, participaram Raúl Antelo e Márcio Seligmann-Silva, por meio de registro audiovisual.

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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