Laio e Crísipo: a Pop e o esquecimento

Crítica da peça Laio e Crísipo, texto de Pedro Kosovski e direção de Marco André Nunes

31 de agosto de 2015 Críticas

Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015

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Resumo: A crítica reflete acerca de uma pesquisa anterior da Aquela Companhia sobre a Pop-art no espetáculo Edypop, ligando-a ao exercício de montagem de uma obra que tematiza o esquecimento de um mito antigo acerca do relacionamento amoroso entre Laio e Crísipo. Além disso, discutem-se os entrecruzamentos com o aspecto crítico do pastiche utilizado pela obra.

Palavras-chave: pop, esquecimento, pastiche, paixão

Abstract: The paper reflects on the Aquela Companhia’s previous research on Pop Art in the play Edypop, linking it to the exercise of a work about the oblivion of an old myth that tells the story of the relationship between Laius and Chrysippus. In addition, we discuss the intersections caused by critical aspects concerning the usage of pastiche in the play.

Keywords: pop, oblivion, pastiche, passion

 

O espetáculo Laio e Crísipo, escrito por Pedro Kosovski e dirigido por Marco André Nunes, surgiu como um prolongamento criativo de questões já presentes no processo de pesquisa de Edypop. É sabido que, em Édipo Rei de Sófocles, Laio aparece apenas como um referente mítico de um crime do passado, não sendo, pois, agente da tragédia. Esse fato deve ser observado na peça anterior da companhia, pois, diferente da obra sofocliana, Laio (interpretado por Remo Trajano) já ocupava um espaço privilegiado na trama.

O título da peça, Edypop, nos dava pistas, em parte, da necessidade de Laio na obra anterior. Interessava construir não somente uma leitura de Édipo no texto de Sófocles, mas também refletir sobre a forte pregnância da imagem desse herói no mundo ocidental, entendendo as bifurcações de seu mitologema. Um dos ecos fortes dessa presença se encontrava no hipercitado Complexo de Édipo, cunhado por Freud, no qual Laio ocupa o lugar do esposo rejeitado (e infanticida) que perde o amor da mulher para o filho.

Ecos libertários de músicas pop tomavam conta do espetáculo e o sentido do crime de Édipo era expandido, metaforicamente, para mostrar a própria crise e morte da Arte gerada pela Pop, presente na invasão do Kitsch no horizonte do gosto das massas (ampliado, reflexivamente, pela peça, na alusão direta ao surgimento das passeatas do ano de 2013). Sendo assim, o Pop do nome Edypop formava uma camada a ser arrazoada e compreendida pela obra em questão. Criava-se, portanto, uma ontologia a partir da qual se debatia numa direção o mitologema de um Édipo freudiano, e noutra o próprio fenômeno democrático e errático da Pop-art.

Em Laio e Crísipo, a questão que se impõe é outra: o esquecimento. Por que a paixão de Laio e Crísipo fora apagada do cânone mítico das tragédias (operação que envolve até mesmo a perda dos arquivos de obras trágicas que trataram esse tema)? Qual o interdito que permeava a desatenção dada a essa história? A aposta da dramaturgia é a de que o veto ocidental à homoafetividade se constituiu como um empecilho para que essa história fosse contada. Sendo assim, cabe ao espetáculo apresentar a trama desse mito abafado.

Como contar essa fábula esquecida? Essa é a pergunta que o espetáculo faz desde o seu início. Recriando o mitologema antigo, a peça segue um procedimento próximo ao utilizado pela tragédia clássica, o de encaminhar o já dado do mito na sequência dos acontecimentos, propondo, em contrapartida ao modelo grego, uma tensão mais analítica do que dramática. Esse aspecto desponta já no jogo das primeiras falas da peça:

LAIO: Sabe esse estranho prazer em contar o final da história? Eu sou um desses estraga-prazeres. Quando compro um livro, vou direto para última página e leio o último parágrafo, a última frase, a última palavra. E fim. É uma obsessão. Imagina se você começasse a sua vida sabendo como será o seu fim? Pensa rápido: é melhor ir pouco a pouco se desfazendo ou ser violentamente apagado? (texto da peça cedido pelo autor)

Nessa fala de Laio, localizamos como a autoconsciência da ficção percorre as personagens da peça, que confabulam sobre sua natureza de personagens de um cânone cuja anterioridade é explicitamente refletida na obra; sendo ela, ao mesmo tempo, um drama sobre a paixão humana e uma reflexão acerca da ação de esquecimento no mito. Na fala de Laio sobre contar o final da história, há um jogo com os acontecimentos da peça. E se na tragédia grega o já dado era justificado pela ação do Destino no mito, aqui, nota-se que o a priori se relaciona diretamente à reflexão analítica acerca desse mitologema, cuja voz ensaística se disfarça pela delicada e quase transparente película da ficção da obra.

