Power to the people ou Não duvide de uma vaca

Crítica da peça Edypop de Pedro Kosovski

31 de março de 2014 Críticas
Carolina Lavigne e Jorge Caetano. Foto: Divulgação.

LAIO

(…) Os heróis valentes se espalharam pelos quatro cantos do mundo vivendo muitas aventuras em busca da irmã. Mas certo dia, um dos heróis cansou-­se de tanto buscar. Ele falhou. Sentiu-­se muito envergonhado com isso. Imaginou que jamais conseguiria voltar para sua terra e encarar seu próprio pai. Então,o herói pediu ajuda a um oráculo que lhe ordenou: “Abandonai imediatamente a busca por vossa irmã. Fundai uma nova cidade e sede rei! Quando encontrardes uma vaca, não duvideis: Segui-­a! Seguireis a vaca continuamente e não olhareis para trás. Na terra em que cair a pobre vaca fustigada pelo cansaço vós fundareis uma cidade”. Esta é história desta cidade. A história do pai do pai do pai do pai do papai. Hoje eu sou o rei e um dia será sua vez. (…)

Trecho de Edypop, de Pedro Kosovski

Introdução

Edypop estreou em janeiro de 2014 no Espaço Sesc, em Copacabana, e faz segunda temporada no Espaço Cultural Sergio Porto, na programação do Projeto Entre, em abril. Olhando para o primeiro trimestre de 2014 no teatro carioca, Edypop se destaca, a meu ver, como um dos poucos trabalhados que se dão ao risco no que diz respeito à pesquisa formal.

O título da peça provoca a convivência de duas ideias de arte que poderiam ser vistas, sob um olhar apressado, como contraditórias: a tragédia clássica e a cultura pop. Digo “sob um olhar apressado” porque a dicotomia presente no humor do título não é apenas da ordem da oposição, mas da relação dialética. O contrassenso em Édipo/Pop não é aproximação aleatória de ideias díspares, é produção de sentidos, fruto da complexidade das imagens produzidas a partir da grafia EDYPOP. De um lado, o trágico – solene, inalcançável, profundo, reservado. De outro, o pop – urbano, bem-humorado, despretensioso, acessível. A convivência entre o alto e o baixo está nomeada desde antes da peça começar. Além disso, o título dá o tom de uma possível proposta artística do espetáculo: a arte como comentário sobre a história da arte. Mas esta é apenas uma possibilidade entre muitas.

Edypop é um trabalho de continuidade da pesquisa da Aquela Companhia com textos de Pedro Kosovski, autor que não se furta a colocar em cena suas referências intelectuais, que desestabilizam dogmatismos e oferecem ao espectador a oportunidade de complexificar a sua visada sobre a arte e sua relação com o teatro. Foi assim com Outside, que trazia Adorno, David Bowie e o mundo da arte contemporânea, e (embora em outra direção) com Cara de Cavalo, que apresentava Hélio Oiticica, Nelson Rodrigues, a arte moderna e a influência da mídia audiovisual na vida urbana contemporânea.

Algumas questões da história da arte, questionamentos mais comumente ligados às artes visuais, são parte da noção de teatro do autor – o que provavelmente faz com que o seu trabalho criativo seja mal compreendido e/ou sub-apreciado pela chamada “crítica especializada” de teatro do Rio de Janeiro. A cultura de teatro da cidade é, via de regra, pouco ventilada e nada afeita a questionamentos filosóficos no que diz respeito à arte. Para fruir do espetáculo, um acúmulo de conhecimento sobre o mito de Édipo ou sobre o Édipo-Rei de Sófocles ou sobre a tragédia grega de modo geral pouco nos serve se não nos intriga a pop art e a liberdade criativa que ela trouxe ao mundo da arte.

