A dobra e a separação

Cara de Cavalo e Farnese de Saudade

27 de dezembro de 2013 Estudos
Farnese de Saudade. Foto: Rodrigo Castro.

Para Dinah Cesare e Manoel Friques (1)

No ano de 2012, estiveram em cartaz na cidade do Rio de Janeiro dois espetáculos teatrais que produziram uma reflexão a partir de experiências de artistas visuais expoentes da arte moderna e contemporânea brasileira: Cara de Cavalo e Farnese de Saudade. A primeira obra cujo texto foi escrito por Pedro Kosovski com direção de Marco André Nunes, deteve-se na obra de Hélio Oiticica, principalmente, no debate acerca arte-violência, criado pelo artista carioca a partir da figura marginal de Manoel Moreira, bandido cuja alcunha tornou-se título da peça. Já o segundo espetáculo se construiu por dramaturgia colaborativa e direção de Celina Sodré, propondo revisitar poeticamente a biografia do artista mineiro Farnese de Andrade, sem se formatar ao discurso biográfico.

Imediatamente, observa-se nas obras em questão, para além do fato de se referirem a artistas visuais brasileiros, uma escolha por trabalhos em que o debate da arte contemporânea se erige pela intersecção da arte com a vida. Debate que amplia o lugar da própria arte dentro do universo de discussão da natureza e da cultura, visto que a vida passa a ser portadora de uma força estética e crítica. Ou seja, o lugar qualitativo da obra de arte (autônoma), que antes a distinguia do universo da cultura, passa a ser compartilhado com a vida. No caso dessas poéticas, a vida surge edificada, sobretudo, pelos fragmentos do mundo. Fragmentação anônima e biográfica das bonecas de Farnese de Andrade, na qual o artista constrói sua subjetividade com os objetos precários do mundo. E fragmento urbano-mítico-midiático, como a morte de Manoel Moreira, registrada nos jornais e em arquivos fotográficos vários, transformados em foto-poemas visuais, intitulados Seja Marginal, Seja Herói, e bólides produzidos por Hélio Oiticica.

Nas peças teatrais citadas, a escolha do referente já deve indicar um caminho de leitura crítica, pois o tema faz parte da obra do mesmo modo que o procedimento escolhido pelos artistas. Como se trata de peças teatrais que se afiliaram a uma cultura do projeto própria aos editais públicos, a criação artística se inicia no momento em que a ideia do espetáculo se instala. Logo, pressupor o referente como materialidade de análise é fundamental.

Não se trata de fazer aqui uma análise que preze pela defesa de especificidades, separando artes visuais e teatro em suas materialidades. Do mesmo modo que o discurso das autonomias e da pureza tornou-se estéril, a defesa de um lugar de cruzamento e de fronteira, em que se projeta uma visada homogênea na qual todos os termos (performance, instalação, etc) pretendem resolver todo dilema da arte, provou-se extremamente pobre para o entendimento da arte no mundo atual, pois essa atitude parece mascarar as diferenças e disputas dentro do contemporâneo (o contemporâneo não é o Éden inocente e contracultural transformado por muitos – e sim uma teia problemática viva).

Aqui há o desejo de se adentrar na fronteira entre as artes alcançando o modo articulado e tenso como as artes visuais e o teatro se entrelaçaram nessas peças. Sabe-se que se trata de sistemas de produção diversos. E o fato de essas obras surgirem na sala de ensaio não as diminui em relação ao espaço do ateliê das artes visuais – e a tradição dessas companhias deve ser considerada.

Surgiram duas categorias que auxiliaram a compreensão do procedimento operado pelas peças: separação e dobra. Observa-se no espetáculo Farnese de Saudade a separação, enquanto em Cara de Cavalo se vê a produção de dobras críticas. Como separação se entende uma vontade de oposição à naturalização da cultura. Como se houvesse da parte da obra uma ação de desnaturalização crítica diante de hábitos hegemônicos e gostos massificados que são desativados pelo trabalho artístico. Como dobra se entende um gesto de produção que aglutina múltiplas experiências de mundo através de uma fragmentação que incorpora as impurezas da cultura sem produzir separação.