A peça se inicia com uma música ambiental (tocada ao vivo por Felipe Storino) que toma conta de todo o tablado juntamente com a silhueta dos três atores, Erom Cordeiro (Laio), Carolina Ferman (Jocasta) e Ravel Andrade (Crísipo), iluminados por uma luz violeta que dentro de três cabines compõe a atmosfera de um peep show. No caso, o tablado torna-se uma espécie de espaço de desnudamento e de exposição de taras, em que os corpos são representados por meio de um clichê de erotismo próprio a filmes B, cuja vontade de contemplação erótica nunca permite que o sexo se personifique a partir de uma crueza pornográfica.

Na atmosfera de erotismo dos corpos belos dos atores, a iluminação e a direção sublinham as imagens de Jocasta, Laio e Crísipo como fetiches do feminino e do masculino. Ela, um ícone de beleza que está entre a pulsão da morte e da vida, como podemos ver na cena em que o gesto lascivo das mãos entre os seios e o pescoço se torna um estrangulamento, aludindo e revisitando, perversamente, a morte de Jocasta no cânone de Sófocles. Já eles, a expressão da virilidade, como visto nas lutas e na corrida de moto que travam no tablado.

O tempo todo, o que se observa são fantasmagorias. Se o clima da encenação flerta com o ridículo de um imaginário de quinta categoria sobre o erotismo gay e sexista, isso se dá pelo fato de que Pedro Kosovski e Marco André Nunes observam que esse universo fantasioso processa uma falta que nunca se completa. A peça não chega a ser pornográfica por conta da sublimação gerada por meio da idealização de um corpo-fetiche, corpo projetado para a beleza e gerador de fantasia – que se confirma na atuação entre sentimental e cínica dos três atores. Erom Cordeiro constrói um Laio narcisista e apaixonado. Ravel de Andrade faz um jovem Crísipo que sente a dor do esquecimento. E Carol Ferman intensifica erotismo e tragicidade em sua atuação. Os três atores seguem muito bem na proposta de serem personagens de uma trama amorosa e de um jogo erótico para a plateia.

É uma peça sobre a paixão? Sim, na medida em que se perceba a autoconsciência que a obra tem do quanto a paixão não deixa de ser uma ficção do próprio imaginário. Assim sendo, Laio e Crísipo não é apenas uma obra sobre o esquecimento de um mitologema homoafetivo da antiguidade grega, mas a percepção absurda do aspecto mitológico das paixões humanas.

Nas tragédias gregas, o homem se via emaranhado no furor de uma hybris que era inconsciente. Em Laio e Crísipo, o processo parece ser inverso. Se, por exemplo, pensarmos na tragédia de Sófocles como contraste, notaremos que o que amarra as três personagens dessa peça é a autoconsciência do fim e não a ingenuidade acerca do destino. Autoconsciência vivida na obra como pastiche.

O elemento cênico icônico e emblemático deste pastiche é o drink de abacaxi. Aludido no início da obra em fala de Jocasta, (“soa falso se digo: aquele drink no abacaxi que tomamos juntos foi mesmo inesquecível, meus amores”), ele segue em algumas outras falas da peça como neste diálogo entre Laio e Crísipo:

LAIO: Você quer dizer que me promete um verão nas ilhas gregas e nós dois deitados em confortáveis espreguiçadeiras tomando um drink bem cafona, desses que são servidos na casca do abacaxi com miniguarda-chuvinhas por garçons vestidos de marinheiros.

CRIS: Eu prometo a minha morte mais cedo, mas se não for assim, eu prometo te abandonar quando a situação pesar e você adoecer porque você é mais velho, e eu sou mais jovem e jamais desperdiçarei minha juventude para cuidar de você.

LAIO: Você quer dizer que o drink no abacaxi é a metáfora da nossa felicidade: amor doce com uma pitada de embriaguez dentro de um mundo cascudo e espinhoso (texto da peça cedido pelo autor).

