A expressividade da sugestão

Crítica da peça Hamelin

23 de março de 2010 Críticas
Foto: Lenise Pinheiro

Há um apagamento e, ao mesmo tempo, uma evidenciação do fazer teatral em Hamelin, montagem de André Paes Leme para o texto de Juan Mayorga. De um lado, o diretor demonstra a preocupação em investir numa cena neutra, impressão confirmada pela utilização funcional de elementos básicos (mesas e cadeiras), pela opção por cores discretas (predominância do preto) e por figurinos despojados, diretamente importados do cotidiano. Do outro, os atores não ocultam do público a construção da cena. Manipulam objetos e o som, produzem atmosferas, lêem rubricas e transitam, quase sempre, entre diferentes personagens.

Com exceção de Vladimir Brichta – encarregado de interpretar o juiz Monteiro, que se envolve cada vez mais com o desvendamento de um provável caso de pedofilia (também como fuga a uma dificuldade pessoal, de aproximação com o próprio filho) -, os demais atores se revezam entre os diversos personagens de Mayorga e a figura do Comentador.

O Comentador visa a estimular a imaginação da plateia. Afinal, os atores, muitas vezes, não concretizam como personagens o que narram como comentadores, dotando as palavras de um teor sugestivo. Em determinados momentos, o ator/Comentador repete de forma neutra as falas que os atores portando seus personagens acabaram de dizer numa dada entonação. Parece uma maneira de lembrar ao público que não há um único entendimento possível ou correto. Cada espectador pode emprestar um sentido diferente ao que acabou de escutar.

Não por acaso, um dos atores observa: “esta peça é sobre a linguagem: sobre como a linguagem se forma e se deforma”. A frase talvez remeta à dificuldade de buscar uma verdade absoluta diante de modos de expressão tão distintos, a julgar não só pela maneira como cada personagem se apropriou dos fatos concretos como pelo repertório diferenciado de cada um.

Entretanto, Juan Mayorga conduz o espectador – e o faz utilizando as ferramentas do suspense para ressaltar, ao final, que não é o desdobramento do caso investigado por Monteiro o que importa, e sim as questões suscitadas pelo mistério proposto. O dramaturgo traz à tona o debate ético em torno da manifestação de um desejo prejudicial ao outro e a dificuldade de estabelecer vínculos íntimos, conectando estes pontos ao desamparo infantil, simbolizado na referência no título a O flautista de Hamelin, conto dos Irmãos Grimm sobre o encantador de ratos que enfeitiça as crianças da cidade alemã como vingança pelo fato de não ter recebido sua recompensa. Em todo caso, o emprego do suspense como estratégia talvez não deva ser reduzido a um jogo de manipulação do espectador porque Mayorga justifica, pelo menos em parte, o suspense ao tematizar a falta de respostas, o mistério que periga permanecer insolúvel.

De qualquer modo, existe, em Hamelin, uma proposta de relação algo didática com o público, a exemplo dos instantes em que os atores sublinham que a co-autoria de quem assiste (através de frases-síntese, como “Hamelin é uma peça sem luzes, sem cenários, sem figurinos, uma peça em que luzes, cenários e figurinos são colocados pelo espectador”). Já as passagens em black-out parecem concebidas com o intuito de estimular a imaginação do espectador. Há, novamente aqui, uma tensão entre o realce de uma carta de intenções e o investimento no sugestivo.

A maioria dos atores segue, acertadamente, a trilha da sugestão, imprimindo posturas diferenciadas para os personagens sem, porém, incorrer em recursos convencionais de composição, com destaque para Oscar Saraiva, muito bem na construção do constrangimento do menino Zé Maria, em especial no que se refere à hesitação da voz e aos movimentos de mãos, e para a presença bastante segura de Claudia Ventura.

Hamelin, graças à direção instigante de André Paes Leme, valoriza o texto por meio de bem-sucedidos procedimentos. Numa passagem em que Monteiro interroga Zé Maria, o foco de luz recai sobre o segundo projetando sombras no espaço, possíveis fantasmas ameaçadores nessa história de Juan Mayorga.

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