Farnese de Saudade – a separação

Para além da identificação com a obra de Farnese de Andrade, ouso arriscar que a escolha do artista, por parte de Vandré Silveira (o ator e idealizador do projeto) e o aceite de Celina Sodré para dirigir, tenha partido de um interesse pelas questões referentes à memória e à identidade que os trabalhos plásticos do artista proporcionam à pesquisa atorial.

No texto Farnese de Andrade: a grande tristeza, o crítico Rodrigo Naves nota aproximações (e diferenças) entre o trabalho de Van Gogh e o de Farnese, o que nos faz atentar para o fato de que há na poética do artista mineiro uma interface entre o crítico e o clínico – assim como havia na obra de Van Gogh e Antonin Artaud (incluindo o interesse deste último pelo trabalho do pintor holandês). Logo, caso se queira perceber o ponto de convergência entre artes visuais e teatro no espetáculo Farnese de Saudade, deve-se observar a relação entre o crítico (a reflexão artística subjetiva e universal – como postulada por Kant) e o clínico (os limites psíquicos do sujeito, sua consciência e inconsciência – como formulados por Freud).

A tensão entre esses dois polos ainda hoje se digladia no ocidente, uma vez que a escuridão do sujeito parece relativizar o caráter universal da crítica. Obras como a de Vincent Van Gogh, Antonin Artaud e Farnese de Andrade reivindicam um lugar à margem do discurso coeso e sistêmico da arte, pois partem de uma desconfiança diante da razão e da consciência do artista criador. Não é incomum críticos rigorosos, como Clement Greenberg, não atribuírem o devido valor a artistas como Van Gogh, por perceberem “limites de uma psicologia atormentada”. (In NAVES, 2010, 67) Em direção oposta surge, no campo da arte, certa apologia à loucura, conferindo certeza de talento aos indivíduos atormentados – o que, às vezes, gera certo culto ao histerismo.

Apesar da tempestade psicológica de seu ser, Van Gogh engendrou com sua pintura um grande debate artístico, e suas pinceladas grossas divergem do esmaecimento pictórico dos impressionistas. Do mesmo modo, a obra de Farnese de Andrade dialoga com a pintura de Guignard, seu professor. Logo, a relação latente entre o crítico e o clínico nas obras dos artistas citados não deve produzir uma mitologia que enevoa o contexto histórico das mesmas.

É nessa linhagem que une a obra de Van Gogh à de Antonin Artaud que se deve formular o itinerário da pesquisa da peça Farnese de Saudade. Não para reconstituir essa gênese entre o pintor holandês e o teatrólogo francês. Mas para rastrear como Celina Sodré, estudiosa da obra de Grotowski, formula com o ator Vandré Silveira, um percurso que faz Farnese de Andrade ser filtrado por esse Grotowski pesquisado pela diretora.

Sobre a característica biográfica do trabalho de Farnese de Andrade, Rodrigo Naves diz o seguinte:

E os arranjos, deslocamentos e montagens a que os submetia pareciam converter esse aspecto pessoal dos elementos que entravam em suas obras em índices de algo ainda mais pessoal – biográfico, digamos. (NAVES, 2007, 66)

Naves nota a presença do biográfico na poética do artista mineiro por meio de uma operação de deslocamento e montagem, que converte o aspecto pessoal (característica própria do objeto) em índices da própria biografia do artista. É o mundo concreto dos objetos que por in-corporação produz a escritura da vida de Farnese de Andrade. In-corporação que na peça é a todo tempo aludida por artifícios interpretativos do ator, qualidades de choques nervosos em seu corpo, que interrompem o fluxo da atuação como num ato de possessão – como se o mesmo fosse uma espécie de Xamã –, procedimento que liga o teatro ritual de Grotowski à mística religiosa de Farnese.

Sobre a diferença existente entre o biográfico em Van Gogh e em Farnese de Andrade, Naves diz:

No caso de Farnese, o movimento biográfico parece ser de uma ordem totalmente diversa. O caráter pessoal de seus trabalhos não nos faz vislumbrar uma personalidade incontida, que buscasse expressar-se a todo custo. O aspecto envelhecido da grande maioria de suas peças aponta sobretudo uma ação do tempo sobre os seres, que com isso mal conseguem estabelecer para si um presente. (NAVES, 2007, 67)