A primeira música a ser tocada na peça é Tomorrow never knows, do álbum Revolver, dos Beatles, levada com um arranjo singular de Felipe Storino e um aprofundamento da distorção, já proposta na versão original, na voz de Gabriela Geluda. A letra é praticamente um convite a uma experiência. Curiosamente, a canção foi lembrada no ano retrasado no oitavo episódio da quinta temporada de Mad Men, seriado americano da AMC que passa na HBO. Mad Men é interessante para pensar a pop art. A série apresenta (com situações ficcionais) o contexto histórico por trás da construção de marcas que figuram no imaginário popular (não somente) americano dos anos 1960 até hoje. Não houve, até agora, nenhuma referência direta às imagens das Brillo Boxes ou das latas de Campbell Soup visualmente citadas por Andy Warhol, mas o contexto nos coloca em sintonia com a Nova York da época e com a relação da cultura local com as marcas de seus produtos preferidos. No episódio, a canção dos Beatles entra como exemplo de um gap de gerações. O protagonista da série, Don Draper, não acompanha as rápidas mudanças culturais de seu tempo. Sua mulher, mais jovem, atriz, sugere que ele comece a se interar do que está acontecendo ouvindo essa música. Ele tenta, mas não escuta a canção até o final, nem as outras do LP. Ele não embarca, faz a opção da resistência. Isso é uma questão na fruição de Edypop. É preciso estar disposto a embarcar.

A música ganha um peso na dramaturgia que vai um pouco além das peças anteriores do grupo. Ainda assim, a música não está no foco do recorte que me proponho a fazer aqui – mas vale destacar que mereceria um texto só sobre esse elemento do espetáculo, com uma hipótese sobre o seu papel como coro. A banda conta com Felipe Storino – que assina direção musical e arranjos – na guitarra e Mauricio Chiari na bateria, além das atuações de Isadora Medella (voz, baixo elétrico e charango), Paula Otero (voz e violoncelo) e Gabriela Geluda (voz e teclados), com breve participação de Pedro Kosovski (que assina canções originais com o diretor musical) no teclado ao final do espetáculo. As três mulheres funcionam como uma extensão (espacial e dramatúrgica) da banda, em participações que, em certos momentos, remetem às bruxas de Macbeth. Mas elas também atuam como mestres de cerimônia e criadas do palácio que cuidam do pequeno Edy, exercendo uma função épica na peça. Além das cenas dialogadas e canções, elas pontuam o espetáculo com ruídos sonoros e movimentos ritualísticos.

No palácio de Laio (Remo Trajano) e Jocasta (Letícia Spiller), o bebê Edy (João Velho) está crescendo, assim como o impulso de infanticídio na cabeça de seu pai. O irmão de Jocasta, que conhecemos como Creonte, aqui se chama Clemente Greenberg (Jandir Ferrari): ele é o chefe da segurança do palácio – uma questão a se discutir. Diante da enfermidade do rei, Jocasta manda desenterrar o Dr. Freud (Jorge Caetano), que chega com a sua companheira, Ana O. (Laura Araújo). O ingrediente surpresa é um manifestante mascarado, John Lennon (Carolina Lavigne).

Com direção de Marco André Nunes, o texto de Pedro Kosovski é encenado como um show de rock. A visualidade do espetáculo contribui para a atmosfera de show, especialmente nos figurinos de Marcelo Marques, que têm uma personalidade nada cotidiana e se articulam bem com o visagismo de Josef Chasilew. A cenografia de Fernando Mello da Costa apresenta uma ambientação simbólica, com um desenho no chão que se assemelha a um mapa astrológico, um grande olho pendurado ao teto e uma parede no fundo do palco feita de vassouras, que cria uma textura interessante. Essa parede recebe textos projetados (o videografismo é de Gustavo Gelmini) e rebate diferentes cores, oferecidas pela iluminação, criada com mão firme por Renato Machado. A luz propõe recortes individuais, como focos cinematográficos, dando mais ênfase às figuras e aos climas do que às situações da trama, oferecendo vislumbres e pontos cegos, raramente iluminando todo o espaço cênico. Ela projeta formas abstratas no chão e se vale da dinâmica dos moving lights e dos canhões, recursos técnicos mais comumente utilizados em shows do que no teatro. A iluminação é bastante responsável pelo movimento do olhar do espectador na peça.

