Como um punhal nas carnes

Peça inédita escrita em 1996. Tradução de Diego de Angeli

22 de dezembro de 2014 Traduções

Vol. VII, nº 63, dezembro de 2014

“Como relato, o amor é uma história que se cumpre, no sentido sagrado: é um programa que deve ser recorrido. O apaixonamento é um drama, se devolvemos a essa palavra o sentido arcaico que lhe deu Nietzsche: ‘O drama antigo tinha grandes cenas declamatórias, o que excluía a ação (esta se produzia antes ou fora de cena). O rapto amoroso (puro momento hipnótico) se produz antes do discurso y atrás do proscênio da consciência: o “acontecimento” amoroso é de ordem hierático: é minha própria lenda local, minha pequena história sagrada que declamo a mim mesmo, e essa declamação de um feito consumado (coagulado, embalsamado) é o discurso amoroso. A jornada amorosa parece então seguir três etapas (ou três atos): está em primeiro lugar, instantânea, a captura (sou raptado por uma imagem); vem então uma série de encontros (visitas, conversas telefônicas, cartas, pequenas viagens) no curso dos quais ‘exploro’ com embriaguez a perfeição do ser amado, ou seja, a adequação inesperada de um objeto ao meu desejo: é a doçura do começo, o tempo próprio do idílio. Esse tempo feliz toma sua identidade de que se opõe (ao menos na lembrança) à ‘sequela’: a sequela é um grande rastro de sofrimentos, feridas, angústias, desamparos, ressentimentos, desesperos, penúrias e armadilhas de que sou presa”.

Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso.

“Estás clavada en mí como un puñal en las carnes”

Jorge Caldara e Mario Soto, Pasional. Tango.

I – DOLORES

Partida.

Um banheiro masculino na estrada.

MONTERITO: Estou bem. Por favor. Bacanudamente. Não, obrigado. Foi um… Foi um… Por favor, te peço. Me indispus mas já… Por favor. Bacanudamente. Uma indisposição passageira. Não se preocupe. Está aí? Não, não está aí. Deveria. É seu horário. Ninguém controla? Porcontaprópria. Não se ofenda. A verdade e um sorriso se dizia lá em casa. Já passa. Uma bobagem. Frio no estômago. A gente sai de férias e no que menos pensa é no frio. Mas as madrugadas… Abril é traiçoeiro. Está aí? Saiu um momento. Um compromisso inoportuno. Deveria estar aqui. O senhor que é seu próprio patrão não deveria relaxar com os horários. Ao contrário. Tem dinheiro aí. Uma responsabilidade. Para o senhor e para os que chegam. E se falta algo desse prato de gorjetas? Olha a situação em que o senhor me coloca. Se o senhor conta agora esse dinheiro e falta. Eu aqui sozinho com ele. Eu nem me aproximei mas o senhor poderia pensar… Nunca entrou numa livraria com um livro no bolso do sobretudo? Pulsava no bolso o manual. Merceologia de quarto ano. Tenho meu menino no curso de comércio. No melhor o senhor pensou, porque me viu assim de bacana rumo a Mar del Plata com essa… pessoinha que me espera no ônibus. Sim. Mas tenho meu menino no curso de comércio. Está aí? No fundo? Limpa os sanitários? Não desce ninguém pelo frio, mas melhor ter tudo limpo. No ônibus está quentinho. Os vidros embaçados. Estou tonto. Não… não se preocupe comigo. Já vai passar. As luzes de frente. Se viajar de ônibus que nunca te vendam o primeiro assento. Não tinham outros. Os dois últimos. Separados tinham, mas juntos, eram os últimos. Velhinho safado, o senhor vai dizer. Não deixa nem a moça respirar. Nós dois somos iguais. Cortados pela mesma tesoura. Casalzinho, viu? Dente canino. Já viu dente canino? Digo: esses mexilhões que se agarram na pedra. Bom, dente canino os dois. Seguiram todos dormindo. Só eu desci do ônibus. Eu e o motorista. Dolores: dez minutos. Falta pouco para Mar del Plata. Que bacana, o senhor vai pensar. Este tipo, abril, todos trabalhando e ele desfrutando a boa vida. Fazer o quê. Tem o resto do mundo e os que nascem com a bunda virada pra lua. Vai passar. Graças a Deus já estou melhor. Bacanudamente. Não se deve comer antes de viajar. Uma bobagenzinha. Hambúrguer. A batata frita me caiu mal. As crianças de agora. Comem qualquer coisa. Digo à Sandrinha: polietileno. Não é mais saudável uma massa, como se comia? Não: polietileno. Não passaram os dez minutos, não? O velho medo do ônibus sair e te… Um dia, voltando do almoço do sindicato perdemos a barca. A nossa seção inteira estava. Contadoria. Por farrear. Que se danem. E olha que eu avisava mas eles, nada. Como se não ouvissem. Se acham, sei lá. Avisei ou não avisei? Avisei. Me sacaneavam. Giannone especialmente. Giannone me toma para Cristo. Estavam mamados, mas tiveram que me dar razão. Tem razão, Monterito, me disse o novo rapaz da seção de créditos. Não me lembro o nome. Depois foi transferido para a central. Aqui quem tem razão é Monterito. Monterito, caralho, o cara. Um apelido. Uma maneira de dizer. São sacanas. Me chamam Monterito porque dizem que canto como Morán. Não tem despedida que não me façam cantar como Morán. Pasional. Conhece? Miguel Montero. Morán. Do tango. O senhor vai dizer: se canta como Morán por que não Morancito ou Moranzinho? Sei lá. Parece que não soa bem. Capricho. Quantas coisas não passam de capricho dos outros? Uma família, o banco. Trinta e um anos no fim de junho. Uma vida. Eu sou, como se diz…? Popular. Onde tem que organizar a farra, o dinheiro para um presente, uma despedida… Todas as despedidas me fazem cantar Pasional. Cantar Pasional e contar putarias. Sacanas. A Sandrinha também gosta de Pasional. Ela acha graça. Outra época, não entende… não… Amanhã se inteiram. No banco… se inteiram amanhã. Monterito não bateu cartão. Monterito foi embora de casa. Olha bem pra ele. Deixou tudo. Tudo por uma… a casa, o filho, o banco, tudo. Monterito está louco. Se… Se… O que que essa mulher te deu? Não chorava Carmen. Se vê que se segurava. Algo te deu. Uma manchinha de ovo aqui, minha senhora.

