“Eu queria falar que eu sou a Norma.”

Crítica da peça Outside, um musical noir, de Pedro Kosovski

21 de fevereiro de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

Seis meses depois de ter visto a peça pela primeira vez e três meses depois da segunda oportunidade que tive de assistir a esse espetáculo, pude ler o texto escrito por Pedro Kosovski, em colaboração com o diretor, Marco André Nunes, e com o elenco da peça. O fim do ano, com sua demanda de retrospectivas, me fez pensar de novo em Outside, um musical noir, sobre o qual pensei em escrever algumas vezes. Além de apresentar trabalhos individuais muito bem sucedidos, como os figurinos de Flavio Graff e a direção musical de Felipe Storino, Outside ficou na minha memória como um espetáculo bastante atípico no teatro carioca, mesmo com a considerável diversidade das propostas artísticas da cidade: uma improvável mistura do gênero musical (tantas vezes frívolo e até apelativo) com questionamentos sérios sobre a arte contemporânea (mais comumente discutida em espetáculos de menores proporções).

A peça pede tempo. Depois de entender o tempo da peça, assisti-la pela segunda vez foi mais prazeroso. O tempo das coisas não está dado a priori. A disponibilidade para ver a peça é como a disponibilidade para ouvir um LP. Ouvir um lado inteiro, virar o disco, e depois ouvir o outro, até o fim. O texto materializa isso quando chama as cenas de faixas – Faixa 1, Faixa 2, etc. – e se refere aos seus dois atos como lados – Lado A, Lado B. Penso que se eu tivesse folheado uma publicação do texto da peça antes de assistir ao espetáculo, talvez tivesse entendido isso de antemão.

O que me parece de maior relevância em Outside, no que me diz respeito diretamente, é a crítica embutida na trama, o comentário inserido na ação de uma forma muito bem arquitetada: a perversa aproximação entre crítica e polícia. É claro que a ênfase se dá porque pesquiso a crítica e especialmente sua relação com a arte contemporânea. Para outros espectadores, o universo artístico de David Bowie, por exemplo, pode chamar mais a atenção. A grande figura do departamento de crimes de arte instalado na galeria Peggy Guggenheim, em que se passa a peça, atende pelo sintomático nome de Teodoro Adorno. Adorno afirma que o trabalho deles não é dizer o que é certo ou errado, mas avaliar o valor artístico do ato. “Eles”, aqui, são os integrantes da equipe deste departamento. Investigação e pesquisa são sinônimos claros nesse caso. No entanto, eu diria que mais do que avaliar o valor artístico, o que eles investigam é o estatuto da obra, a natureza do gesto que a institui. Essa é uma investigação crítica.

Portanto, aquele departamento poderia, de certo modo, ser considerado o lugar da crítica. Com sutileza, o texto sugere o quanto a crítica se vê misturada nesse lugar de polícia, que não é o da investigação, mas o da vigilância e da sentença – a polícia que está de olho e à espreita para flagrar um crime, apontar culpados, decretar “prisões”. Acho que é possível fazer essa aproximação, especialmente se o personagem que comanda a investigação se chama Adorno. Para muitos, o nome não quer dizer nada, mas pelo próprio discurso do personagem, acredito que a associação seja válida.

Foto: Divulgação.

Com relação ao espetáculo, há questões da direção dos atores que podem ser discutidas. Há diferenças nos registros de atuação do elenco, o que poder ser uma opção do diretor, tendo em vista o apelo barroco da encenação. Há, por um lado, um histrionismo que aparece no trabalho de Letícia Spiller e de George Sauma que esvaziam um pouco a cena justamente na medida em que se esforçam por preenchê-la. Esse pequeno descompasso me parece estar no fato de que o texto já coloca muita coisa em jogo. Quando a direção opta por sublinhar as nuances, comentar o que poderia ser apenas uma alusão, o espectador fica sem muito espaço para dar a sua própria ênfase. Por outro lado, o trabalho de Marco André Nunes com alguns atores produziu momentos que merecem menção.

O texto apresenta, por exemplo, possibilidades de composição da personagem Peggy Guggenheim que permitiriam uma leitura mais complexa. É visível o genuíno desempenho no trabalho de Letícia Spiller e o rompimento com uma trajetória que poderia fazê-la ficar em lugares mais cômodos e garantidos, mas a atriz apresenta sua Peggy Guggenheim com tanto esforço que o esforço sufoca a interpretação. Há, na sua composição, um excesso – um excesso proposital, em consonância com a encenação e validado pelo texto – que se materializa em ininterruptas variações da forma. Mas isso resulta, a meu ver, numa diluição da presença e da ideia mesma de excesso. O excesso já está na complexidade dramatúrgica do todo, na própria ação da peça, nos números musicais, na quantidade de personagens e de ramificações das ideias. O exagero já está no que é dito, nas acusações, no movimento vertiginoso das associações. Assim me parece que a escolha feita pelo diretor e pela atriz resulta reiterativa.