Mas vamos àquela questão apontada acima, a referência a Clement Greenberg no lugar do chefe da segurança do palácio: o que faz o tão debatido crítico norte-americano no lugar de Creonte?

Clement Greenberg e a pop art

A pop trouxe uma ideia de liberdade para a arte que jogou por terra as teorias teleológicas da grande narrativa da história da arte: foi como a invasão de um palácio sem a intenção de entronar um novo rei. Para contextualizar o surgimento da pop em contraponto ao pensamento de Clement Greenberg, podemos nos aproximar da leitura de Arthur Danto, em seu artigo Pop art e futuros passados, publicado no livro Após o fim da arte – a arte contemporânea e os limites da história. Danto apresenta o modernismo de Greenberg como desenvolvimentista e progressivo. O conjunto de discursos construídos em torno do expressionismo abstrato na Nova York dos anos 1950 afunilava a história da arte, reduzindo a amplitude do moderno à ideologização de um modelo de modernismo restrito à abstração, de modo que o expressionismo abstrato passara a ser “o emblema da legitimidade artística da época” (DANTO, 2006, p.134). Clement Greenberg, em seu Rumo a um novo Laocoonte, afirma que a abstração era um imperativo da história. Com isso, queremos apontar que Greenberg, como crítico, adotava uma postura assertiva com relação à arte moderna naquele momento.

Rodrigo Naves, em sua introdução à edição brasileira de Arte e cultura, coletânea reunida pelo próprio Greenberg, situa o leitor no que diz respeito às críticas feitas ao crítico:

“Seu sistema seria não apenas estreito e unívoco como também incapaz de incorporar trabalhos de arte que lidavam com outras interrogações. E, de fato, Greenberg praticamente irá desconsiderar movimentos como a pop e o minimalismo.” (GREENBERG, 1996, p. 11)

Aí vislumbramos uma possível visada de Greenberg na dramaturgia de Pedro Kosovski: um crítico que não consegue lidar com questões outras, questões diferentes daquelas que ele considera relevantes; um defensor de um determinado reinado, que lança mão do poder do discurso para legitimar o seu pensamento, que exerce uma função de crítica/polícia. Com isso, a peça não está dizendo que Greenberg era apenas isso ou simplesmente isso – afinal, ele realmente não era apenas isso ou simplesmente isso. Não há nada no espetáculo que tente dar conta de qualquer uma de suas referências como um todo. A associação Greenberg-Creonte sugere um possível Greenberg ligado a um possível Creonte.

Voltando a Danto, ele toma partido da pop art quando faz a seguinte afirmação:

“Endosso a narrativa da história da arte moderna em que a pop desempenha o papel filosoficamente principal. Em minha narrativa a pop marcou o fim da grande narrativa da arte ocidental ao trazer à autoconsciência a verdade filosófica da arte.” (DANTO, 2006, p.135)

Ele esclarece que assistiu, em 1964, à exposição da Brillo Box de Andy Warhol na Stable Gallery e que, a partir daí, entendeu que toda a estrutura de debate sobre a arte moderna, que vigorava até então, não servia para lidar com aquilo. A pop desmantela a direção unívoca da arte: a partir daí, fica mais claro ainda que não existe um jeito mais certo ou mais atual de fazer arte. O que foi colocado como fim da história da arte é o fim de uma busca por uma identidade filosófica da arte. Segundo o pensamento de Danto, aquela determinada narrativa chegou a um fim. E aqui chamo a atenção para uma leitura de “o fim da arte” como “o sim da arte”, ato falho do discurso de Laio que faz todo o sentido sob essa perspectiva.

