Opções diante do relato pessoal

Crítica da peça O Lugar Escuro, de Heloisa Seixas, direção de André Paes Leme

27 de janeiro de 2013 Críticas
Foto: Leo Aversa.

O lugar escuro nasceu como a canalização artística de experiências pessoais de Heloisa Seixas – primeiro transpostas para a literatura e agora adaptadas para a cena –, particularmente no que se refere à convivência dentro da esfera familiar com o Mal de Alzheimer. A autora propõe uma estrutura norteada pela reverberação da doença da mãe nas vidas de filha (personagem que simboliza a própria Heloisa) e, com mais suavidade, neta.

O entrelaçamento de jornadas femininas ao longo do tempo, porém, fica parcialmente prejudicado pela pouca função da neta dentro da construção dramatúrgica. Do modo como é apresentado, o texto sobrevive, em especial, a partir do embate entre as duas mulheres mais velhas, tanto no que se refere à dificuldade da filha de lidar, a cada dia, com a doença da mãe quanto à evocação do passado (a revolta diante da criação hippie, o sofrimento decorrente do término de um casamento). Mesmo que, logo no início, Heloisa Seixas revele preocupação em articular as trajetórias das três personagens (“quando minha filha saiu de casa, minha mãe enlouqueceu”), essa conjugação não é suficientemente concretizada em cena.

Heloisa Seixas procura minimizar, até certo ponto, o teor confessional do projeto, talvez com o intuito de ampliar a abrangência da obra. Entretanto, à medida que o texto avança o dado autobiográfico se impõe com força crescente, evidenciando algum desnível na dramaturgia. Há, em todo caso, uma apropriação da fala em primeira pessoa, tanto por parte do diretor André Paes Leme – que conduziu, anteriormente, uma montagem dessa natureza, o monólogo Chega de sobremesa, com Stella Freitas – quanto das atrizes – entre elas, Clarice Niskier se debruçou sobre outro monólogo, A alma imoral, no qual se colocava, de maneira direta, no modo de dizer o texto do rabino Nilton Bonder. Paes Leme imprime leveza à cena, mas sem perder de vista a densidade do material, e as atrizes projetam a dimensão das experiências relatadas por Heloisa Seixas.

Camilla Amado materializa o presente em cena por meio da construção do tempo da escuta e da fala, distanciando-se de convenções da representação. Clarice Niskier imprime autoridade e pulsação sanguínea à filha, surpreendendo com um registro interpretativo que pouco tinha despontado em seus trabalhos anteriores. Laila Zaid fica, inevitavelmente, prejudicada pela escassez de elementos lançados pela dramaturgia em relação à neta, mas a atriz procura driblar, conforme o possível, essa limitação.

A discrição conduz a criação do espetáculo com resultados variáveis. A cenografia de Carlos Alberto Nunes parece ter se pautado pela conexão evidente entre a perda de vínculo com o mundo externo do vitimado pelo Alzheimer e os escaninhos da mente através de pequenos móveis dotados de gavetas que ficam à deriva na arena do Espaço Sesc. Os figurinos de Kika Lopes são adequadamente simples, destacando a cor preta como base. A boa iluminação de Renato Machado traça pequenos rasgos de luz no espaço, envolve os atores/personagens em focos e leva-os a gravitar em torno de um grande círculo. José Maria Braga, responsável pela direção musical, pontua a cena com delicadeza. Apesar das restrições, O lugar escuro resulta de uma abordagem acessível e sensível acerca das reverberações do Alzheimer, doença que confina o indivíduo num universo fechado e talvez insondável, no círculo afetivo e familiar.

Daniel Schenker é doutorando da UniRio e crítico de teatro do Jornal do Commercio.

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