O drink de abacaxi se torna, ao mesmo tempo, o referente de uma bebida cafona associada a uma indústria do turismo na qual a Grécia se oferece como paraíso terrestre e a metáfora do amor do casal. Metáfora refletida pela própria experiência de afeto em que os dois, em um gesto de carinho abraçados no chão do tablado, confabulam sobre o futuro. No diálogo, algo de cínico é dito em tom de profundo amor e delicadeza. Crísipo diz para Laio que prefere a própria morte a ter de entregar a sua juventude ao companheiro. Essa fala complexifica o ícone, pois o mesmo assume um aspecto crítico. Ele passa a ser uma metáfora para o romantismo do casal cheio de imaturidade, já que a morte é preferível à perda da juventude.

Esse ícone vai acompanhando o desenrolar da fábula. Numa fala simbólica mais próxima do final da peça, Laio diz: “Só um abacaxi. Eu vou descascar e vocês fiquem à vontade”. Despretensiosa, a piada não deixa de ser um nó analítico da trama. Nela, a tragicidade de Laio, o seu destino amoroso, é transformado em pastiche. O dito popular “descascar um abacaxi” que significa “resolver um problema” passa a ser metáfora para a triangulação amorosa entre os três personagens.

Logo, a obra encena o mito dessa paixão esquecida com recursos próprios à Pop, como é o caso da utilização do rebaixamento discursivo característico do gosto da massa. Se a Pop e a arte eram objeto de reflexão em Edypop, em Laio e Crísipo a paixão passa a ser inquirida como um amálgama discursivo de fantasias. Nesse caso, a Pop, sem ser explicitamente citada, apresenta-se pelo tratamento dado a questão erótica tanto pela direção coesa e precisa de Marco André Nunes, recortando os corpos, como numa Polaroide ou nos screen tests de Warhol, quanto no texto sintético de Pedro Kosovski, que flerta conscientemente com o ordinário.

Nesse sentido, a peça mostra um amadurecimento de questões teóricas do grupo, que, distante do juízo de melhor ou pior espetáculo, seguem em um processo de pesquisa acerca de uma releitura do trágico na contemporaneidade. No caso, a revisitação passa a não ser apenas do cânone, mas da própria tragicidade da Pop. Tragicidade experimentada pela constatação de falta de substância do mundo histórico:

De fato, a inteligência Pop é de ordem mais Abstrata do que a maioria da arte dita abstrata, presa já às Figuras da Abstração. Uma aguda consciência reflexiva da materialidade da arte e uma concepção altamente abstraída do seu sentido histórico estão na raiz da operação pop – suas figuras assim abstratas por excelência, põem em xeque a própria substância, o seu valor mesmo enquanto linguagem instituída (BRITO, 2005, p. 209).

Nessa passagem, Ronaldo Brito nos fala sobre a natureza abstrata da Pop, que não se dá estilisticamente por um efeito abstrativo, mas como uma percepção latente da crise que ela deflagra diante de um mundo absolutamente imagético, em que a própria figura perdeu os contornos seguros de sua identidade. Assim, o problema passa a não ser do referente, mas sim da incerteza gerada pelo valor de substância do mesmo. Não há uma interioridade preenchida, mas forjada por uma inteligibilidade radical acerca dos problemas da representação de uma realidade que passa a ser sempre desacreditada.

Longe de qualquer efeito ou referência explícita à Pop, a peça percorre melancolicamente o sentido da mesma. Sem a esperança de uma massa revolucionária como em Edypop, a visão sobre a paixão é mais cínica. Laio, Jocasta e Crísipo são vistos como fragmentos discursivos acerca do fato de a paixão existir, apesar da certeza de sua falta de verdade. Sem sentido, o amor segue ocupando um lugar de destaque em nosso imaginário, ou seja, sendo um abacaxi a ser descascado.

 

Referências bibliográficas:

BRITO, Ronaldo. Experiência crítica. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.

João Cícero Bezerra: crítico e teórico de arte e teatro, dramaturgo e escritor. Formado em Teoria do Teatro pela UNIRIO, é Mestre em Artes Cênicas pela mesma instituição e Doutor em História Social da Cultura pela PUC-Rio. Desde 2008, leciona Estética e História da Arte no bacharelado de Artes Visuais do Senai-Cetiqt.

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