Não se manifestando como uma obra que intensifica a figura do sujeito (fé na interioridade do eu), a escritura biográfica em Farnese, na medida que se abre para “ação do tempo sobre os seres”, reúne um aspecto etnográfico, pois o mundo do outro (dos objetos perdidos), desenha esse eu perdido no tempo da sedimentação. Naves diz:

Para Farnese de Andrade o indivíduo é sedimentação – nele se deposita toda sorte de resíduos, para ele convergem forças que atuam lenta mas profundamente, e dele quase nada emana. (NAVES, 2007, 67)

Trata-se menos de uma consciência segura e intensamente atormentada por uma paixão. E sim de uma construção pessoal que se faz pela alteridade do mundo. Não apenas do mundo dos objetos. Mas pela sedimentação da memória. Portanto, o sujeito é composto por resíduos, como uma esponja que quase nada emana, mas acumula e absorve o mundo.

No primeiro dia que assisti o espetáculo, tive a sensação de estar num antiquário. Isso porque a voz do intérprete e o espaço cenográfico me conduziam a uma experiência de tempo diversa da comumente experimentada na “cena contemporânea”. Havia na encenação uma qualidade de “liturgia contemporânea”, como bem mencionou Dinah Cesare em seu texto crítico (2), que me forçou, imediatamente, a seguinte questão: será que a releitura da obra de Farnese de Andrade por este filtro grotowskiano instaurou um processo de sacralização (separação), resultando numa produção de presença, assim como as produzidas por seitas?

Se se compreende o contemporâneo como sendo o atual, as liturgias contemporâneas devem ter seus paralelos nas seitas, pois essas não possuem o lugar de prestígio das religiões tradicionais, funcionando como práticas religiosas que desestabilizam o cânone religioso hegemônico. No caso da peça, o aspecto de “seita” pode ser compreendido pelo esforço do teatro mínimo e litúrgico de Celina Sodré de proceder contra o naturalismo do teatro predominante.

A transformação da experiência teatral em sagrada, produzindo no mundo laico atual um espetáculo com grande ritualidade, como proposto por Grotowski, parece querer restabelecer um lastro arcaico, próprio ao teatro antigo, a fim de subverter a lógica naturalizada do mundo contemporâneo, operando assim uma cisão com o mundo atual.

Neste sentido, percebemos uma possibilidade de aproximação da poética de Farnese e Grotowski no que tange a relação com o passado. Evidentemente, o aspecto de sedimentação e acúmulo em Farnese de Andrade visto belamente na cenografia do espetáculo, expõe o quanto Celina Sodré não está presa à rigidez de um teatro pobre, sem cenografia e figurino, mas interpreta o desnudamento grotowskiano de modo diverso e nada ortodoxo.

Em seu livro O ator no século XX: evolução da técnica/ Problema da Ética, Odette Aslan se dedica ao entendimento da técnica do ator não como descrição de procedimentos, mas abarcando uma dimensão ética da prática proposta pelos teatrólogos. Acerca da obra de Grotowski, Aslan diz:

O ator não representa para o seu prazer, nem o encenador. A encenação está dirigida para, dir-se-ia quase contra o espectador. Cumpre atacar a psique do espectador, e que este descarregue o seu subconsciente das emoções acumuladas durante o espetáculo. (ASLAN, 2010, 282)

A citação de Aslan explicita o caráter crítico proposto pelo teatro de Grotowski, visto que esse almeja ir contra a percepção comum do público. Na peça se vê a instauração de um tédio temporal, opondo-se ao ritmo convencional dos espetáculos em cartaz – ou da própria sociedade de consumo como um todo (que não dá pausa à percepção). Tal monotonia funciona como um choque crítico no espectador, provocando um desconcerto entre a temporalidade praticada no palco e a expectativa de ritmo do público comum.

Deve-se perceber no espetáculo Farnese de Saudade que, se por um lado se está diante de uma experiência nostálgica do tempo, almejando o passado ritualístico como temporalidade elementar, por outro lado nada na peça se assemelha à busca rarefeita de encontrar um público alvo, como nas cartilhas de marketing que se tornaram bíblias atuais. Gostando ou não gostando da experiência, sendo tocado ou não pelo espetáculo, sabe-se que se trata de uma pesquisa estética e não de uma receita de bolo. E essa pesquisa se constrói por meio de uma operação de separação em busca de um sagrado remoto e impossível que, fazendo uso dos conceitos de Giorgio Agamben, acaba profanando a sacralização mais latente do mundo atual, como a que é gerada e nutrida pelo capitalismo.