O que considero importante com essa questão que a peça levanta é que o teatro e a crítica se desentendem profundamente quando a crítica não se dá conta de que precisa renovar suas premissas e seu espectro de conhecimento para continuar viva no debate. Por conta disso, a questão pop versus Greenberg é surpreendentemente atual e relevante no nosso cenário, não é uma citação aleatória da dramaturgia.

Andy Warhol. Foto: Getty Images.

“Todo ser humano é artista” – arte, poder e política

O fim daquela narrativa de uma história da arte que supostamente caminhava numa direção unívoca significa a abertura das possibilidades da arte em múltiplas direções. Aí entra uma outra questão, que Danto também aponta e que tem uma relação muito forte com a invasão de um palácio de uma família reinante – invasão esta que não tem um programa político definido, que não é iniciativa de uma outra família nobre. É a invasão do qualquer um. A invasão do anônimo. A questão que Danto aponta é que a explosão da pop é o que permite a afirmação de Joseph Beuys, “todo ser humano é um artista”. A velha ordem é balançada por uma nova (des)ordem. A crise da arte está diretamente relacionada à relação da cultura com o poder. A transfiguração do comum, uma espécie de adoração do comum, que é característica da pop, implica em larga medida o empoderamento do comum. Power to the people: “o sim da arte”.

Greenberg não compartilhava da visão de Beuys. A presença de um certo Greenberg no lugar de poder do palácio de Laio e seu esforço para deter os mascarados (anônimos) pode ser uma brincadeira com a possibilidade da invasão do qualquer um ao palácio da Arte (com letra maiúscula). Além disso, vale lembrar que arte, polícia e política estão entrelaçadas na dramaturgia de Pedro Kosovski – e os textos publicados anteriormente na Questão de Crítica sobre estes trabalhos dão atenção à questão – desde Outside, passando por Cara de Cavalo e agora em Edypop.

O Greenberg da peça explicita esse problema do “todo ser humano é artista” no seu diálogo com Jocasta:

“JOCASTA: O que querem os mascarados? Quais são suas demandas, suas reivindicações?

CLEMENTE: Querem tudo.

JOCASTA: Então não querem nada.

CLEMENTE: Cansaram-se de ser meros espectadores querem ser artistas, como nós.” (1)

Pedir aos manifestantes de junho de 2013 no Rio de Janeiro uma pauta de reivindicação e a organização de uma liderança é como exigir da pop uma nova narrativa ou uma nova direção – aí também enxergo uma afinidade entre a presença da música de John Lennon, a referência a Clement Greenberg e a representação simbólica dos manifestantes mascarados nos portões da casa de Laio.

Power to the people de John Lennon é parente de “todo ser humano é artista” de Joseph Beuys, embora seja necessário marcar a diferença e chamar atenção para o fato de que, no caso de Lennon, não se tratava de um projeto, mas de um impulso de responder ao momento. “Power to the people” era um jargão da época, assim como “Give peace a chance”. Me parece que o afrouxamento das propostas, uma certa impossibilidade de fazer delas grandes projetos – como desejaria Beuys no seu romantismo – também tem a ver com a pop. E nós vivemos o futuro disso.

Na peça, quando os mascarados invadem o palácio, a sensação que temos é de que eles não sabem o que fazer. Essa sensação é provocada por um fator literal. Os atores que fazem os mascarados são alunos da escola de teatro O Tablado, não têm a segurança dos demais atores. Na semana da estreia, quando assisti pela primeira vez, parecia que eles de fato não sabiam o que fazer em cena. Uma opção arriscada da encenação, mas que trazia à flor da pele uma inquietação e colocava no espetáculo um dado de realidade: nós não sabemos o que fazer. Ninguém sabe o que fazer, por exemplo, nas próximas eleições para governador no Rio de Janeiro. Ninguém sabe o que fazer diante da escassez desértica de verbas para a cultura na cidade no ano da Copa do Mundo e às vésperas das Olimpíadas.

