A obra de arte julga: o crítico no cambiante cenário teatral

Tradução de Daniele Avila Small do artigo de Josette Féral

10 de abril de 2008 Traduções

Este artigo foi publicado originalmente em inglês, em novembro de 2000, na revista New Theatre Quarterly (NTQ 64, VOL XVI, PART 4). Josette Féral é crítica, teórica e professora na École Supérieure de Théâtre de l’UQAM, em Montréal, no Canadá, desde 1981.

“Os críticos julgam a obra de arte e não se dão conta de que a obra de arte julga os críticos.”
Jean Cocteau

O exemplo do esporte: A Copa do Mundo de julho de 98

Domingo, 12 de julho de 1998. A final da Copa do Mundo traz a França contra o Brasil. A França está ganhando de 3 a 0. Em poucos minutos, o jogo vai acabar. Pela primeira vez na História, contra todas as previsões dos críticos de esporte, a França está quase ganhando o jogo e, assim, entrando para o clube muito seleto de vencedores da Copa do Mundo. A exaltação do povo francês é sem precedentes: com um milhão e duzentas mil pessoas no Champs Elisées, a França se identifica totalmente com este time a que chamam “Les Bleus” e que reúne jogadores brancos, marrons e negros. 

No entanto, logo depois que termina o jogo, todos os canais da televisão francesa começam a transmitir a imagem da raiva de Aimé Jacquet. Apesar de ter vencido, o que o agrada, ele é duro com os críticos – e particularmente com os críticos do L’Equipe, jornal esportivo que é lido por praticamente todos os adeptos do esporte. Durante o período de dois anos de treinamento da Seleção Francesa de futebol, os críticos de esporte criticaram implacavelmente cada manobra de Jacquet. Denunciaram o que consideravam sua incompetência, as escolhas erradas que ele supostamente fez ao escalar o time, sua técnica de treinamento… Em outras palavras, de acordo com críticos e jornalistas – e especialmente de acordo com aqueles que trabalham para o L’Equipe – Aimé Jacquet não era qualificado. “Um bando de patifes”, rosnou Jacquet na noite da vitória quando falava sobre os críticos, reafirmando sua opinião alguns dias depois em termos igualmente peremptórios: “O título de vencedor da Copa do Mundo deve ser uma recompensa para aqueles que trabalharam duro e não para aqueles que se aproveitam das circunstâncias, os parasitas que ficam rodeando o futebol profissional e se refestelam com ele.”

É claro que aqueles que “se refestelam” são os críticos e os jornalistas. Durante dois anos, Aimé Jacquet se esforçou para permanecer longe deles e, durante o período de dois meses de jogos, durante as oitavas de final, as quartas de final, a semifinal e a final, ele se recusou a ler o que escreviam. Ele se colocou fora do alcance da mídia e da imprensa, com o seguinte resultado: a Seleção Francesa venceu, validando o trabalho do técnico e suas escolhas, desmascarando as asserções dos críticos que impregnaram todo o período de treinamento, até os primeiros jogos. Eles estão, agora, reduzidos ao silêncio. Fim da história.

O argumento da minha leve digressão para a esfera do esporte é que esta perspectiva ilustra, de maneira breve e clara, o ponto de vista comum do artista diante da crítica. Obviamente, tal paralelo aproxima o esporte e a arte. Ele afirma – ou reafirma:

  1. A convicção compartilhada por artistas e esportistas de que a ação (realizada por “aqueles que trabalharam duro”) é superior ao comentário parasita (feito por aqueles que “se refestelam”),
  2. A distância que algumas vezes – senão freqüentemente – joga o crítico contra o público. No caso da Copa do Mundo, o público nitidamente tinha fé no seu time desde o início e esta fé passou a ser insuflada nos próprios jogadores. Se o público está a favor e os críticos estão contra, em nome de quem os críticos falam? Eles simplesmente representam a si mesmos ou falam em nome do público, tendo em vista que eles deveriam ser os “cães de guarda da sociedade”?
  3. A necessidade de apontar a questão do papel do crítico: ele deve comentar, analisar, julgar o que observa? Ele deve sentir alguma empatia pelo trabalho do artista (ou do esportista)? Ele deve, pelo contrário, se manter de fora do empreendimento sem tentar entender as várias etapas que levaram a tal estágio? Ele deve se contentar com a análise dos resultados, colocando-se distante e superior a tudo, como um espectador “objetivo” que ele pretende ser? Ou, assumindo a postura oposta, ele deve se envolver e arriscar oferecer uma opinião, que é necessariamente subjetiva? Quanto espaço ele deve dar para análises detalhadas e para críticas apaixonadas, tendenciosas, calcadas em reações instintivas?

Este primeiro exemplo, embora seja uma boa analogia, é específico do esporte e não pode ser aplicado à esfera da arte. De fato, se as posturas são tão bem delineadas no caso do esporte, é porque tudo sempre termina em vitória ou derrota. A vitória da Seleção Francesa dá crédito para que Aimé Jacquet tenha o direito de ser áspero. Sua vitória lhe confere uma validação, justifica seus métodos, suas estratégias. O fato de ter vencido lhe permite silenciar a crítica.

Na esfera da arte as coisas nunca são assim: um diretor de teatro nunca vence de forma tão espetacular. Mesmo quando a platéia aplaude de pé e vai para casa entusiasmada com o espetáculo, isso não desbanca o crítico. Ele pode suspeitar desse apoio incondicional, dessa exaltação em massa, e começar a explicar o fenômeno. Essa reação não impede que o crítico tenha o seu próprio ponto de vista. Um sucesso unânime nunca desmascara completamente a crítica – de forma que mesmo se Aimé Jacquet fosse um “vencedor” no âmbito da arte, ainda seria possível provar que ele estava errado. Além disso, um fracasso amargo pode ser avaliado como um sucesso pelos críticos. Afinal de contas, obras de vanguarda são muitas vezes ignoradas pela maioria… A questão do papel do crítico hoje é, portanto, uma questão legítima, assim como a questão das outras funções que também podem ser suas.

Segundo exemplo: Setembro de 1983, a classe artística contra a crítica

No dia 16 de setembro de 1983, Robert Lévesque escreve uma crítica de Visite Libre, de Michel Faure, produzida pelo Théâtre de Quat’sous. Ela é publicada no Le Devoir, um jornal cuja coluna de teatro era chefiada pelo próprio jornalista. A crítica é severa. A classe artística, geralmente crítica com relação à crítica, está ofendida com o artigo, que é considerado violento e injustificado. É tomada a decisão de boicotar o jornal: suas páginas não serão mais utilizadas para publicidade e nenhum convite ou entrevista serão concedidos aos seus críticos. 156 artistas e técnicos fazem um abaixo-assinado que denuncia os caprichos do crítico, seu tom freqüentemente severo e sua crítica sarcástica. O debate fica ainda mais inflamado. Todas as pessoas envolvidas com teatro reagem. O público toma partido e envia cartas denunciatórias, muitas vezes descascando os artistas. Alguns jornalistas tiram vantagem da situação para revidar velhos rancores e descontam sua frustração na classe artística. Eles denunciam a insegurança visceral dos artistas, falam de uma “horda raivosa” e ainda acusam a complacência dos críticos que concedem uma quantidade significativa e às vezes injustificada de publicidade gratuita para artistas – aquelas almas atormentadas que não hesitam em pedir apoio ao governo e mesmo assim se recusam a prestar conta disso. O debate afeta todos os críticos: um deles, que acabara de concluir uma crítica de As bruxas de Salém, chega a receber uma boneca de vodu pelo correio, perfurada de agulhas.

