A crítica como atitude

Variações sobre a crítica

27 de dezembro de 2013 Estudos

O que é a crítica?

Para arriscar alguma resposta, penso em Foucault, e em como se aproximou do termo, na conferência que ofereceu à Sociedade francesa de filosofia, em 27 de maio de 1978, intitulada O que á a crítica? (Crítica e Aufklärung [Cítica e reconhecimento]). Ao observar o que chama de “atividades polêmico-profissionais que trazem esse nome de crítica”, percebe que nessas atividades “uma certa maneira de pensar, de dizer, de agir[…] uma certa relação com o que existe, com o que se sabe, com o que se faz, uma relação com a sociedade, com a cultura, uma relação com os outros também, e que se poderia chamar, digamos, de atitude crítica” (Foucault, 1990: p.2). Portanto, pelo que observa o filósofo, antes de se formular como discurso, a crítica caracteriza uma atitude. Uma atitude cuja natureza se delineia e cuja função, como ele diz na mesma página, se configura “em relação a outra coisa que não ela mesma”.

A primeira noção sobre a natureza relacional da crítica, consequente à lógica que Foucault estabelece, remete à ideia de discurso intermediário, de instrumento. A crítica é instrumento, “meio para um devir” (Foucault: p.2). Sob esse aspecto, a crítica, ou melhor, o discurso pelo qual se manifesta, constitui-se em discurso a serviço de, discurso à disposição de, e que estabelece, com os campos de conhecimento ou de produção em que se insere, e a que refere, uma relação de pertencimento. Para esse campo eleito, estabelece princípios, critérios e códigos específicos, conforme os modos de pertencimento que queira estabelecer. Esses modos de pertencimento também dizem respeito aos meios de que a crítica se utiliza para se expressar. Meios que, por outro lado, vão interferir na natureza da linguagem crítica, também essa exigida, na maioria das vezes, pela finalidade a que se destina. Nada é simples nem gratuito quando se trata de analisar a atitude crítica. As relações que se estabelecem entre princípios, meios e fins serão relações de necessidade. É uma atitude dependente que se expressa por meio de um discurso cuja natureza e função vão ser afetadas pelo campo a que passa a pertencer, o campo em que se inserem as manifestações humanas sobre as quais o crítico se debruça. Dessa observação de ações e de produções humanas surgem os variados discursos da crítica, como a crítica da cultura ou a crítica de arte.

A especulação sobre a atitude crítica leva em consideração o tempo e o espaço em que se observa o fenômeno, as condições intelectuais e materiais das reflexões resultantes da observação, o público que deseja alcançar com o discurso crítico produzido. Uma avaliação da atitude crítica em jogo considera o diálogo entre todos os elementos envolvidos na relação observador-observado. A crítica traz, à visão de outros olhares, fenômenos criados por seres reconhecíveis e apresentados num tempo e num espaço, a partir de critérios perceptíveis. Observar a atitude crítica de indivíduos, o discurso pelos quais se manifestam e o público a que se destina o discurso que se produz permite traçar uma mentalidade, as tendências do gosto e os critérios de valor de um determinado tempo.

1.

O que se pode pensar, ao considerar a crítica como atitude voltada para o campo das artes cênicas ou, mais especificamente, do teatro?

A vastidão desse campo observado, isto é, a amplitude do campo teatral como objeto da atitude crítica obriga desde o início a que se estabeleçam algumas fronteiras relativas às observações que se podem fazer, de modo geral, em relação ao que se chama de crítica teatral, devido às suas variações de natureza, função e concepção crítica, fatores que vão determinar as escolhas discursivas usadas pelo crítico. O lugar de onde observa o fato, o meio em que se vão expor as ideias sobre esse fato e o leitor para quem se vai escrever são fatores condicionantes do modo como o crítico manifesta sua atitude crítica.

De modo amplo, pense-se no objeto de observação do crítico teatral. E aqui vou levar o termo para o sentido mais geral de teatro como uma arte de conjunto, prática coletiva de que resulta cruzamento complexo e plurissignificativo de linguagens e signos, oferecida ao público em eventos efêmeros, datados e localizados espacialmente e que se esgotam, na forma realizada, a cada tempo convencionado. O discurso da crítica voltada para o teatro será necessariamente afetado por essas injunções, e a avaliação crítica deverá se adequar ao meio que o abriga e à função a que se destina. Se a atitude crítica é em princípio relacional, ela considera simultaneamente o objeto de sua observação assim como o destinatário alvo da transmissão da observação resultante.

Os ambientes em que se engendram os discursos críticos que veiculam o resultado da observação podem ser simplificados se considerarmos os meios de divulgação que de certo modo induzem ao público destinado. Jornais de grande circulação, revistas abertas de divulgação cultural atingem o público em geral, pela crítica teatral jornalística; periódicos acadêmicos ou publicações de crítica específica, conduzidos por egressos do meio acadêmico, atingem um público que se pode chamar de público interessado nessa crítica teatral ensaística. A natureza da crítica produzida em cada um desses conjuntos será afetada pela função a que se destina: é diverso o padrão de linguagem, o vocabulário e a amplitude de referências se considerarmos a demanda de cada público leitor, isso é claro.