Depois, quando assisti à peça novamente ao final da primeira temporada no Espaço Sesc, a cena estava mais bem resolvida do ponto de vista técnico, mas o incômodo continuava. O incômodo é uma característica, uma opção estética, não um defeito. Na invasão dos mascarados, dois casais gays se beijam. Acontece um beijo entre duas mulheres, ou melhor, entre uma mulher e uma menina, e entre dois homens, um branco e um negro – prato cheio pra classe média carioca amargar seus preconceitos.

Se aqueles mascarados se rebelaram contra alguma espécie de tirania e uma das primeiras coisas que eles fazem quando ocupam o palácio é se beijar, parece que estamos diante de reivindicações básicas, como o fim da criminalização do amor. Além disso, a maldição dos Labdácidas (a casa de Lábdaco, pai de Laio) é um castigo por um amor homossexual. Ou seja: não há nada gratuito aqui. E não me parece possível esperar desta cena um grande discurso de um novo líder ou uma ação espetacular. O teatro não resolve o que não tem resposta na vida.

Freud explica

Por falar no que não tem resposta, diante da enfermidade do Rei Laio, Jocasta manda desenterrar o Dr. Freud, que vai tratar o tirano sem promessa de cura. “Peço que se enganem comigo”, ele diz logo de início. Tratado como um embuste pelo Greenberg da peça, ele aqui poderia até se chamar Dr. Fraude.

Como já me estendi ao tratar da referência a Greenberg, procuro tratar da referência a Freud de maneira mais concisa. Começo sugerindo pensarmos no simples fato de que Freud é pop. Talvez não seja exagero dizer que Édipo é mais conhecido por causa do Complexo de Édipo do que pelo mito grego ou mesmo pela tragédia de Sófocles. Freud está no nosso imaginário mesmo que não se saiba de fato do que se trata, mesmo que o conhecimento sobre suas questões seja terrivelmente raso – como no meu caso.

Quando criança, escutava em casa um tal de “Freud explica” a cada vez que alguém falava ou fazia alguma coisa minimamente fora do normal. Em uma busca rápida na Internet, descubro que há um blog de psicanálise intitulado Freud Explica e uma página no Facebook com esse nome, vejo que a expressão foi a manchete de uma matéria da Revista Exame sobre o aumento de salários de psicólogos, está na letra de uma música do Zé Ramalho (Chão de Giz) e no nome de uma música de Wesley Safadão e Garota Safada, banda de forró de Fortaleza, Ceará. O que quero dizer com isso é que Freud não é tanto uma referência intelectual, como Greenberg. Ele é praticamente um ícone e me parece que a relação com a figura de Freud na peça vai mais por esse viés, ou seja, é da ordem da provocação e do humor.

Arrisco dizer que o primeiro gesto da dramaturgia é uma transferência: a questão de Edypop é o pai. O olhar sobre o mito recai sobre Laio e o desejo do infanticídio. Ao deslocar o foco para Laio, a dramaturgia desvia de uma expectativa específica e opera uma abertura do olhar. Parece que uma boa medida da carga de clássico está na narrativa de Édipo-Rei. A “cultura geral” mal chega a Laio, a não ser como coadjuvante da história do filho. Mas a maldição começa em Laio. Seu amor pelo jovem Crísipo é a causa da maldição que recai sobre Édipo. Mas a trajetória psíquica de Laio na peça não é diferente da trajetória do mito de Édipo como o conhecemos: ele vive infortúnios e tem sua posição ameaçada no processo de descobrir quem ele é. No caso de Laio, não se trata de descobrir sua verdadeira identidade, suas origens e seu destino, mas de entender as suas questões. Ambos vivem, de certo modo, a mesma maldição. O ponto de partida da peça é a confusão mental de Laio; seu ponto de chegada é reconhecer o desejo de matar o filho. É o gesto de entregá-lo para a morte que liberta a criança que, a partir daí, vai começar a andar e falar.