O caso vai enfraquecendo aos poucos, os teatros retiram seus ataques aos críticos, enquanto os críticos vão restabelecendo um grau de serenidade num debate que acabou ficando passional demais.

Essa crise, que acabou se tornando uma espécie de performance coletiva, evidencia mais uma vez o desconforto generalizado da classe artística diante da crítica, que é tolerada, mas não verdadeiramente aceita, especialmente quando ela é negativa. Artistas de teatro têm dificuldade para aceitar o fato de que o crítico não é apenas um mediador auto-designado do seu trabalho, mas também uma pessoa que pode fazer acusações públicas contra ele. De todo modo, eles enaltecem a crítica quando ela é positiva, são tolerantes quando ela é neutra e rejeitam com veemência a crítica negativa.

Todo discurso sobre teatro é precário

Estes vários exemplos contribuem para ilustrar o fato de que o discurso sobre teatro – e sobre as artes em geral – é precário. Ele mascara duas questões fundamentais:

  1. Quem concede ao crítico o direito de falar sobre a obra de arte? Em que termos? Para quais efeitos e em nome de quem ele fala?
  2. Como se pode falar de uma obra de arte? O que se pode dizer? Como se pode traduzir em palavras o que pertence ao “fazer”?

Tais perguntas indicam que o “entendimento” que temos do termo “crítica” parece adequado, mas isso é ilusório, uma vez que este termo abrange duas realidades distintas: uma que aborda a crítica como um horizonte de expectativas e outra na qual ela é uma prática da vida cotidiana.

Primeiro, vamos estabelecer que as práticas artísticas, críticas e teóricas são, essencialmente, três formas de traduzir o mundo. O artista traduz para a arte a sua visão de mundo, o crítico traduz em palavras sua visão de arte, o teórico traduz em palavras a sua visão de prática. Afirmar que a arte é a tradução das coisas é afirmar que todas as formas de arte são críticas delas mesmas e por elas mesmas, que a arte provoca pensamento. Uma observação de Antoine Vitez afirma que aquilo que o diretor realiza em primeiro lugar e antes de mais nada em seu trabalho é uma espécie de tradução. Tal observação tem sua origem na visão de Aristóteles, na Poética, de acordo com a qual o poeta “pode imitar por narração”.

Assim como em toda tradução, a pergunta que deve ser colocada com relação à crítica diz respeito à natureza da tradução que ela opera. Ela vai ser uma tradução fiel da obra de arte na forma de um registro ou de um comentário sobre os procedimentos do artista? Deste modo, o crítico vai trabalhar a partir da empatia pelo artista, entrando em seu mundo, explorando seu processo de trabalho, suas intenções, destacando seus objetivos, independentemente do resultado final. O crítico vai fornecer um estudo semelhante a uma leitura tautológica da obra, ou seja, um espelho que quase não distorce a imagem e, assim, vai se constituir apenas como mais um elo na corrente que leva a obra até o público, assegurando, desta forma, que o laço que conecta o artista e o espectador é operacional.

Se a sua função é recontar, comentar ou preservar um traço escrito da obra, o crítico vai se contentar em ecoar obras de arte num estilo erudito que é, no entanto, necessariamente insuficiente. Se o crítico se torna o porta-voz do artista, a personalidade do crítico, sua própria identidade, vai desaparecer na sombra do processo criativo sobre o qual ele escolheu lançar alguma luz. Embora este trabalho crítico seja necessário, ele também é limitado e é possível questionar se esta é realmente a função da crítica.