Diz-se da crítica jornalística (que no dicionário do Pavis foi traduzido como “Crítica dramática” para o termo francês original do verbete “critique dramatique”, mas que indica também o inglês “theatre criticism”, o alemão “Theaterkritik”; e o espanhol “crítica teatral”) que é a crítica em geral feita por jornalistas “que tem por objetivo reagir imediatamente a uma encenação e relatá-la na imprensa ou nos meios de comunicação audiovisuais” (Pavis, 1999: p.81). A essa primeira noção segue-se, ainda no verbete de Pavis: “O desejo de informação pelo menos é tão importante quanto a função incitativa ou dissuasiva da mensagem: trata-se de acompanhar a atualidade e apontar que espetáculos podem ser/ou devem ser vistos, ao dar a opinião de um crítico que é, aliás, mais representativo de seus leitores que de suas próprias opiniões estáticas ou ideológicas”(p.81). Na proposta de Pavis para definição dicionarizada de crítica jornalística evidenciam-se não só a função relacional entre um objeto e um público, mas também a função específica ditada pelo meio em que circula a comunicação. Pavis chama ainda atenção para as alterações que esse discurso crítico sofreu ao longo do tempo, desde os longos folhetins do século XIX, aos rodapés e às críticas que ainda no século XX podiam manifestar-se em colunas sequenciadas, até a crítica limitada ao reduzido espaço que os jornais de hoje reservam para essa crítica. Ainda que reconheça que devam-se considerar “as dificuldades das condições de exercício” da crítica jornalística, Pavis lamenta que se separe “radicalmente a atividade do crítico dramático da de um artigo de publicação especializada (revista de teatro) ou mesmo de um estudo mais documentado de tipo universitário” (parte 2 do mesmo verbete, p.81). Reserva-se, portanto, ao meio acadêmico, a condição de representar o espaço de livre manifestação da atitude crítica em relação aos objetos artísticos. Beneficiando-se da liberdade formal do ensaio, essa crítica é também conhecida por crítica ensaística. A nomeação dessa forma discursiva guarda o sentido primeiro de experimentação, de tentativa que, no universo teatral também nomeia as atividades preparatórias do espetáculo que também ganham infinitas concepções de acordo com as especificidades das propostas de encenação.

2.

Mas ficam ainda algumas anotações sobre a crítica teatral, para além dessas duas formas resultantes de disposições de natureza e funções da crítica. São reflexões propiciadas pela sua aproximação com o campo da história, isso é, da reflexão distanciada e não emocionada que organiza os fatos por elementos norteadores para o delineamento da atitude crítica de um tempo determinado e que se convencionou chamar de crítica teatral historiográfica.

Quanto à temporalidade, dissemos que a crítica teatral, sobretudo a crítica jornalística, é datada. Porque ela pensa junto com o objeto, no tempo de sua realização, isso é, busca o horizonte de criação do objeto para poder ajuizá-lo. Em seu livro sobre A análise de espetáculos (2003), Pavis aponta para duas possibilidades de análise, que ele nomeia, considerando sobretudo seus objetivos e meios, análise-reportagem e análise-reconstituição. Ainda que a primeira pareça bastante afim com a atividade jornalística, ela é mais difícil de se realizar, porque supõe um certo calor da hora, como ocorre em reportagens ao vivo. Diz Pavis que se trata de “captar o espetáculo por dentro, no calor da ação, de restituir o detalhe e a força dos acontecimentos, de ter a experiência concreta daquilo que toca o espectador no momento da representação” (2003: p.5), etc. Ele mesmo diz ser essa uma análise ideal. Talvez se possa pensar num sucedâneo dessa análise oferecido pela gravação direta de ensaios, reações de público, cenas de espetáculo e conversas, isso é, na geração de um documentário audio-visual de making of, que crie a ilusão do calor da hora por meio da captura de imagens e sons locais e temporais. Nisso se distinguiria do segundo tipo de análise, mais comum, a análise-reconstituição, efetuada post festum, depois da festa, pelo exame de documentos, imagens, textos, gravações, isso é, pelo exame dos traços deixados pelo evento em sua efemeridade.

A crítica jornalística guarda, da análise-reportagem, a memória do espectador que viu e comenta, ainda frescas as emoções, os diversos aspectos do que foi apresentado, do que ele testemunhou. A crítica ensaística, ainda que possa beneficiar-se dessa outra crítica, da qual pode fazer uso, constrói o seu discurso a posteriori, a partir de diferentes perspectivas e fontes de referências, e quando aquele evento pertencer ao passado.

3.