O mesmo acontece com George Sauma (Ziggy Spaceboy), que também apresenta uma atuação mais expansiva. Isso me pareceu mais evidente na faixa em que seu personagem encontra a fada do dente, num momento já avançado da peça. A atmosfera onírica que poderia se instituir não se sedimenta e acaba por parecer que a cena é um pretexto para o ator mostrar sua habilidade de sapatear. Por não estar tão bem fundamentada dramaturgicamente, e por ser um dos poucos momentos de exibição de um virtuosismo, esse me pareceu um momento de enfraquecimento do espetáculo, apesar da aparente aprovação entusiasmada do público carioca, que tem o hábito de aplaudir efusivamente qualquer cena de canto e dança, especialmente se for solo.

André Mattos e Letícia Spiller. Foto: Divulgação.

André Mattos também apresenta uma atuação com gestos sublinhados e histrionismo declarado, mas o seu personagem demanda essa expansividade. Soma-se a essa demanda a camada de ironia que o ator imprime às suas escolhas. Essa outra camada dá as nuances da dramaturgia e tem um efeito diferente dos casos anteriores. Já o trabalho de Bruno Padilha fica mais resguardado dos excessos, pela própria natureza do personagem, que não provoca tanto a vaidade do virtuosismo. Ele e Gabriela Gelluda, cantora, assumem um tom mais sóbrio. Parece que eles ficaram com a porção melancólica e introspectiva do espetáculo, o que forma um equilíbrio interessante no todo da encenação. De certo modo, seus personagens remetem à falta de alguma coisa, estão deslocados, ausentes, sentem alguma dor. Talvez porque eles estejam ligados de uma maneira mais subjetiva ao desaparecimento da jovem Norma Jean Baker (Carolina Lavigne), que ao gravar um depoimento em que oferece seu corpo em holocausto para se transformar numa obra de arte, desencadeia toda a trama de Outside.

Já a composição de Jorge Caetano, que faz Ramon Ramona, uma espécie de Orlan, parece bastante comprometida com o que o seu personagem traz para a cena em termos de questionamento. Com todo o cinismo que seu personagem transmite, o visível, a forma, é resultado de uma carga de depoimento pessoal que confere ao seu trabalho uma força de presença que não se constrói de fora pra dentro. Seu personagem é cheio de exageros constitutivos da sua identidade, mas eles não são sublinhados. A ação da peça vai justificando a sua visualidade, sem que ela precise ser reiterada pela atuação. É justamente na economia de intenções e de movimentação que aquele manancial de referências melhor se dá a ver. Com isso, a figura de Ramon Ramona se sobressai no espetáculo e dá sentido àquele universo que está sendo questionado de maneira mais significativa e emblemática que os próprios protagonistas. É com este personagem que o espetáculo materializa o questionamento sobre o sentido da arte, sobre o mercado, as instituições que estão no entorno da produção artística.

Jorge Caetano. Foto: Divulgação.

A peça tematiza diversas armadilhas dos nossos tempos na arte: a ideia de alta cultura, de alta costura, o mercado de arte, o fetiche, a moda – a moda como arte e a arte como moda. E, embora Peggy Guggenheim seja a personagem que está à frente da galeria e que tem poder sobre tudo, é nos personagens que ela afeta que a peça se comunica com mais força. Além de Ramon Ramona, do outro lado da moeda, está Norma Jean Baker.

Na peça, tudo se dá por causa de uma provocação desta menina de 14 anos. Sua honestidade é comovente; a aparição de Carolina Lavigne, com sua graça e juventude, com sua calça jeans e sem maquiagem, nos faz olhar de novo para todos os outros personagens, para seus exageros, seus belos figurinos, seus excessos. Ela tem a capacidade de fazer as perguntas mais fundamentais, como fazem as crianças. Norma é uma pergunta. Ela é a sinceridade da pergunta. Ela não é um blefe, nem é “só” um conceito – como se um conceito fosse algo menor. O problema da arte é a norma. E, desde as vanguardas, matar a norma passou a ser, também, norma. A norma agora é o impasse?

Diante de uma crítica-polícia predominante que acusa o teatro atual de não ser teatro e a dramaturgia contemporânea de não ser dramaturgia, a Aquela Companhia nos apresenta, com Outside, uma frágil criatura chamada Norma que se oferece ao sacrifício pela relevância de provocar, mais uma vez, a grande pergunta: Isto é arte?

Daniele Avila Small é tradutora e crítica de teatro. Mestranda em História Social da Cultura pela PUC-Rio, tem graduação em Teoria do Teatro pela UniRio.

Vol. V, nº 41, fevereiro de 2012

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