A separação se dá no espetáculo no plano do texto, da atuação e do espaço cênico. A obra se intitula um espetáculo instalação, apesar de se dar a ver numa relação frontal com o público. A definição de espetáculo-instalção se deve ao fato de o cenário ser uma casa-gaiola tridimensional, na qual Vandré Silveira a ocupa tanto de cabeça para baixo, quando surge em cena cantando Boi da cara preta, quanto em vários momentos da obra em que aparece de costas para o público.

Farnese de Saudade. Foto: Rodrigo Castro.

A vontade de fazer uma instalação sem abdicar da relação “perspectiva” e frontal do espetáculo trouxe a Farnese de Saudade a construção de um espaço interessante, quase como se a imagem da casa (dentro do binômio casa-gaiola) rememorasse a espacialidade pré-renascentista na qual as pinturas mostram as figuras presas a espaços cenográficos em que o sujeito está ali agigantado ante o achatamento não proporcional dele dentro do espaço arquitetônico.

Do ponto de vista da escrita e da emissão da fala, o texto de Vandré Silveira nasce no tablado operando a cisão de um discurso biográfico recortado por fragmentos de cantigas populares e cantos religiosos. Observemos o texto:

Misereàtur nostri omnìpotens Deus et, dimìssis peccàtis nostris, perdùcat nos ad vitam aetèrnam. Amen.(2x)

(…)

Meu pai era belo e jovem para quem tinha 33 anos. A mesma idade de Cristo. Quando eu tinha 14 anos isso já representava velhice. Eu via nos olhos das mulheres e dos muitos homens também, a admiração que causava o rosto esculpido e o corpo elástico do meu pai.

Pater noster, qui es in caelis: sanctificètur nomen tuum; advèniat regnum tuum; fiat volùntas tua, sicut in caelo, et in terra. Panem nostrum cotidiànum da nobis hòdie; et dimitte nobis debita nostra, sicut et nos dimìttimus debitòribus nostris; et ne nos indùcas in tentatiònem; sed libera nos a malo. Amem. (3)

No exemplo acima, há uma relação interna entre os fragmentos, isto é, pode-se relacionar a idade do pai e a de Cristo, assim como este conteúdo biográfico de Farnese se liga à reza dirigida ao pai celeste. Contudo, o modo cortante como os fragmentos surgem no tablado, faz com que eles se digladiem entre si, interrompendo a premissa de um discurso biográfico coeso. Há conteúdo biográfico na peça. No entanto, não há o uso do discurso biográfico. Ou seja, o espetáculo é mais uma paisagem de fragmentos do que a narração organizada da história de vida de Farnese.

No que se relaciona a separação processada pelo ator, o espetáculo formalizou uma operação interessante. O corpo do performer-intérprete traz registrado atrás de si, em sua nuca, um desenho do rosto de Farnese de Andrade, possibilitando enxergarmos tanto o rosto nu de Vandré Silveira e o desenho figurado do rosto de Farnese.

Tal criação de assentar à superfície da pele o paradoxo do ator, separando em frente e trás, o rosto vivo do performer e a imagem figurada da personagem, constrói uma belíssima reflexão dentro do espetáculo, visto que, pelo jogo performático e ritualístico, o ator expõe na superfície da sua pele o paradoxo do comediante que é a base conceitual da interpretação naturalista. Assim, por essa ação de desnaturalização, assiste-se uma desconstrução plástica da figura do ator/performer e da personagem, dando a ver um organismo em crise.

O próprio Farnese de Andrade se transformou em sedimentação pelo espetáculo, ícone pictórico marcado na pele de Vandré Silveira. Na peça, os elementos parecem buscar uma vontade de desnaturalização, de separar-se de uma cultura da imagem hegemônica (dos meios de massa).

Cara de Cavalo – A dobra

Cara de Cavalo parte de outro ponto. O seu alvo é diverso do mirado pelo trabalho de Farnese de Saudade. A obra reflete sobre a relação de espetacularização da arte e da própria vida. E dentro desta discussão acerca do mundo transformado em espetáculo, ressurge na peça a premissa barroca de que o mundo é um teatro, atualizada por uma sensibilidade contemporânea (dos problemas da própria espetacularização da violência/vida no mundo atual).