Passaram os dez minutos? Não passaram. Seria um papelão, não? Digo, perder o ônibus. Papelão. Ficar aqui. Metade do caminho. Ter que voltar lá. Morro de rir. Me deixa entrar, Carmenzinha. A porta. Larga a vassoura, Carmen. Foi uma piada, te digo. Fiz de brincadeira. Como vou… Depois de vinte e cinco anos vou atrás de uma fedelha? Sandrinha é uma… é uma…

Dorme no ônibus… Sandrinha. Ela nem se daria conta de que eu não… As luzes dos caminhões iluminavam seu rosto. Dormia como uma virgenzinha. Virgem morena. Estiquei a mão e a toquei. Na cidade de Chascomús. Parecia mentira. É tão… moreninha… divina. Tão… Ainda parece mentira quando a toco. No cruzamento Varela, sem que se desse conta, eu fingia que dormia e cheirava seu cabelo. Fragrância. Um mês intenso e parece mentira. Tudo parece mentira. Ainda há pouco, em casa, Carmen gritando , o menino olhando com a cara cheia de espinhas. Calça de escoteiro. Ainda há pouco. Nem quatro horas. Se vai, não volta mais. Asqueroso. Velho asqueroso. Com uma negrinha. É morena. Sandrinha é morena. Traços turcos, eu digo. O que que essa mulher te deu? O pedacinho de ovo ao lado da boca. Pra que vou voltar? O senhor vai dizer: mas pra este homem não existe arrependimento?

Um papelão se perco o ônibus, não? Aqui, na metade. A porta da minha casa: não devia… Um momento de debilidade… Foi o vermute… O menino aí. Papai se equivocou. Quem tem boca, se equivoca. Errar é humano, Coco. Coco lhe chamamos.

A que horas tem ônibus de volta? Digo… Não quero dizer que… No caso de que, por um casual… Se alguém tiver um acidente, por exemplo, como faria para… Algo até a Estação Retiro…

Daí um táxi.

Acorda na estrada. Meu assento vazio. Sozinha. Não está acostumada. É menina. Me refresco e vou. Rapidinho. Um minutinho. Fazer o toalete. Me arrumar. Meu nécessaire. O amigo do viajante. Aquele que guarda sempre tem. O que não encontrei foi a manta de viagem. Presente de casamento. O nécessaire também. Não sei, ninguém viaja e todos te presenteiam com nécessaire e manta de viagem. Um costume. No início se guarda a manta, deixa tomar ar. Naftalina. Como é pequena não serve em lugar nenhum. Até que nasce o filho de alguém. Aí sim. Vira enxoval do menino. Ao berço primeiro. Depois à cama de solteiro. Cresce o menino. Pêlos o menino. Os pés embaixo. A manta vai à tábua de passar. Queima. É dobrada. Volta a queimar. Tapete para o taco. Aí finalmente viaja. A excursão mais larga que fazem as mantas de viagem é se arrastar pelo piso de taco, da copa à sala. Vai saber quantos anos. Vinte e cinco. Sim. Presente de casamento. Está como nova porque não a… Uma vez a levei à Mina Clavero que fomos de trem. Depois, desde que nasceu o menino, a Mar del Plata todos os anos, aí nunca levei o nécessaire. Não sei. Não me parecia uma viagem para… Como se não fosse uma viagem. Uma viagem é outra coisa, não? Mais… Mais… Dezessete anos ao mesmo hotel, imagina: minha casa. Limpo. Escurinho. Comida familiar. Não polietileno. Massa. Residencial Grand Capri. Grand com ‘d’ mudo. Nunca fui fora de temporada. Essa agora é a primeira vez. Ela me pediu. Sandrinha. Lá ou lugar nenhum. Caprichinhos. São jovens. O senhor Belsito vai me olhar estranho. O senhor Belsito é o dono. Umas castanholas, Belsito. Aí, quem não se diverte é porque não quer. Todos os anos quando chego me diz o mesmo – quinze de janeiro todos os anos – me ajuda com a bagagem desde o táxi, Carmen paga a tarifa, o menino vai para o quarto, quinze de janeiro: contador Ramella, me diz, todas las pescadillas preguntam por el señor. Me sacaneia. O terror da merluzinha, diz. Uma tarde no cais pesquei dezesseis. Merluza Real. Por isso me sacaneia. Se vê que ficou com isso. Vai me olhar estranho quando chegar com ela… Com Sandrinha. Fora de temporada e só com ela.