A segunda forma de tradução de uma obra de arte é aquela que tem uma concepção mais analítica, mais crítica, e que, portanto, está fadada a distorcer as coisas. “É possível traduzir sem trair?” é uma das perguntas feitas pelos especialistas em tradução. Esta pergunta também é relevante para a esfera da crítica. Toda crítica é uma traição. Mas como poderia ser diferente? No mundo atual, o crítico não pode simplesmente perceber a obra de arte de maneira inocente. Para extrair sentido dela, ele precisa olhá-la numa perspectiva mais ampla, global: ele precisa se referir ao processo do artista como um todo, localizá-lo num movimento estético, desvelar a trajetória do artista e contrastá-la com as correntes artísticas predominantes. De algum modo, ele deve reescrever a obra a seu modo e mostrar a originalidade (ou falta de originalidade) dela, de forma que esse trabalho possa entrar em relação com outras obras e, assim, encontrar o seu lugar no desenvolvimento da história da arte. Uma crítica que não tenha como objetivo realizar uma construção analítica e teórica não passa de um espelho pálido da realidade artística. Não cumpre, portanto, a sua função.

Quando esta função tem um alcance maior (e este é o caso das artes plásticas, mais do que do teatro), ela leva o crítico a rastrear, no campo cultural escolhido, as linhas que delimitam os movimentos, as tendências e correntes artísticas que ele tenta identificar e, algumas vezes, nomear, contribuindo, através de suas leituras e observações, para o surgimento destes movimentos. Poderíamos citar, por exemplo, os escritos de Clement Greenberg, Rosenberg e até mesmo Baudelaire ou Diderot no campo da pintura. Eles conseguiram, a seu modo, apontar o que os próprios artistas não viam nas suas práticas, mostrando como se encaixavam nos grandes movimentos estéticos que movimentavam o mundo em que viviam, revelando correntes que a história passou a usar como marcos no desenvolvimento da história da arte.

Na esfera do teatro, certos pesquisadores cumpriram essa tarefa, mas o escopo dessa realização não foi tão abrangente quanto o alcançado pelos que estudaram artes plásticas. Max Herman na Alemanha, Yan Kott na Polônia, Martin Esslin nos Estados Unidos e, particularmente, Bernard Dort na França são alguns exemplos daqueles que delinearam e decodificaram obras de teatro, fazendo assim uma leitura da história do teatro possível no seu tempo, prevendo novos movimentos e analisando todas as práticas contemporâneas, ao mesmo tempo em que integravam tais práticas na perspectiva mais ampla do estudo de uma determinada área: teatro, artes plásticas, música, cinema… Bernard Dort permanece como um modelo no gênero teatral, pelo seu pensamento analítico afiado, seu conhecimento profundo do teatro, seu desejo de desenvolver uma reflexão sobre a história e pela arte da sua escrita. Sua crítica analítica, que foi publicada tanto em jornais como em periódicos especializados, continua sendo uma grande referência até hoje. Esta vitória da crítica sobre o tempo é o principal sinal de sua pertinência.

Numa escala menor, outros críticos como Bonnie Marranca e Theodore Shank tiveram êxito, a seu próprio modo, ao nomear várias correntes artísticas que delinearam os principais eixos usados para desenhar um mapa do teatro atual: o teatro de imagens, o teatro alternativo… Um trabalho como esse unifica o universo da prática e resulta na feitura desta cartografia. Sem esse trabalho, a cartografia permaneceria um mosaico dentro do qual a prática de cada um simplesmente se somaria com a de todos os outros. E mesmo a partir dessa multiplicidade, nenhuma leitura geral, necessária, seria capaz de surgir, de forma que cada obra ganhasse um novo sentido na relação com uma totalidade mais vasta.

É, portanto, necessário que a crítica de hoje reflita sobre a arte contemporânea, induza o surgimento de novos conceitos, identifique correntes que ofereçam pontos de referência para as pessoas e contribua para a feitura da história da arte.

Não é preciso dizer que, para cumprir a sua função, a competência do crítico de hoje é necessariamente diferente daquela de algum tempo atrás. Ela requer bastante conhecimento teórico, estético e artístico. E é claro que ela demanda uma competência crítica diferente da que é normalmente exigida. O crítico deve ser analítico e possuir o conhecimento de um especialista na área que ele escolheu explorar. Dotado de uma visão mais ampla que o artista – que está preso pela rede da sua própria forma de arte – o crítico deve ser capaz de se elevar acima do campo cultural dado, com o objetivo de fazer a análise a partir de uma distância. Ele deve, portanto, ter uma visão.