Não é vão o fato de o espetáculo surgir com a imagem projetada numa tela que logo se duplica em duas, na qual um ELE (Ricardo Kosovski) especula sobre o próprio sentido da arte e da violência – texto dito pelo ator debochadamente, retirando qualquer élan professoral da fala. Também não é sem intenção que após a projeção apareça uma banda tocando no palco (elevado) entre as duas telas, e a cena ficcional de Cara de Cavalo (Remo Trajano) com Mangueirinha (Carolina Chalita) se dê em seguida, ao centro, e abaixo desses acontecimentos, formando curvas e dobras “barrocas”, na qual a multiplicidade da reflexão/ficção/imagens/real, dobram-se, a todo tempo, no próprio espaço físico (múltiplos palcos) a fim de transformar o teatro em um dispositivo aglutinador e antropofágico, sem perder de vista o quão violenta é a espetacularização do mundo.

O palco é o palco em Cara de Cavalo. No caso, a tautologia é uma verdade no que tange o espetáculo, visto que a dimensão satírica do herói-marginal reforça esse entendimento. Ou seja, o caráter espetacular da figura à margem heroicizada se transforma em emblema. Emblema construído pela argúcia de Hélio Oiticica ao produzir sua série de fotos-poemas intitulados Seja herói, seja marginal. Já nessas séries do artista há uma reflexão sobre a dimensão heroica do marginal contemporâneo. O artista reflete sobre o fato de a hybris “trágica” (desmedida) ser cada vez mais potencializada nos espaços de marginalidade – e não nos ambientes legitimados, pois a nossa sociedade, de algum modo, ratificou os dispositivos de poder de seus líderes tiranos. Ocorre que, diferente de Édipo Rei (no qual o líder tebano sofre devido à sua própria desmedida), em um mundo no qual a ditadura naturaliza o poder tirânico, encontrar-se-á a hybris do herói na figura contracultural do marginal.

Cara de Cavalo. Foto: João Julio Mello.

Dentro da discussão do trágico e do cômico há algo no título da peça que nos auxilia ao entendimento acerca da dimensão espetacular e satírica da própria obra. O título do espetáculo se refere a uma persona construída através de um nome próprio, como, costumeiramente, observa-se nos dramas e nas tragédias. Entretanto, o nome próprio que intitula a peça é feito por um apelido – que rebaixa o caráter individual e biográfico da personagem. A respeito dessa característica dos dramas e das comédias, o filósofo Henri Bergson diz o seguinte:

Um drama, mesmo quando retrata paixões ou vícios que têm nome, incorpora-os tão bem na personagem que esses nomes são esquecidos, que suas características gerais se apagam, e que já não pensamos neles, mas sim na pessoa que os absorve; por isso é que o título de um drama não pode deixar de ser um nome próprio. Ao contrário, muitas comédias têm como nome um substantivo comum: o avarento, o jogador, etc. (BERGSON, 2004,11).

A explicação de Bergson sobre o modo como os dramas absorvem os vícios, na interioridade das personagens individuais, possibilita-nos uma leitura acerca do modo como o espetáculo opta por seguir na direção de lidar com a alcunha pública da própria personagem. Alcunha que traz em si mesma uma marca fisionômica, com as características físicas do marginal, espécie de xingamento mascarado, que bestializa o próprio indivíduo, no caso Manoel Moreira.

O apelido do marginal deve ter interessado a Oiticica tanto quanto sua posição social marginalizada. E nos bólides se vê tanto a fotografia do bandido extraídas no momento da sua morte (BB33 – Bólide caixa 18) quanto a foto de seu rosto em 3X4 (B56 – caixa 24 Caracara Cara de Cavalo). Tais fragmentos de fotos públicas expressam uma realidade inventada pela própria sociedade do espetáculo. Invenção cravada com o sangue real da violência. E essas caixas de Oiticica não deixam de expor o aspecto fúnebre do acontecimento da morte de Manoel Moreira.