Vai entender, não?

Coisas de homens. Já conhece ela. Ano passado a trouxemos. Caprichos de Carmen. Tinha engessado o braço, dizia que sozinha não ia dar conta. Caprichos. Sempre quis passar o verão com empregad… Com ajudante.

Sandrinha é a… Trabalha em… Trabalhava, em casa. Papi, me leva a esse hotel ou não me leva a lugar nenhum. Me chama de Papi, a Sandrinha. Uma pequena fantasia. Quer voltar com todas as honras, rainha. A senhora da casa. Está mal? Todas as mulheres querem. Todas gostam….

Dura, a tampa da saboneteira. Se nota, faz anos que não…

A cara que vai fazer. Coisa de homens, senhor Belsito. A vida é assim. O amor vai e vem. Passou… o que tinha que passar. Uma coisa traz a outra. Não me dê conselhos. Não me diga nada. Agora eu já… Voltar… Carmen se deu conta de tudo, senhor Belsito. Me pegou. Em flagrante, me pegou. Não sei mentir. Queimei os barcos… as pontes… como é…? Se vai, não volt… Manchinha de ovo aqui. Isto é amor, senhor, acredite. Amor verdadeiro. Que importa que tenha… essa idade… que tenha sido minha… em casa a… O amor é cego. Belsito vai entender, não? Digo… O que o senhor…? Eu, voltar, já não… Digo…

Um táxi desde a Estação Retiro. A maletinha. Momento de loucura, Carmen… Vermute… Acordei… Me diz o que quiser… Se desafoga, velha. Papelão.

Sabãozinho do hotel de Mina Clavero. Hóstia, parece. Anos. Fizemos Coco em Mina Clavero, faz tempo. Pentezinho. Colônia. Pincel para barbear. O pincel perdeu pêlos. Talco. Quem guarda…

O vermute também tinha guardado vai saber lá quanto tempo. Comprei para um censo, me lembro. Para convidar o rapaz, mas Carmen disse que não convinha. Que estava em serviço. Bebida forte. Anos aí, fechada. Com o tempo cresce o teor do vermute. Carmen não gosta que eu beba. Que o corpo depois transpira álcool. Cheiro na cama. Em Coronda, Carmen, essa noite, na casa da minha cunhada, a mais nova. O menino de escoteiro. Eu lhe digo, olha como está grande com essas pernas peludas. Um mês… mês e dias… que estou dizendo: Nem um mês faz. Por volta das dez… Pegajosa a noite. Os últimos calores de março terminam sendo os piores no final das contas. A piscininha de plástico armada no quintal. A Samambaia, a Maria Sem vergonha, a Begônia, o Dinheiro em Penca. Uma gelatina de sobremesa esfriando sobre a mesinha de armar. Gelatina fantasia. Um franguinho. Um franguinho com batata doce ao forno tinha. A cozinha pequena. Sandrinha transpirada que não sei o quê, dezessete anos, Sandrinha. A camisa molhada. As pernas molhadas. Úmidas. Nunca a tinha visto assim… Alguma vez, claro, sim… Mas nunca… Tinha tomado banho. O cabelo encharcado. Cheiro de xampu. Outro xampu, não o de Carmen. Não sei como começou. Abri o vermute. Quando Carmen não estava, pelo cheiro… Não tinha gelo. Vermute puro. Suava. Aí mora uma verdade tão grande como um templo: sou um homem manso e organizado, mas o vermute quente me faz ficar louco. Coloca o biquíni, lhe disse, se quiser. Coloca o biquininho que usava em Mar del Plata e vai se refrescar na piscina. A água parecia xarope. Parecia Cinzano quente. Eu falava, mas parecia que era outro quem falava. Esperei. Na piscinha de plástico. A água aqui. Tinha outro copo, mas ela começou a tomar do meu. Os dois metidos em Cinzano quente. Esticava os pés e por baixo d’água a roçava. O coração batia tão forte que fazia onda. A mão na perna. Não sei. Me lembro de tudo em câmera lenta. Peguei seu joelho e olhava pro outro lado. Ela ria. Fosforescente a boca. Ria. Da televisão se escutava uma propaganda de iogurte. Fosforescentes os lábios, os dentes. Toquei a perna, o biquíni, fosforescente a língua. Quente. Cinzano Americano a língua. Vermute puro. Uma verdade como um templo. Me faz ficar louco. Louco. A água respingou até dentro. Trovejava. Uma tormenta de verão. Tropical. Agitada a água. O muro do quintal, escorrendo. Precipício. Temporal. Tromba d’água. A praia. Cheiro de frango queimado, a praia. Batata doce.