“O crítico que está vivo é aquele que já determinou para si mesmo o que o teatro poderia ser”, diz Peter Brook, “e que ousa questionar esta fórmula a cada vez que toma parte em um evento.”

As novas demandas da crítica são provavelmente as razões pelas quais é mais fácil, hoje, construir uma ponte sobre a lacuna entre as críticas jornalística e acadêmica. De fato, muitos pesquisadores praticam os dois tipos de crítica, de acordo com o tipo de publicação para a qual estão escrevendo seus artigos. A crítica acadêmica perdeu sua soberba e passou a ser menos esotérica, enquanto a crítica jornalística pretende ser menos superficial. Esta é a imagem da crítica que se pode desejar. Ainda assim, a realidade da profissão está muito distante deste quadro.

Descrevendo, interpretando, julgando

De fato, segundo o uso corrente, o crítico é aquele cuja leitura da obra de arte é, supostamente, “iluminada”, no sentido da palavra que remete ao século XVIII. Não se trata de fornecer uma leitura comum, mas de dar uma leitura informada, analítica, documentada. Atuando como um primeiro filtro do espetáculo, ele informa o espectador, esclarece a obra, recoloca o texto no seu contexto literário, alude à direção, à atuação, à cenografia. Parte do trabalho preparatório é feito para o espectador através deste filtro. Para cumprir uma tarefa como esta, o crítico deve ter muito discernimento, de forma que ele deve ser capaz de especificar e nomear coisas. Assim, ele aponta as obras que merecem atenção. Seu trabalho geralmente termina neste ponto. É raro que ele leve sua análise adiante, sugerindo novos caminhos de investigação, localizando a obra num contexto histórico e estético mais vasto.

A crítica Solange Lévesque fez uma observação sobre o seu trabalho, dizendo que, para ela, tratava-se de uma questão de “recepção e análise da obra teatral, que usa antes de mais nada a si mesmo como um instrumento que se permite vibrar na forma mais verdadeira possível.” A frase parece bastante apropriada quando aplicada à concepção mais difundida de crítica. Ela revela o que constitui o perigo da crítica (mas também a sua grandeza): a subordinação da crítica à personalidade do crítico.

Tal concepção às vezes gera a impressão de que a crítica não envolve riscos e que sua expectativa de vida é ilimitada. Rapidamente consumida, ela deixa pouco para trás. Ela só é útil como uma reação instintiva a determinado espetáculo. O crítico, então, parece ser o “cão-de-guarda” da sociedade, encarregado de nomear seu prazer e seu enfado e de ser, portanto, uma caixa de ressonância a que os espectadores devem recorrer.

Mas ele pode realizar muito mais. Embora o crítico de hoje não precise mais responder à pergunta “O que é a arte?”, o que antes era fundamental, ele pode procurar por obras que não podem ser totalmente apreendidas pelo discurso, que permanecem enigmáticas, obras que ele perceba que não podem ser completamente explicadas pela sua análise. Ele pode tentar mostrar que elas são obras abertas e abrir suas portas.

Esforçando-se para evitar dois perigos que estão à sua espreita – o dogmatismo e o impressionismo – ele pode tentar fisgar a causalidade entre a forma e o efeito que ela produz, entre a sensação, a emoção, e sua causa. Enquanto persegue estes objetivos, o crítico pode usar a trajetória do artista para desenvolver sua própria exploração da obra de arte, sem tomar o seu lugar e sem ofuscá-la. Ele deve encontrar um equilíbrio delicado entre a originalidade dos seus próprios processos de pensamento e o respeito pelo trabalho do artista, assegurando que a obra fique visível através do filtro da sua análise.