Assim, a dramaturgia se propõe a uma arqueologia das origens e se permite escavar o solo fértil da mitologia grega sem a carga pesada do cânone do trágico clássico. Nesse deslocamento, uma possível aproximação biográfica: o autor teve seu primeiro filho recentemente. E a paternidade é uma questão pouco discutida na sociedade em que vivemos.

Bons momentos da peça acontecem no encontro entre o Freud de Jorge Caetano e o Laio de Remo Trajano, mesmo antes de Freud entrar em cena. A imagem de Freud aparece, sub-repticiamente, nos atos falhos do discurso de Laio. Grosso modo, um ato falho não é um erro comum, é como um sintoma, algo que vem à tona a partir do inconsciente. O tal discurso é escrito por Greenberg e lido por Laio, sob a pressão de Jocasta, ao povo de Tebas. Laio troca algumas palavras e expressões, tornando o sentido das frases perverso. As palavras destes atos falhos são projetadas no fundo do espaço cênico na medida em que elas surgem no discurso, como se fossem latências.

Esses atos falhos do rei têm a sua graça, mas não são piadas de comédia, feitas para provocar o riso no público. São chistes, brincadeiras com a fala e com a linguagem. A peça é pontuada por uma série desses chistes. Por exemplo, quando Jocasta é apresentada a Ana O., ela se refere à moça como “Ana uó”. Essas brincadeiras nas falas da peça também têm parentesco com Freud, nesse lugar escorregadio da linguagem em que se situa o ato falho.

Para dar outro exemplo, recorro a um improviso. Na segunda vez em que assisti à peça, Remo Trajano aproveitou uma casualidade do momento para fazer, ele mesmo, um chiste. Em uma cena em que está sozinho com o Dr. Freud, um dispositivo de iluminação que ficava no chão no fundo do palco tombou e ficou torto. O ator interrompeu brevemente o diálogo para arrumar a luz e logo em seguida se justificou para Freud, dizendo que tinha TOC. O chiste improvisado apareceu por conta da presença de espírito do ator, que revelou ali uma relação de intimidade com a linguagem do texto, não apenas com o personagem ou com a cena.

Linguagem

Os chistes são uma opção de linguagem. Acredito que o entendimento disso se materializa em diferentes graus no elenco, o que determina certo desnível nas atuações. As presenças de Laio e Freud ganham corpo com a destreza dos seus intérpretes nessa lida com a linguagem, enquanto Jocasta, Greenberg, Edy e Ana O. ficam um pouco presos pela dificuldade dos atores de soltar as rédeas da forma. Jandir Ferrari, por exemplo, poderia se divertir mais com as ambiguidades do personagem, que é como um ícone às avessas, um anti-ícone. Seu tipo físico e sua voz forte que em nada remetem a uma referência acadêmica, me fazem questionar se a peça não mereceria um número musical só para o seu Greenberg.

A encenação se beneficia bastante do rigor técnico de Remo Trajano na lida com os excessos. Laio é cheio de trejeitos e está sempre engasgado, nervoso, com medo. Um ator que caísse de paraquedas na mesma situação correria o risco de não dar conta, mas não é o caso. Vale reparar na construção do trabalho em grupo, na continuidade de uma pesquisa que já está no seu terceiro degrau. Em Outside, o ator tinha uma participação discreta, porém constante. Em Cara de Cavalo, a demanda era bastante sofisticada, como bem descreve João Cícero Bezerra em sua crítica:

“O ator que faz Cara de Cavalo (Remo Trajano) constrói o seu personagem sabendo que ele é, ao mesmo tempo, um bandido real e a criação de um discurso da imprensa e do artista Hélio Oiticica. O trabalho do intérprete vai desde construir um personagem rude, dentro do registro realista, até tocar na mudança, instantânea, em direção à imagem criada pela imprensa e por Hélio Oiticica – saindo, consequentemente, do registro do real para a neutralidade do símbolo.” (BEZERRA, 2012, s/p)

A prontidão exigida pela mudança instantânea do estatuto da figura que é personagem/símbolo em Cara de Cavalo serve ao lugar de ambiguidade necessário à figura de Laio e à articulação da linguagem do chiste, que só faz sentido quando a enunciação não é unívoca, quando o ator consegue jogar a ambiguidade sem priorizar um dos sentidos. O trabalho de Remo Trajano em Edypop é uma boa oportunidade para pensarmos a diferença entre domínio e controle. O domínio pressupõe uma dose de descontrole, que o ator maneja na medida.