Quando saímos da água e a vi em pé aí. Pelada. Estava o Gerânio e a Espada-de-São-Jorge. Pelada. Estava o Clorofito -Lazo de Amor, se diz. Estava o toldo quebrado, em cima. Ela em pé aí. Junto do mar. Relâmpago. Laranja a lona do mar. Pelada.

Me dei conta de que nada mais ia ser igual.

O motor… O ônibus que se… Em um minuto se… o ônibus se… Um táxi desde Retiro e… A maletinha na mão e… Papai se equivocou, e…

Oxidadas as giletes, nem pra fazer ponta de lápis.

Uma hóstia o sabãozinho do Mina Clavero.

O pincel de barba… O talco…

Pra que alguém guarda, se pode saber…?

Obrigado por tudo, cavalheiro, desculpe o incômodo, já estou bacanudamente bem, está aí…?

Deixo no prato. Uma atençãozinha.

Bacanudamente…

Corre ao futuro.

II – DESTAS PRAIAS LINDAS

Um postal talhado.

MONTERITO: Cinco de maio. Queridos companheiros do banco. Mensageiros. Senhor Gerente. Destas praias lindas às quais ninguém nunca mais poderá chegar, lhes envio este postal colorido com minhas mais afetuosas saudações. Não sei, de verdade, quanto tempo faz que estou caído nessa. Não existe calendário aqui, a folhinha, como aí, e o relógio parou ao chegar. Será que as horas não passam aqui? Será. Sei que tem amanhecido algumas vezes, que tem escurecido, e que tem voltado a amanhecer. Sei também que tem tido sestas. Tanta beleza aqui no balneário, tão diferente de tudo, que do resto me lembro uma ou outra coisa: Que o quarto de Mar del Plata olhava o mar, mas de lado, que éramos os únicos turistas no hotel, que a calefação não funcionava e nos deram uma pequena estufa de quartzo; que o senhor Belsito não fazia mais que piscar os olhos ao me dar a chave do quatorze, a toalha grande e a de rosto, a adição das extras ou ao me servir o consomê, a sopa pavesa, um ovo. Coisas soltas me lembro de lá: Que fomos à colônia de pescadores, passear num trenzinho da Pantera Cor de Rosa, a uma fábrica de pulôver, a uma excursão à Laguna de los Padres e a um filme de policiais, um negro, um branco. De mãos dadas o filme inteiro. Que numa tardezinha fomos pescar, muito agasalhados, no quebra-mar. Que não tem merluza no inverno e que pescamos um peixe tão esquisito que Sandrinha e eu achamos que tínhamos descoberto uma nova espécie. Que éramos Deus, acreditamos por um momento. Tocados pela varinha mágica. Veio com cavala salgada. Isca de cavala salgada. Anzol de corvinas. Um peixe cara de anjo. Cara de diabo. Novo na terra, disse à Sandrinha, até que veio uma senhora machona que pescava com meio mundo e nos disse o nome e que as aletas são deliciosas à milanesa. Essa noite chorei calado no banheiro do quarto. Coisas assim posso contar de Mar del Plata, a Pérola do Atlântico: do dinheiro que acabou rápido, e a vontade louca de tocá-la, de apertá-la, de estar com ela o tempo todo que me vinha cada vez mais e que, ainda que estivesse, não passava. Ao contrário. De chupá-la, que vontade. De esquecer de tudo que não se chame Sandrinha. Disso me lembro assim, borrado, e essa sensação no escuro do cinema, e no quatorze do Residencial Grand Capri de que Mar del Plata viria a ser nada mais que a porta. O vestíbulo. De que esse outro existia mais lá. Mais aqui. Outro lugar. Ruídos daqui, um runrum, e um cheiro de xampu que aparecia. Irresistível aquele xampu, que vinha de algum lado, perto daqui. De dentro. A ânsia louca de pegar a estrada para este lado. E passou, muchachos do escritório. Um resvalão divino e rodei. E cantava Pasional para ela justo antes. Pasional, vocês sabem. Em cima da cadeira. Pelado. Sandrinha me amarrava aí uma fita violeta que tirou do cabelo e ria como louca. Um lacinho violeta, um gatinho, dizia, e se matava de rir. Me gozava. Dezessete anos, Sandrinha, já devem ter se inteirado pelas más línguas. Cascabel cascabelito, o tango, imaginem. Quanto faz? Dois dias? Cinco? Três meses? Sei que estava tão feliz que quase choro, e que depois começamos a fazer de novo. Como foi essa