Isso requer que ele desenvolva um “processo atlético de pensamento” para desvelar a significação total de obras para além do seu sentido inicial e imediato, para nomear formas, de modo que elas sejam “reconhecíveis”. Em outras palavras, sua abordagem, assim como a do artista, pode ser ou deve ser criativa. Os melhores críticos são, certamente, aqueles que desenvolveram seus próprios modos de pensar, que são criadores, pesquisadores, ensaístas. Assim aderimos à opinião de Peter Brook sobre o assunto. Uma visão tão idealista é, infelizmente, muitas vezes turvada por uma realidade bem diferente e por uma luta de poder que está para além do artista e do crítico.

Crítica: um vasto campo de práticas e idéias

Na verdade, a realidade prática é bem diferente. Pode-se notar que a profissão do crítico transita entre um discurso complacente e tautológico sobre a obra de arte, dentro do qual ele encena um discurso auto-referencial e um discurso que lhe dá a oportunidade de se tornar um juiz auto-designado, que traz suas próprias opiniões para o primeiro plano, colocando-as em cena, por assim dizer, e justificando-as rapidamente, como se estivesse em um julgamento expresso.

Há vários motivos para que isso ocorra. Um deles, talvez o mais importante, é que a crítica de hoje sofre de uma grande falta de pontos de referência. Ela não é uma ciência e ela não conseguiu encontrar, ao longo dos anos, as ferramentas científicas apropriadas. Ela permanece uma arte que se apóia na arte de escrever em primeiro lugar e antes de mais nada.

Além disso, geralmente, ela é influenciada por qualquer que seja o meio que a veicula. O meio impõe à crítica não apenas a sua forma, as escolhas que ela faz, mas também a substância do que comunica. A crítica, portanto, adere ao menor denominador comum.

Esta situação profissional justifica a incompetência artística do crítico, e isso acontece de tal forma que ele se converte no espectador comum ao qual ele deveria se dirigir. Assim, os meios de comunicação de massa fomentam de bom grado a escassez de idéias que caracteriza a crítica. Devido ao pouco espaço que sobra para o seu trabalho e aos prazos que precisa cumprir, o crítico é levado a renunciar àquela distância que deve manter entre ele e a obra, e a evitar qualquer argumento genuíno que possa sustentar seu julgamento. Ele passa a fazer declarações de cunho emocional (ele gostou ou não gostou). Não é de se surpreender que diversos críticos, no final das contas, simplesmente promovam seus gostos e desgostos, sentimentos, emoções, para se colocarem em primeiro plano, apesar de, com isso, correrem o risco de ofuscar completamente a obra. São os próprios críticos que acabam sendo vistos, não a obra. O crítico se transforma em espetáculo, aproveitando, feliz, a oportunidade de ser o centro de interesse à custa da obra. Ele não deve a sua popularidade ao seu próprio talento, mas ao meio que lhe permite brilhar em toda a sua glória a cada vez que fala de uma obra. Na maior parte do tempo, isso não exige grandes riscos da sua parte.

A crítica como forma de poder

Não se pode omitir um segundo problema, que se soma a esta situação. Crítica é poder. Quer ele queira quer não, o crítico possui uma autoridade da qual ele pode algumas vezes abusar. De fato, se a crítica é intolerável para os artistas (sobretudo quando é negativa), isto acontece precisamente porque ela é parte de uma luta de poder, geralmente entre forças desiguais. Se diretores como Robert Wilson, Peter Brook, Peter Sellars e Ariane Mnouchkine podem zombar da crítica é porque eles a dominam do alto de suas realizações artísticas. Eles podem olhá-la de alto a baixo com bravata sem que sua arte ou seu talento sejam profundamente afetados. Mas para a maior parte dos artistas, este não é o caso. A crítica e os críticos têm um grande impacto sobre a presença do público, sobre o apoio financeiro e os subsídios que são concedidos aos artistas e sobre o reconhecimento que eles têm entre a classe artística – fatos que ninguém pode se permitir ignorar.