Remo Trajano e Jorge Caetano. Foto: Chico Lima.

As atuações de Jorge Caetano e Carolina Lavigne também são bastante afinadas com a proposta artística do espetáculo. A cena entre Dr. Freud e John Lennon na prisão é memorável. A pulsação da cena se deve à relação dinâmica entre imagens improváveis como o visagismo afetado para a composição de Freud e a máscara desconcertante de John Lennon, bem como entre a diferença de tônus dos dois artistas. Jorge Caetano está cheio de vigor, enquanto Carolina Lavigne está leve e serena. Parece que é a fricção entre estas duas qualidades de presença que provoca a faísca da cena.

Todo o personagem de Jorge Caetano é um chiste: sua presença na trama, sua condição anacrônica de “desenterrado”, a aparência, suas falas, as cenas de exame médico com Laio. Destaca-se também a entrega à coreografia propositadamente ridícula para a canção O grito e o momento solo em que canta Jealous Guy, com direito a uma versão contida, um pouco séria, e uma versão afetada pela cocaína, na qual ele também trabalha com precisão técnica na lida com a demanda de excessos. A direção de movimento de Marcia Rubim aparece mais nestas cenas, por assim dizer, performáticas, que na lida de cada ator com os detalhes das suas composições.

A delicadeza punk de Carolina Lavigne para o papel de John Lennon é uma escolha interessante para a peça. A suavidade da sua voz e a despretensão quase blasé do seu corpo desestabilizam a relação do espectador com os outros personagens – o que age em consonância com a função dramatúrgica do seu papel. Soma-se a isso o acúmulo de quem tem a memória da atriz entrando em cena pela plateia do Teatro Tom Jobim como Norma Jean Baker em Outside. Sua atitude de quem não se importa, de jeans e casaco de moletom, contrasta com o corpo trabalhado da Jocasta de Letícia Spiller, emoldurado por um vestido bonito e imponente, apresentando concepções diferentes do corpo feminino, sugerindo uma liberdade sem necessidade de afirmação. Sua presença aponta para algo novo e indefinido, como em Outside.

Mau gosto

João Velho e Carolina Lavigne. Foto: Divulgação.

Com a menção a Clement Greenberg, vem à tona uma ideia de bom gosto que a peça nega ostensivamente – e essa tensão aparece no texto em diferentes momentos na voz do crítico na pele de Creonte.

Infanticídio, parricídio, incesto, peste, agressões físicas em manifestações políticas, abuso de poder. Não tem espaço para o bom gosto nessa peça. Também não parece de bom gosto, para o público carioca, que a chamada cidade maravilhosa seja comparada a uma Tebas tomada pela peste. E a tirania está mais perto do que gostaríamos da nossa suposta democracia. No cenário, um olho horroroso está sempre presente. Será um dos olhos que Édipo vai arrancar no futuro? O olho vigilante da polícia? O olho das aventuras sexuais “de mau gosto” de Georges Bataille em A história do olho?