vez? Todas as vezes se misturam como se tivessem sido uma só. Não foi uma só? Se misturam. Gemia como uma menina? Como uma gata? Essa foi a vez que gemia pelo nariz? Durante a sesta, foi, que dizia no meu ouvido: puto… puto…? Que trouxemos da mesa um resto de vinho, e me chamava de louco, e tomamos o vinho do Porto com um pacotinho de açúcar na cama. Ou era de manhã, a língua com gosto de Colgate? Mentolada, sim, de manhã. Tipo onze. Os lençóis amontoados nos pés. Tapados com a colcha provençal. Os biscoitinhos champanhe baybiscuit e a bandeja na mesa com o café com leite frio. Sim. Aí foi. Um minuto antes, Pasional. Pelado. De Caldara e Soto. O lacinho violeta. E ela me chamava com a língua. Fosforescente a língua, me chamava. Com tudo em cima da cadeira, sim. E fui. A ponto de entender de repente a verdade. Que fora dela não sobrava mais nada. Que dessa vez deixava tudo. Mar del Plata. O mundo. A vocês. Adeus. Abriu as pernas, amigos do banco, e estava escuro, se vissem que lindo. Adeus. Alaranjado aí. Intenso. Laranja. Piscininha de plástico. Profundo. O fundo. A ponto de entender. E entrei. Sem olhar pra trás. Sem balançar lenços. Quase sem adeus. Me meti. Se abriu como uma gelatina e entrei. As ondas correram até a borda e se desfizeram contra a lona laranja sem quebrar. Gelatina fantasia. Dois mariscos que se separam na minha frente sem cessar e voltam a se juntar, a se fechar atrás de mim. Bandeira de perigo. Jogava fora. Como jogava fora isso das onze, amigos da contadoria. E eu sem medo algum. Quis que desse pé, e não dava. Não quis, me parece. Tomei um caldo. Foi isso. Um amasso no meio de um caldo. Voltas e voltas sem saber o que é em cima. Sem saber o que é embaixo. Refluxo. Marulho. E ao abrir os olhos, estava aqui. Dentro. Chupado pelo redemoinho. Corredeira. Tragado. Dela. Algas. Tinham algas ao redor e águas vivas sem veneno, mansinhas. Lazo de Amor, as algas. Samambaia. Eu, submerso. Rodando lerdo pelo fundo como as velhas na rebentação. Arrecife. Musgo. Baba transparente. Nadei, náufrago. Livre, nadei muchachos. Nado Livre que é o estilo com mais rendimento, como dizem no Club del Tigre. A braçada não cansa. Sem tirar a cabeça. Perfumado o mar num golpe. Cinzano morno. Nadei para baixo. Adentro. Até o fundo. Espesso. Mais. Já me faltava ar quando tirei a cabeça. E estava aqui. Nessas praias lindas. Este postal talhado. Balneário milagroso. Nessa paisagem que não deixo de adorar. A costa mansa do quintal aquela noite. A piscininha de plástico, enfurecida, cheia de vermute, de sangue, de leite. Intervalo com churrasqueiro e mesinhas de cimento na beira da piscininha de plástico. Os carrinhos de pedal. Petiscos de cinqüenta pratinhos. Uma lua laranja assim, pelo toldo quebrado. Pitoresco. Uma catedral. Uma gruta cheia de oferendas. Coraçõezinhos de lata. Sangrentos. Cheio de cor. Um bosque de Maria Sem Vergonha na costa, de Begônia. Estimados amigos, senhor gerente, colegas da manutenção e segurança: me tem adentro. Dentro dela, e ela está. Ela também está aqui comigo. Que coisa extraordinária, ela está onde estou metido. O potinho de pó Royal de Deus. Senhoritas do caixa, pessoal da manutenção: estou encaixotado. Devo comunicar-lhes que estou metido numa concha. Recorro-a. Caminho seduzido por ela . Quero comê-la toda – a troca de ar – . Que apetite! Amo este postal em que estou fotografado eu, talhado. Muchachos: a felicidade é uma foto com a onda. Tanta complicação e a felicidade era apenas a palavra amor em uma caixinha de costura feita de caracóis. Assim passam os dias, agora, neste lugar bendito. Caminhada. Em bermudinhas. Eternamente. Boné. Camisa. De braços dados. Cinzano com cinqüenta ingredientes. Pique. Glorioso o pique na piscininha de plástico. Um cardume de peixe-anjo. De peixe-diabo. Pedalinho. Ao vento. Marinho o vento, cheiro de xampu. Outro xampu. Sussurrante o vento nos ouvidos: uma propaganda de iogurte. Casalzinho.