No espetáculo há a cena de um retrato-falado. Nela o rosto do bandido é descrito em um jogo metafórico e metonímico de ligação de partes do rosto da personagem com características do animal. Exemplo: em vez da descrição do nariz (vocábulo mais usual) de Manoel Moreira, utiliza-se a palavra fuça para se referir ao cavalo. A cena acentua a característica policial da trama da peça que pode ser lida, por um viés mais simplório (por aqueles que necessitam de localizar o arco narrativo), como uma história policial de captura do bandido. Mas a própria narrativa policial está aí para exibir uma construção simbólica da espetacularização da violência. A respeito desse aspecto indiciático da fotografia na sociedade moderna, o pesquisador norte-americano Tom Gunning diz:

O uso da fotografia na identificação policial nos séculos XIX e XX voltou-se basicamente pra essa regulação do corpo por meio da observação minuciosa, fundada na classificação sistemática. Além do seu uso real para a identificação de infratores reincidentes (…) esses novos métodos foram reelaborados na ficção policial moderna. (GUNNING, 2001,53)

Gunning nos apresenta a importância da fotografia para regulação do corpo humano e para servir como um dispositivo de controle da criminalidade. O corpo passa a ser observado minuciosamente e classificado, e, do mesmo modo, esse procedimento diante da fisionomia dos indivíduos reelabora a ficção policial moderna. Ficção que não deixa de ser nutrida pelos jornais e pela sociedade do espetáculo como um todo. Gunning prossegue:

A verdade do corpo, sua confissão de culpa, não mais reside apenas na “indiscrição” de se permitir ser fotografado, mas em seu processamento por especialistas e autoridades. O corpo individual aparece agora simplesmente como a percepção de um número limitado de tipos mensuráveis. Essa sistematização traz ordem e controle ao caos de corpos em circulação, domesticados pela circulação de informações. (GUNNING, 2001, 53)

O estudioso toca em um importante ponto que liga a fotografia e os mecanismos de controle: a percepção limitada de tipos. A fotografia passa a agir como um organismo de controle social, que põe ordem aos corpos que circulam. Logo, a figura de Cara de Cavalo solicitada tanto por Hélio Oiticica quanto pela peça realça o aspecto fisionômico do marginal a fim de destacar a desmedida do marginal-herói diante de um mundo em que os tipos estão, absolutamente, controlados.

Cabe ressaltar que o espetáculo aproxima a marca caricatural da personagem real às características de heróis de desenhos animados. O aspecto lúdico e infantil não reduz a discussão proposta pela obra. Tampouco se vê coibida, por essa ludicidade, a acidez das cenas no palco. Deve-se destacar também a tradição teatral em que Aquela Cia está ancorada (os membros são oriundos da escola de teatro O Tablado – com a riqueza do universo dramatúrgico de Maria Clara Machado). Tal tradição potencializou a construção do espetáculo. Há nele o rigor de um pensamento adulto sobre a arte e a violência, dobrando-se à solicitação imaginativa dos espetáculos infantis, em que a mobilidade sígnica se desvia da realidade ordinária com maior liberdade.

Sobre a definição da dobra barroca, Gilles Deleuze diz:

O barroco remete não a uma essência, mas sobretudo a uma função operatória, a um traço. Não para de fazer dobras. Ele não inventou essa coisa: há todas as dobras vindas do Oriente, dobras gregas, romanas, românicas, góticas, clássicas. (DELEUZE, 2012, 13)

Não se trata de afirmar que o espetáculo seja uma obra barroca. Reduzir uma operação observada no espetáculo a um estilo seria um erro essencialista. A definição de Gilles Deleuze é interessante por observar uma operação e não uma essência. O filósofo assinala o quanto o barroco nem sequer inventou as dobras, mas as absorveu em suas diferenças, dobrando-as sobre elas mesmas.

A mesma operação mencionada pelo filósofo francês se dá no espetáculo Cara de Cavalo, pois através da revisitação da ética barroca (de que o mundo é um teatro) apoiada na percepção da realidade atual (de uma espetacularização da violência), a obra acaba transformando o seu herói em uma alegoria reflexiva (que já se constitui em uma dobra sobre a dobra: o cara de cavalo ‘real’ e o criado por Oiticica). E o que poderíamos chamar de eixo dramático e narrativo, como é o caso da captura da personagem, não é mais do que uma dobra entre as muitas criadas pelo espetáculo.