Além disso, há uma luta de poder em detrimento do artista, que está relacionada com o número de indivíduos alcançados pela crítica e por um espetáculo. Se algumas produções de Ariane Mnouchkine são vistas por um total de aproximadamente 250.000 espectadores (Les Atrides, as peças de Shakespeare), poucos artistas podem dizer o mesmo. A maior parte alcança, no máximo, entre vinte e trinta mil espectadores, enquanto a crítica, pelo poder da mídia, alcança de imediato centenas de milhares de pessoas (jornais, televisão, rádio). No que diz respeito ao número de pessoas alcançadas, o peso da palavra escrita acaba sendo infinitamente superior ao do espetáculo. No entanto, quanto tempo o crítico investe na sua crítica? Apenas algumas horas, enquanto o artista fica envolvido no seu trabalho durante meses, às vezes anos. Certamente, não é o tempo de preparação que faz o espetáculo, mas ainda assim a discrepância levanta, mais uma vez, uma questão ética.

Por outro lado, quando a crítica não é concebida de forma criativa, como tentamos pensar anteriormente, ela permanece como um exercício superficial que demanda uma digestão acelerada da obra. Nossa sociedade nos apressa para concluir tal trabalho e particularmente os meios de comunicação de massa – que se apoderaram das obras de arte como se fossem bens de consumo – na sua busca por eventos artísticos semelhante à sua busca por eventos sociais e políticos, transformando qualquer coisa em espetáculo. A função crítica foi, portanto, superada pela função do espetacular, tornando-se, ela mesma, espetáculo. O foco não está mais nas obras de arte, mas no próprio crítico, que muitas vezes explora este campo para colocar-se em cena como se fosse o objeto que merece atenção. A obra de arte desaparece por trás da importância da crítica enquanto evento.

Finalmente, ao observar este desequilíbrio entre o artista e o crítico, é possível notar que este último não precisa prestar conta nem mesmo de seus juízos mais tendenciosos, embora tais juízos certamente garantiriam – se não forçariam (até mesmo exigiriam) – o direito de resposta, do qual o artista é obrigatoriamente privado. O crítico é, então, dotado de uma espécie de imunidade, seja qual for a natureza (ou a violência) do seu discurso.

Vamos acrescentar, por fim, que o impacto que a crítica exerce sobre o público de determinado espetáculo varia de acordo com o país, a cidade, e as circunstâncias em que opera. Este impacto é relativamente insignificante quando críticos escrevem sobre produções dirigidas por artistas de teatro famosos ou quando eles trabalham em cidades que têm uma grande variedade de periódicos que tendem a se contradizer entre si; sua importância cresce, contudo, quando afeta jovens companhias ou diretores que dependem mais da opinião pública. A responsabilidade do crítico nestas circunstâncias é muito maior.

Uma forma de arte ameaçada

Apesar do impacto substancial que a crítica pode ter sobre uma peça, é óbvio que ela tem uma influência limitada na evolução da arte e, conseqüentemente, menor ainda na sociedade. Seu impacto é, portanto, limitado. Mesmo assim, embora o domínio reservado para a crítica já seja muito restrito, ele ameaça ficar ainda menos importante. O espaço destinado para a crítica está encolhendo, assim como a arte da crítica está sob a ameaça da cultura de massa que a rejeita totalmente. Esta arte está ameaçada pela era da midiatização, uma vez que tem um impacto pequeno se comparado com o poder de transmissão da mídia.

Além disso, ela compete agora com a publicidade, com o número cada vez maior de peças promocionais nos jornais, com as entrevistas feitas com artistas para anunciar e esclarecer sua abordagem. Seu campo de ação ficou drasticamente restrito – daí a necessidade de encontrar um novo objetivo para a crítica, se não for o caso de encontrar novas formas.