A janela olha a água. De frente, não de lado, como lá. Que pouca coisa era aquele mar agora que alguém pode comparar. Um quarto de litro aquele mar. Miniatura. Entrava em um caracol, aquele mar. Esse meu me toma por inteiro e transborda. Inunda. Querem escutar as ondas da piscininha daquela noite? Coloquem o ouvido aqui, na boca. Aqui. Estou todo tomado. Até a alma.

Querida gente do banco, companheiros de almoço no rio Paraná de las Palmas, muchachos da comissão interna: Que mais posso lhes dizer? Só esperar que ao receberem esse postal estejam bem. Que guardem sempre deste servidor boas recordações. E que me tenham sempre presente. Ermitão de sua argola. Anacoreta. Penitente. Me despeço de vocês. Tudo encharcado aqui. Me despeço. Adorando esse grude de cabelos molhados. Sandra Sagrada. Adorando sua bunda. Fanático. Amando. Seu. Dela. De ninguém mais. Se despede de vocês para sempre.

Contador Vicente Ramella. Monterito.

III – BANQUETE

Embaixo da mesa de uma cantina.

MONTERITO: Farristas, garçom… Começam com migalhas… Todas as despedidas de ano o mesmo. Já fecham…? Se Giannone voltar, calo ele com o sifão. Farristas… Se pego Giannone, faço sopa. Joga a pedra, esconde a mão o Giannone. Um pão aqui. Estou vermelho…? Arde. O masculino é nos fundos? Me deixaram como um… Farristas… Não se preocupe comigo. Já vou indo. Bacanudamente. Se foram todos. As mulheres para casa. Os homens… Assim fazem… O banheiro nos fundos, disse…? Estarão por fechar. Os da mesa ao lado também se foram. Uma despedida de solteiro. Fizeram também ao noivo. Me olhava e fazia assim com os ombros. Olhos clarinhos, o noivo, viu? Carinha de bezerro. Lhe puseram um cadeado no saco. Delicado. Pode causar um dano irreparável. Quando Giannone se casou também lhe colocaram um cadeado no saco. Deve ser por isso que em todos os banquetes… Sangra pela ferida. Esfregou a torta no meu cabelo. Todo arranhado aqui… Umas unhas assim, Giannone. Toca violão. Você escutou…? É o que tocou Valderrama. Antes, eu sempre Pasional, e ele Valderrama. Hoje não me pediram Pasional. Se vê que o tema lhes dá nãoseioquê. Uma questão. É comprida. Giannone nunca quis me acompanhar: o meu é o folclore. Sacana: me bate pelas costas, Giannone. Mal encarado. Voltou, Monterito. Acabou o doce…

Estive… Estive… fora um tempinho.

Bebida ruim, Giannone. O senhor Malanca ficou vermelho. Lhe dava calor. Ninguém fala disso. Da minha… viagem. Estive… Estive… É comprida… Uma questão. Alguma outra hora, com mais tempo. Me agradou o lugar, não vai acreditar. A qualquer momento volto com a família. Não se preocupe comigo, eu já… Pode limpar que eu já… Presta atenção… Acabou o doce, Giannone. Todos querem saber, se nota. Mas ninguém pergunta. Como um doente. Vão se inteirando. Fofocas. Ligavam para Carmen, se vê. Dissimulam. Todos, o mesmo. Loucos para saber, mas dissimulam: duas caras têm a lua. Hoje, Giannone, o único. Como estava descarado, estimulavam. Se vê que lhes dava nãoseioquê, mas alfinetavam igual. Tira o couro de… Revida, Giannone. Descarado. Se desorienta. Malanca o olhou feio. As do caixa cochichavam entre si. Taboada soltou uma risadinha. Ninguém disse nada. Um mês que estou de volta ao escritório e ninguém me diz nada. Como se não tivesse faltado um dia. Mas eu me dou conta de que não é o mesmo. Me tratam diferente. Um doente. Alguém que saiu da prisão. Um corcunda. Já percebeu que ninguém diz a palavra corcunda na presença de um? Não se toca no assunto. Na sexta foram à sauna, mas nem mencionaram o tema. Se vê que ficam nãoseioquê. Hoje Giannone foi o único que… O resto, nenhuma palavra. Um defeito físico que não tem que… Será que ele viu o senhor Malanca… Olho: gerente de sucursal o senhor Malanca. Um cavalheiro inglês: Aproveitamos essa reunião da camaradagem para celebrar a reincorporação do contador Ramella à nossa querida instituição.

O pergaminho… Achei que o tinha… Bem vindo…

Estão por fechar. Já vou. Te deixo tranquilo. Está aí atrás das cadeiras empilhadas? Já foi? Não deveria ter… Tanto cuidado com a bebida e no fim… O brinde foi… Não deveria ter… Pelos comprimidos. Tomo comprimido. Nervos. Desde que voltei. Umas que tomava minha senhora. Comprimido com sidra… Disse ao senhor Malanca: a sidra me caiu mal. Não recomendam com medicamento. Não é nada, contador… – Gaucho, o senhor Malanca – Pode passar com qualquer um. Gaucho. Um cavalheiro inglês. Não como Giannone: me servia um copo atrás do outro. Se aproveitava: que fale Monterito. Queria me fazer entrar. Me via assim: queria que eu fizesse papelão. Que fale o turista. Risadinhas. Todos olhavam para o outro lado. Toda a tarde estive pensando: vão querer me fazer falar. Quis dormir a sesta, não pude pregar o olho. Primeiro sábado que fico em casa desde que… a viagem… É comprida. Algum dia com mais tempo. Nem um ruído em casa. O menino estava no Grupo Escoteiro. Carmen na cozinha. Preparava gelatina…

Gelatina fantasia…

Carmen: nenhum ruído… Agora fala pouco comigo. Não quero saber. Nenhum ruído e eu sem pregar o olho. Olhava o espelho… O crucifixo… Levantei e fui até o quintal. A piscininha de plástico cheia de água da chuva. Não limpavam vai saber desde quando. Dei uma esfregada com água sanitária. O limo. No meio do limo tinha uma fitinha para o cabelo. Dela.

Foi a sidra. Sidra com os comprimidos. Que fale Monterito: Giannone. Me fazia falar. Os dentes marrons de cigarro, o Giannone. Fala, Monterito, fala… Não abriam a boca os outros, mas com os olhos me diziam: conta. A boca aberta, todos. Olhando as guirlandas do teto. As Flores-de-sino. Conta. Risinhos. Água na boca. Eu tinha a vista fixa nas firulas do cartaz de Balneário Camboriú e minha cabeça girava. Conta. Quando dei por mim estava em pé e todos me olhavam. Ficou um silêncio… O senhor também me olhava, garçom. Te vi. Um pratinho de lulas fritas. Está por aí ainda? Incomodados, se nota. Eu já não via nada. Flutuava. Os olhos cheios de lágrimas. Me viu? Se encheram de lágrimas… O silêncio dava a sensação de que fazia ruído.