O próprio eixo dramático insinua o modelo clássico de drama. E a ideia de um drama policial, proveniente de releituras críticas que notam uma narrativa policial em Édipo Rei, faz sentido na peça – tanto é que o espetáculo atual da mesma companhia se chama Edypop. Mas o procedimento da dramaturgia é o de esvaziar o alvo do acontecimento, retirando do mesmo o seu conteúdo essencial de reconhecimento. Como exemplo, observa-se, na peça, o quanto a captura da personagem principal é sugerida antes mesmo de ela se constituir factualmente, como se o tempo do drama estivesse acochado por essas dobras que se comprimem.

Outra característica das dobras que interessa no que se refere ao espetáculo é a sua inseparabilidade. Deleuze diz: (…) uma dobra, de modo que elas não se separam em partes de partes, mas dividem-se até o infinito em dobras cada vez menores, dobras que sempre guardam certa coesão. (DELEUZE, 2012, 18). Como se nota as dobras têm o potencial de se dobrarem ao infinito, conservando em si certa coesão. Fragmentam-se sem se separar, pois desejam apresentar a multiplicidade do mundo.

No espetáculo, a coesão das dobras se vê menos nos acontecimentos (narrativa da peça) e meios utilizados pelo espetáculo (vídeo, música, etc.), mas na força reflexiva solicitada pela obra. Essa coesão organiza os fragmentos expressivos, narrativos e dramáticos em volta da imagem dialética de Cara de Cavalo, que, aqui, torna-se emblema de questões maiores. Coesão que reflete sobre a arte e a violência.

A dobra e a separação – operações críticas

Passou-se então a avaliar a arte moderna brasileira segundo o fluxo e o refluxo nas tendências dominantes em certo momento nos grandes centros culturais. Podiam ser afirmados Tarsila e Bispo do Rosário quando a ênfase recaía no multiculturalismo e na defesas de diferenças. Ou então Farnese de Andrade e Ismael Nery, na hora em que a causa de plantão era a afirmação de individualidades irredutíveis e a crítica ao que seria o arrogante universalismo moderno. Mas foram Lygia Clark, Hélio Oiticica e, em menor escala, Mira Schendel os artistas que mais se beneficiaram dessa conjuntura. (NAVES, 2007, 202)

O trecho acima pertence ao polêmico artigo Um azar histórico: sobre a recepção das obras de Hélio Oiticica e Lygia Clark, escrito pelo crítico de arte Rodrigo Naves. Nele, Naves observa uma certa supervalorização da obra de artistas modernos brasileiros, lidos por tendências teóricas contemporâneas, na qual o conceito de contemporaneidade esboçado parte de uma teleologia do moderno, isto é, a superação de um paradigma (moderno) por outro (contemporâneo).

De fato, há muitos entendimentos sobre o contemporâneo e o moderno. Eis uma teia embaraçosa para a crítica de um modo geral. Não concordo inteiramente com o argumento do crítico, pois esta querela do moderno versus o contemporâneo sempre me pareceu um modo de territorialização estético-partidária das temporalidades, na qual se vê de um lado a autonomia moderna (da finalidade sem fim) versus a liberdade contemporânea (da arte que assume sua impureza vivencial). Quando faço uso da divisão no início do artigo, procedo de modo estratégico e não tão detalhado. Não tenho respostas e tampouco as procuro. Apenas não me sinto confortável com a tomada de partido. Busco equilibrar minha balança (4) com um pouco de dúvida entre a estética moderna e contemporânea.

Propositadamente, quando penso na contemporaneidade, pressinto (vide a imprecisão verbal) um tempo vivo, no qual a consciência do tempo presente com todas as suas temporalidades (passado e futuro) lutam em um devir absurdo e potente. Entretanto, noto, como é observado pelo crítico, que há um sentido de contemporaneidade que se constrói pela homogeneização do presente, aceitando, indistintamente, a institucionalização do aqui-agora em museus e academias – vide o que se transformou a academização da performance na contemporaneidade. Ironicamente, hoje as performances se dão mais dentro dos centros acadêmicos do que fora (talvez não exista mais fora, dirão os defensores da performance). E a quantidade de relatórios e burocracias desses centros de pesquisa (capazes de citar o suprassumo de todas as filosofias críticas contemporâneas) que acastelam a relação da arte com a vida põem, infelizmente, no chinelo a imaginação kafkiana.