Quanto ao valor histórico, a crítica fornece material para as construções da história. A inegável interrelação da crítica teatral com a história do teatro é uma constatação feita por Ana Bernstein e Christina Junqueira, no capítulo sobre “A crítica teatral moderna”, do recém publicado volume II da História do teatro brasileiro, organizada por João Roberto Faria (2013: p.161-174). Dizem elas: “Na história da arte, assim como na história do teatro, o objeto e sua crítica são indissociáveis. Por isso a história cultural do teatro se confunde, necessariamente, com a história do teatro […] [: Por exemplo,] não há como tratar da história da moderna crítica teatral sem discutir a cena brasileira do século XX” (p.161).

Ressalte-se mais uma vez a importância da crítica que congela uma visão sobre determinados eventos, fixa o olhar sobre um acontecimento ocorrido em espaço e tempos determinados: é a ela que o historiador recorre para comprovar acontecimentos, para recuperar um evento passado, pois a crítica jornalística é um “testemunho ocular da história” como disse Valmir Santos na abertura do encontro.

Quanto à construção do conhecimento e à reflexão teórica evidencie-se que, se a crítica jornalística fornece algumas das comprovações do fato teatral ocorrido, cabe à crítica ensaística articular esses acontecimentos com os modos possíveis de pensar o teatro. O ensaio é a linguagem da teoria para recuperar conceitos, atribuir-lhes novas acepções. A teoria do teatro, como a teoria da arte, não gera pensamentos abstratos puros desconectados de objetos. Pelo contrário, suas elaborações emanam da observação de objetos, podendo ainda, na busca por uma fundamentação, fazer uso de ideias oriundas do campo da filosofia. O professor, filósofo e crítico Gerd Borheim é um exemplo de como é possível articular a fusão, em uma só pessoa, de crítica teatral e filosofia. Sua plataforma de observação é calcada nos conceitos filosóficos em que acredita e que professa, não obstante o esforço de observação de autores e obras que realiza como crítico. Décio de Almeida Prado integra uma bibliografia mista, de obras de historiografia teatral e de coletâneas de crítica publicada em jornal e revistas. As duas maneiras de observar e pensar o teatro podem caminhar lado a lado, a depender da competência intelectual do crítico, formada por leituras, estudos, comparações, cabedal de conhecimentos e acervo de materiais, a partir dos quais elabora seus pensamentos e escolhe suas formas de expressão.

Quanto à relação com a prática teatral, evidencie-se que a crítica é uma prática. É uma prática ética, porque releva um conjunto de atitudes em relação ao fato teatral e que vão afetar a opinião de leitores; mas é uma prática discursiva, um trabalho com a linguagem, na busca de torná-la melhor instrumento de comunicação, para adequá-la aos fins a que destina e aos meios de que dispõe. Quanto mais experiente, bem informado e sensível for o crítico, quanto mais ampla for sua capacidade de percepção, e quanto mais exercitar a sua prática tanto melhor será o resultado obtido.

No diálogo que permite estabelecer entre a teoria e a prática teatral, a crítica deve se esforçar para ser uma partícula de saber, pequena iluminação que ajude a pavimentar a reflexão teórica. Aliada a documentos de outras ordens e a eles associados na organização e sistematização de arquivos, a crítica pode dar uma contribuição inestimável, na construção de uma a história do teatro.

Mas é preciso que o crítico aposte na sua atitude.

Referências bibliográficas

FARIA, João Roberto (direção). História do teatro brasileiro. Vol. II. São Paulo: Perspectiva, 2013.

FOUCAULT, Michel. “O que é a crítica?” (Crítica e Auflärung). Trad. Gabriela Borges, revisão Wanderson Nascimento, publicada no Bulletin de la Société française de philosofie, vol. 82, n.2, p 35-63, abril-jun 1990, reproduzido em Espaço Michel Foucault – www.filoesco.unb.br/foucault, consultado em março de 2013.

PAVIS, Patrice. Análise de espetáculos. Trad. De Sérgio Sálvia Coelho. São Paulo: Perspectiva, 2003.

____Dicionário de teatro. Trad. Jacob Guinsburg e Maria Lúcia Soares. São Paulo: Perspectiva, 1999.

SANTOS, Valmir. Abertura do 2º Encontro Questão de Crítica. Rio de Janeiro: Espaço Sesc, 23 de março de 2013.

Ana Maria de Bulhões-Carvalho é pós-doutora em Letras pela PUC-Rio, professora de Teoria do Teatro, e pesquisadora do teatro contemporâneo.


Artigo produzido para o 2º Encontro Questão de Crítica, realizado em março de 2013 no Espaço Sesc.

Informações sobre o 2º Encontro Questão de Crítica :: http://www.questaodecritica.com.br/encontro/

Assista à gravação da mesa-redonda sobre crítica e historiografia no nosso canal no Vimeo: https://vimeo.com/82246204

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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