Me deixou por outro, disse, e parecia que era outro que falava e não eu. Olhavam para o outro lado. Um rapaz mais jovem… A orelha em pé assim, mas olhavam para o outro lado. Calixto, o rapaz. De Laferrere, como ela. Se conheciam do bairro. Se encontraram um dia na calçada em que estávamos passeando. Ela disse onde ficávamos. Se vê que depois, em algum momento, ele a.. a…

Incomodado o senhor Malanca. Tossezinha. A gravata.

Trabalham em um Pumper – o fast-food, os dois… Passei três dias procurando por ela quando se foi, e por fim, os encontrei no Pumper… Uniforme vermelho, avental azul, os dois. Enorme o Pumper. Recém inaugurado para as férias das crianças. Entregaram os uniformes no último dia. Não fizeram a tempo, se nota. Azul e vermelho, vi no último dia, antes de que eu…

Rosinha Propatto soluçava. Se cobria com o guardanapo dobradinho assim: Este homem está mal… Como conta…? Todas as noites, sem faltar uma, fui ao Pumper buscá-la. Pedir a ela. A observava do lado de fora. Incomodada, pobre Sandrinha. No primeiro dia o rapaz me bateu. Socaço. Vou responder o quê? Você tá apaixonado, Calixto. Sabe o que é um homem apaixonado. Sandrinha não saiu. Observava de dentro. Fria, a noite. Mar del Plata é assim. À noite se dorme com coberta. Me empurrou e fui direto contra o latão de papéis da calçada. Um hipopótamo de plástico, o latão de lixo. Bati aqui. Me abriu todo por dentro. A cara assim. Foi infeccionando, se nota. Mesmo assim, fui todas as noites, sem faltar uma. Ela entrava às oito e eu já estava ali. Me apoiava no hipopótamo e meus olhos se enchiam de lágrimas. Baixinho, cantava Pasional para ela. De dentro ela não me escutava, mas a cada tanto olhava e eu sei que lia meus lábios. Da máquina de Coca-Cola me olhava. No início saía e me expulsava: Não me procure mais. Me deixa tranquila. Acabou. Não te quero. O que que eu ia dizer…? Ficava calado um tempo e começava a cantar Pasional.

Alguns não aguentavam e riam. Pelo Pasional. Acham que eu não me dou conta? Eu sempre canto Pasional. Alguns tapavam a boca. Nardi. Mirevich. Pompei. Já não me importava nada. Você viu. Saía de dentro. Necessitava desafogar, se nota…. Explicar… Pedir a eles que voltem a… a… Não podia parar. Não tinha contado a ninguém…

Quando saíam do Pumper… os seguia. Para que eu não soubesse onde viviam, danavam a correr. Eu os seguia um pouco, depois me deixavam para trás. Dezessete e dezenove, imaginem. Maratonistas como Delfo Cabrera. Quatro ou cinco quadras e os perdia na neblina. Neblinosa, Mar del Plata de madrugada. Sentava na porta de uma loja. Agitado como um gato. Suava. Tinta da China Pelikan. Atacadista de ferramentas, a loja. As primeiras noites dormi no terminal. Fresco. Não comia. Não tinha dinheiro, mas também não tinha fome. Uma tarde cruzei com o senhor Belsito, me deu para o ônibus de volta. Colocou no meu bolso. A todo custo queria me acompanhar ao terminal. Com o dinheiro comprei uma orquídea para ela. Caixinha de celulóide. Essa noite fiquei tonto e caí na calçada do Pumper. Desmaiado. Carmen, às vezes, desmaia. Uma picardia a orquídea jogada na calçada. Calixto saiu feito um louco: Vão nos despedir. O que você vai conseguir é que vão despedir a gente. Eu disse que estava sem comer. Na saída Sandrinha me deixou uma caixinha feliz com um hambúrguer e batata frita pequena. Depois daí, todas as noites… De Roger Rabbit, a caixinha. Deixavam a caixinha e saíam correndo. Já se vê que isso os deixava mal. O senhor Malanca não queria escutar mais: já está bem, contador Ramella… O senhor não está em condições… Te dou uma carona… Mas eu já não podia parar. Um desafogo. Você vai dizer: que gosto, contar as coisas… Mas dá pra ver que precisava. Me brotava, como se diz. Um empregado da Cóndor me expulsou do terminal. Me viu assim com a boca inchada, me expulsou. Terminei dormindo nas rochas de Cabo Corrientes. Uma barra aí em Cabo Corrientes. Fazíamos fogueira, dormíamos todos debaixo de uma escada com o pessoal. Todos desesperados em Cabo Corrientes. Cada história…. Se um dia te contasse… O senhor Malanca fez como que tinha vontade de urinar, foi ao banheiro. Chega, Ramella: as moças do caixa. Um mês indo todos os dias ao Pumper. Pedindo. De joelhos. Levem-no para casa: Millán, da limpeza. Este homem não está bem. Um mês. Chova ou troveje. Ao final, o dono do Pumper fez um oficial me expulsar. Se nota que lhe deu algum dinheiro, me expulsou. Eu comecei a esperar por eles na esquina. Por sua mãe pedia que voltasse comigo. Me viam, corriam para o outro lado. Um meio dia, por fim, que quis segui-los pela Av. Luro, fui atropelado por uma moto. Entregava pizza. Pizzalândia. Hematomas, apenas. Contundido, dizem eles. Da policlínica avisaram a Carmen que foi direto para lá. Veio com o menino. A TV ligada no pavilhão. No programa Feliz Domingo para la Juventud. Carmen sentou do meu lado e via TV. Amanhã te levo para casa, me disse. Essas coisas passam. Você já vai se sentir mais aliviado. O passado pisado. O menino lia uma revista que tinham comprado para o ônibus. O passado pisado. Comecei a chorar baixinho. Com a boca assim parecia um gemido. Enquanto voltávamos, no ônibus, comecei a sentir aos poucos a dor se anestesiando. Em Dolores fizemos a mesma parada da ida. Me veio o corpinho dela encolhido contra a janela, mas senti que já não me doía tanto. Em Chascomús vi seu rosto iluminado pelos faróis de um caminhão, mais borrado e, no cruzamento Varela, o cheiro de xampu que se desfazia com o vento. Carmen descascou uma maçã que trazia e dividiu metade para Coco e metade para mim. E parece que começava a me aliviar. Que começava a acalmar dentro. Como se a maçã fosse vai saber o quê.