Em uma entrevista concedida a Fátima Pinheiro, publicada no Blog da Subversos, o autor se refere a um “mau gosto constitutivo” da peça. Essa me parece ser uma questão central do trabalho. O tal “mau gosto” é uma inevitabilidade do ponto nevrálgico deste momento da pesquisa da Aquela Companhia. Um desvio disso seria uma espécie de traição. A pesquisa artística do grupo se permite errar, no sentido de vagar, perambular, percorrer suas questões – correndo o risco de errar no sentido de equivocar, claudicar, confundir, desacertar (liberdade que este texto crítico tomou para si). Com isso, quero dizer que o registro da linguagem em Edypop é da ordem do equívoco, no sentido amplo. A linguagem se abre à deriva, o que incomoda o espectador mais conservador, que espera assistir a um espetáculo “redondo”, “bem resolvido”, que mesmo que trate de questões escorregadias, dê um jeito de arrumar tudo no final.

É a expectativa pelo belo animal. (Já que estamos falando de Édipo, podemos invocar Aristóteles.) No Léxico do drama moderno e contemporâneo, organizado por Jean-Pierre Sarrazac, o verbete Belo animal (morte do) é bastante esclarecedor. Na Poética, Aristóteles compara a fábula a um ser vivo cuja beleza reside na extensão e na ordenação, instituindo assim uma concepção organicista de uma peça de teatro que é muito cara à estética ocidental. Para dar uma imagem da dramaturgia moderna e contemporânea, Sarrazac contrapõe a esse belo animal uma imagem kafkiana, a “estranha besta, metade gato, metade cordeiro” de uma de suas histórias. (SARRAZAC, 2012, p.42) É a própria ideia de dramaturgia que está em jogo. Edypop é uma estranha besta, metade um bicho, metade outro, como uma esfinge.

Pedro Kosovski e a Aquela Companhia não estão atrás do belo animal. Como o ancestral de Laio, eles não têm uma direção certa a seguir, eles estão andarilhos. E se permitem seguir a vaca. É o conselho de John Lennon para o jovem Edy: “Vai. Segue a vaca.”


Nota:

(1) Texto não publicado, cedido pelo autor.

Referências bibliográficas:

BEZERRA, João Cícero. Arte-violência e a pluralidade de contextos. In Questão de Crítica, setembro de 2012. Disponível em http://www.questaodecritica.com.br/2012/09/arte-violencia-e-a-pluralidade-de-contextos/

DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. A arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

GREENBERG, Clement. Arte e cultura. Ensaios críticos. São Paulo: Editora Ática, 1996.

PINHEIRO, Fátima. O artista por ele mesmo – Pedro Kosovski. In Blog da Subversos. Disponível em http://blogdasubversos.wordpress.com/2014/02/20/o-artista-por-ele-mesmo-pedro-kosovski/

SARRRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Sugestões de leitura:

GREENBERG, Clement. Clement Greenberg e o debate crítico. Organização e notas de Glória Ferreira e Cecília Martins de Mello. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

DE DUVE, Thierry. Kant After Duchamp. In Revista do Mestrado em História da Arte EBA, 2º semestre de 1998. p. 125-152. Disponível em http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2012/01/Kant-depois-de-Duchamp-Thierry-De-Duve.pdf

KOSOVSKI, Pedro. Outside. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2012. Selo Questão de Crítica. Coleção Dramaturgias.

Leia na Questão de Crítica:

Crítica de Outside, por Daniele Avila Small, na edição de fevereiro de 2012: http://www.questaodecritica.com.br/2012/02/%E2%80%9Ceu-queria-falar-que-eu-sou-a-norma-%E2%80%9D/

Crítica de Cara de Cavalo, por João Cícero, na edição de setembro de 2012: http://www.questaodecritica.com.br/2012/09/arte-violencia-e-a-pluralidade-de-contextos/

Artigo de João Cícero sobre Cara de Cavalo e Farnese de Saudade na edição de dezembro de 2013: http://www.questaodecritica.com.br/2013/12/a-dobra-e-a-separacao/

Assista ao vídeo da mesa-redonda (do 2º Encontro Questão de Crítica) que deu origem ao artigo acima mencionado no nosso canal no Vimeo: https://vimeo.com/81711099

Daniele Avila Small é mestra em História Social da Cultura pela PUC e bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

Vol. VII, nº 61, março de 2014

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