Ademais, diante da fragmentação, do desdobramento e da proliferação de práticas que tornam impossível que alguém assista tudo, o crítico perdeu a função social e política que deu significado para o seu trabalho – a função de desencadear o senso crítico do público, orientá-lo e canalizá-lo. Ao perder seu objetivo inicial – que, como disseram Diderot e Baudelaire, diz respeito a ensinar as pessoas como julgar a arte de forma educada e com discernimento, um papel que o crítico provavelmente desempenhava na época – a crítica agora se contenta em representar uma individualidade singular, a do crítico, ligada a todas as outras individualidades que formam a substância de nossas sociedades explodidas. É assim que ela concede uma liberdade de atuação desmedida para a opinião de uma única pessoa.

O que sobra para a crítica? Na melhor das hipóteses, ela está enraizada numa solidariedade com a classe artística, com o público, com a sociedade (Lucie Robert); ela faz do crítico um “cúmplice da aventura do teatro, um parceiro criativo” (Pierre Lavoie), trazendo “uma forma de treinar os olhos”. Este papel é, certamente, válido.

O mais importante, entretanto, é que ela introduz um espaço dentro da obra, uma distância entre o espetáculo e o espectador, entre nossa recepção e nosso entendimento da obra. O crítico analisa a trajetória que começa com a reação instintiva (gostar ou não gostar), e chega a uma visão maior da obra. Ele mostra o caminho, estabelece conexões. Ele registra o intervalo de dentro da experiência estética. Ele expõe que toda obra de arte requer reflexão, que não se trata simplesmente de um produto para consumo imediato e inconseqüente, que ela é parte de uma totalidade social e estética e da comunidade como um todo. O processo individual do artista está associado ao coletivo. O crítico permite que o particular se torne coletivo. Embora seja produzida por um indivíduo, a crítica é, antes de mais nada, endereçada a todos. O pensamento crítico é, desta forma, justificado quando se dirige à comunidade. A comunidade designa um indivíduo que atua como seu representante e este se dirige à comunidade. Destituída de sua missão social, a função da crítica se tornaria intolerável e obscena.

Existe uma crítica justa? Provavelmente não. Gilles Sandier clama pelo “direito de indignação”. Como se pode garantir que este direito nunca se tornará abusivo? Do ponto de vista do público, G. Sandier está certo. O crítico deve cumprir esse papel. Na verdade, ele é o único que pode fazê-lo. Do ponto de vista do artista, isto parece mais difícil de aceitar. Ele necessariamente se sente injustiçado por esse procedimento.

A complexidade da crítica está relacionada às demandas contraditórias que são impostas ao crítico. Sua arte é originalmente uma “arte ofensiva”, segundo G. Sandier, mas também é uma “arte da solidariedade”, uma solidariedade com a classe artística ameaçada pela nossa sociedade, uma arte que deve sempre provar que é necessária. Ela é também uma “arte do diálogo”, um diálogo com a obra de arte, com o artista, com o público. Ela conecta o individual e o coletivo.

Mesmo sob ameaça, a arte da crítica é essencial. Se as práticas vigentes da mídia persistirem, a crítica não vai passar de um resquício do passado, destituída de urgência ou de necessidade. Sem conseguir assegurar novos pontos de referência no mundo atual, está fadada a desaparecer ou a sobreviver como uma relíquia de outro mundo. É, portanto, crucial que a crítica retome sua responsabilidade social e sua função estética. Enquanto lança mão cautelosamente de sua subjetividade para investigar todo o espectro de conhecimento – que começa com a sua reação instintiva a um determinado trabalho e que leva a uma análise profunda – o crítico deve estabelecer uma conexão entre a emoção e o entendimento, além de desenvolver uma consciência de que ele está escrevendo história enquanto aponta para o futuro.

Vol. I, nº 2, abril de 2008

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