Foi assim. Estive enrolado, mas graças a Deus melhorei. Agora já estou bem. Passou. Graças a Deus. Me curei. Sou mais um. Mais um, muchachos. Não voava uma mosca na mesa. Mais um. O senhor do acordeom começou a tocar Barrilito de Cerveza. Você viu? Levantaram e foram dançar como gado. Como gado, propriamente. Várias mesas, uma ao lado da outra: nem deram a volta, empurraram e passaram pelo meio. Um desastre as toalhas de mesa. Sou mais um, muchachos. Passou. Não foi nada. A qualquer um podia… Domingo vou no almoço do sindicato. Ainda tem peixe-rei no rio Paraná de las Palmas. Flecha de Prata. O mesmo que falar com uma parede. Na sexta os acompanho à sauna para verem que me curei. Vão à sauna às sextas. Eu, um par de vezes fui, mas não quis… Jogam sinuca e são chupados. Como suas senhoras não chupam, são chupados aí. Sou mais um. Recuperado. Começaram a fazer burburinho. Carnaval Carioca. Não queriam me escutar mais. Se vê, não aguentavam. Começaram a falar entre todos. Riam alto de qualquer coisa. Mais um. De novo, mais um. Começaram a jogar confetes e serpentinas, migalhas. Eu estava aí no meio, mas faziam que não me viam. Me ignoravam. Eu queria jogar também. Mais um, lhes dizia… Já estou. Joguei uma serpentina na direção do Nardi. Como que não me via, levou adiante. Giannone me deu aqui com um pão. Arde. As meninas também começaram a jogar coisas. Falavam entre eles, dançavam, ninguém me olhava, mas todos jogavam coisas em mim. Alguém esvaziou um copo aqui. Porque… Sou mais um. Me curei. Vou organizar de novo a farra. Vou me inscrever no Círculo de Leitores. Os Caçadores de Tesouros do Lions Clubs International… Outro pão aqui na orelha. Ainda apita. O bico do sifão pela gola da camisa. Me deram com algo aqui nas costelas, um saleiro. Mais um… Vou entrar no sorteio do vídeo e vou comprar uma raquete de paddle… Mais um…

Eu também vou ser chupado na sauna.

O senhor Malanca se levantou. Pensei que fosse intervir, mas pegou o paletó e se foi.

Aí Giannone, a torta aqui. Umas unhas como abridor de lata. Um resto de abóbora em calda. A rolha da sidra. Curado. Mais um. Entrei debaixo da mesa, mas continuavam. Giannone, o mais besta se identificava claramente: sapatos combinados. Chutava de bicuda. Mais um. Me encolhi, fiquei até que se foram.

E faz pouco se foram, não?

Até aqui chegou meu amor. Já passou da hora.

Tarde. Hora de voltar para a casinha.

Que aspecto para voltar para casa. Carmen vai pensar nãoseioquê.

Está sensível Carmen agora. Não se toca no assunto, mas percebo que está sensível.

Já vou indo. Está por aí? Pode limpar à vontade que eu já vou indo.

Seguramente lhe deixaram uma gorjeta. Na soma dos pratos calculamos sempre a porcentagem. Te deixo, por qualquer coisa. Melhor sobrar. Agradecido pelo bom serviço.

Está aí? Para que não pegue outro garçom. Uma injustiça. Farto, limpo e bem servido.

Bacanudamente.

Até aqui chegou meu amor.

Monterito inicia o retorno.

***


Diego de Angeli é formado em cinema pela PUC-Rio e teatro pela CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), diretor da Pangeia cia.deteatro, atua também como roteirista, dramaturgo e tradutor e, atualmente, reside em Buenos Aires, onde aprofunda seus estudos em dramaturgia.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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