A fim de não proceder ingenuamente na leitura dessas obras, seguindo a arbitrariedade de um teleologismo vazio do contemporâneo, esquematizando um vanguardismo chinfrim como aplicado às coleções de moda, optei por perceber nas obras a vivacidade de uma contemporaneidade na qual o presente experimenta sua dialética com o tempo do passado – observando a tradição na qual as obras se inserem. Tradição que se mostra, às vezes, mais vivaz do que a efemeridade de presentes encapsulados e destituídos de tensão.

Farnese de Saudade age criticamente diante do presente por seu caráter anacrônico, pelo mofo antiquário do filtro grotowskiano relendo a obra de Farnese de Andrade, longe de qualquer modismo próprio a algumas vertentes da arte contemporânea. E é a pesquisa sobre o ator que não permite que se instale, confortavelmente, um discurso biográfico na obra. Cara de Cavalo se ergue por meio dessas dobras críticas, assumindo sua proximidade com o teatro infantil de Maria Clara Machado (ao contrário de alguns projetos teatrais de “vanguarda” que acentua, desnecessariamente, sua cisão com esta tradição). Manoel Friques, amigo pessoal e teórico de teatro e de artes visuais, que tem sua trajetória profissional associada ao grupo, disse-me, pessoalmente, que o Cara de Cavalo de Oiticica é transformado, de alguma maneira, no Cavalinho Azul de Maria Clara Machado. Evidentemente, essa metáfora não está na obra de modo explícito, mas em sua entrecena (entrelinha).

Em Farnese de Saudade assistimos Farnese de Andrade e Vandré Silveira, separados ator (corpo-suporte) e personagem (figura-desenho), e em Cara de Cavalo, o marginal real se avizinha ao herói “infantil” mediante o tratamento lúdico dado à figura na peça.

O que as duas obras edificam dentro do debate do teatro contemporâneo é um pensamento rico acerca da figuração. No primeiro caso, a figura fica separada na pele do ator, expondo na superfície da pele o próprio paradoxo moral da subjetividade do ator ocidental. Enquanto no segundo se torna alegoria simbólica para a reflexão de um tema (arte e violência) que ultrapassa a própria persona/figuração de Manoel Moreira/Cara de Cavalo. Logo, nota-se o quanto o teatro tem a potência de refletir criticamente acerca de problemas e questões latentes das artes. E as questões do sujeito/agente, na desestabilização do biográfico pela pesquisa atorial em Farnese de Saudade, e as da arte/violência, pela reflexão alegórica e crítica de Cara de Cavalo, foram tocadas com bastante sensibilidade pelas obras.

Notas

(1) Os dois amigos a quem dedico a crítica participaram vigorosamente de minha formação intelectual, sendo, igualmente, interlocutores teóricos dos criadores dos espetáculos. Dinah Cesare ligada ao grupo teatral de Celina Sodré e Manoel Friques à Aquela Cia.

(2) In: http://www.questaodecritica.com.br/2013/01/a-forca-do-primitivo/

(3) O texto foi gentilmente cedido pelo autor.

(4) Figura utilizada várias vezes por Naves em seu artigo.

Referências bibliográficas

ASLAN, Odette. O ator no Século XX: Evolução da técnica/ Problema da Ética. Trad. Raquel Araújo de Baptista Fuser & Fausto Fuser. São Paulo: Perspectiva, 2010.

BERGSON, Henri. O riso – ensaio sobre a significação da comicidade. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

DELEUZE, Gilles. A dobra – Leibniz e o Barroco. São Paulo: Papirus. Tradução Peter Paul Pelbart. 2012.

Gunning, Tom (1995), “O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema”, in Charney, Leo; Schwartz, Vanessa R. (Orgs.), O cinema e a invenção da vida moderna, São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

NAVES, Rodrigo. O Vento e o Moinho- Ensaios sobre arte Moderna e Contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

João Cícero Bezerra é crítico teatral, dramaturgo e teórico de arte, formado em Teoria do Teatro, mestre em Artes Cênicas e doutorando em História Social da Cultura.


Artigo produzido para o 2º Encontro Questão de Crítica, realizado em março de 2013 no Espaço Sesc.

Informações sobre o 2º Encontro Questão de Crítica ::http://www.questaodecritica.com.br/encontro/

Assista à gravação da mesa-redonda sobre a crítica no cinema e nas artes no nosso canal no Vimeo :: https://vimeo.com/81711099

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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