A luz no lugar escuro

Crítica da peça O lugar escuro, de Heloisa Seixas, dirigida por André Paes Leme

30 de janeiro de 2013 Críticas
Foto: Leo Aversa.

O espetáculo teatral O lugar escuro, dirigido por André Paes Leme e escrito por Heloisa Seixas, pretende lançar luz sobre um tema que vem ocupando a população mundial recentemente: o mal de Alzheimer. Com a ampliação da expectativa de vida dos idosos nos grandes centros, surge a demanda de se refletir acerca dos problemas pertencentes a esta fatia da sociedade.

O fato de a doença atingir em grande parte idosos, agindo sob o cérebro dos mesmos, apagando suas memórias e causando um quadro de demência, faz-nos observar uma representação da loucura distinta da esquizofrenia e de outras doenças neuropsicológicas que tocam pessoas mais moças, que, por vezes, já apresentam seus sintomas de insanidade desde o momento do nascimento.

Com um pouco de esforço imaginativo, observaremos que cada uma destas doenças nos apresenta peculiaridades da linguagem humana. Foi a linguagem humana que as catalogou. Logo, a taxonomia das doenças pode dizer algo no que se refere à própria linguagem do homem e seus limites. A esquizofrenia nos mostra o quanto o ‘eu’ concebe uma ilusão de segurança que nos garante o lugar de indivíduo dentro da sociedade. As vozes soltas dentro da mente do esquizofrênico nos aponta para o aprisionamento de nossas vozes dentro de nós mesmos. Já o apagamento da memória no doente de Alzheimer nos indica o quanto o homem é formado, sobretudo, por suas lembranças – já que a realidade do passado parece ser intocável. Ou seja, mais do que um laudo médico, as doenças trazem em seu cerne lógicas sociais profundas.

Para a ciência, as doenças são um dado objetivo. As vozes no cérebro de um esquizofrênico representam distúrbios fisiológicos cerebrais, identificados por aparelhos e por quantificações estatísticas que determinam a reincidência dos casos em determinado contexto familiar específico (mapeados pela origem genética e/ou pela prática social simbólica do grupo estudado). Do mesmo modo, quanto ao mal de Alzheimer, trata-se da morte do cérebro, o apagamento da massa encefálica, sendo explicável por padrões comportamentais inscritos em tabelas, gráficos, etc. Nos dois casos busca-se, por meio de aparelhos e procedimentos médicos de catalogação dos sintomas das doenças,dar um sentido clínico a tais mazelas. A ciência busca, fundamentalmente, entender o que socialmente torna-se crônico, visto que tais doenças acabam alcançando os indivíduos que estão próximos aos doentes. Contudo, a ciência faz esta operação buscando ajuizar fundamentalmente sobre cada fenômeno, sem abrir mão da reflexão, pois, por mais que se construa objetiva, a ciência necessita do juízo do homem para existir.

Para a arte, tais dados clínicos são importantes. Entretanto, a arte necessita de ajuizamento, imaginação e de reflexão para se construir. E se ambas se constroem atentas a esta exigência, a arte está mais ocupada com os sintomas simbólicos do que necessariamente com os físicos. Ambas distinguem-se, assim, por graus, e não tanto por diferenças estanques. Não se pode deixar de refletir o quanto a arte tem sido usada pela psiquiatria e vice-versa. Assim sendo, nota-se a intersecção entre crítica e clínica. E o texto de Seixas se constrói como relato de um eu, a filha, diante do problema da doença da mãe.

Dialogando em alguns momentos com o vocabulário clínico, o texto mostra o quanto a liberdade de movimento da escrita ensaística pode romper com o estritamente clínico, questionando verdades que tornaram-se senso-comum para o mesmo – por exemplo, o fato de o doente de Alzheimer não saber que está enlouquecendo. De fato, o senso-comum é construído pelo gosto comum e pelo saber comum. Logo, tal senso comunitário traz em si verdades e mentiras no que se refere à arte e à ciência. E, criticamente, devemos nos deparar com estes lugares-comuns, perscrutando suas encruzilhadas.

O texto dramático de Seixas provém de seu romance homônimo. A ficção se constrói através de três personagens: a filha, Clarice Niskier; a mãe doente de Alzheimer, Camila Amado; e a neta, Laila Zaid. No desenrolar da história, a peça conta sobre o momento em que a personagem de Niskier se despede da filha, que sai de casa, entrando em contato imediato com a doença da mãe.

No palco, as três atrizes estão presentes durante todo o tempo do espetáculo. A personagem de Niskier e a de Zaid dividem, de modo desigual, a narração acerca da doença da matriarca, cabendo à personagem de Niskier ser o núcleo do relato do acontecimento. Já a mãe, interpretada por Amado, é a personagem de quem se fala, uma espécie de ‘ela’ perdida, que, ao perder a sanidade, provoca em sua filha um processo de aprendizado moral e afetivo, que a faz rever o histórico de seu relacionamento com a mãe.

A encenação de André Paes Leme é econômica. Não apenas por fazer uso de poucos elementos cênicos, mas por deixar que os atores e a contracenação edifiquem um ritmo interno na narração da história. Não se excede nas músicas (direção musical: José Maria Braga) – o que é um recurso fácil para o estabelecimento de um ritmo meloso (que alguns sempre se justificam pela escolha do melodrama) -; chegando, propositadamente, a momentos secos e duros. As três atrizes estão muito bem em cena. No entanto, Niskier e Amado merecem destaque pela dificuldade do trabalho. A primeira leva o texto de Seixas do início ao fim do espetáculo, construindo uma personagem complexa, e que se expõe cruamente na relação com a mãe. Camila Amado compõe sem exageros sua personagem, ensinando que o humor de sua composição pode provir de uma construção interna e não por meio da execução de trejeitos caricatos. Os demais elementos do espetáculo são sóbrios e dialogam igualmente com o texto: o figurino (Kika Lopes) com os fios no xale de Amado, o tom escuro das vestes das personagens e o cenário (Carlos Alberto Nunes), dotado de uma transparência seca, ratificam a opção pela crueza e pela construção simbólica de um lugar escuro.

Entretanto, há um problema dramatúrgico no espetáculo. Ele é da ordem da transposição da narrativa do romance para a cena. Não se trata da opção realista e convencional do texto pelo relato. A narrativa é dirigida pela voz da personagem de Niskier, e vê-se, deste modo, uma história realista muito bem desenvolvida, com a personagem revelando toda sua carga dramática, moral e afetiva. O problema está na personagem da neta. As três personagens têm uma lógica bem definida pela autora: a mãe doente é uma espécie de objeto (problema reflexivo – sobre quem se fala), a filha é um sujeito intenso que se reflete, a todo tempo, em sua busca por autoconhecimento moral, e a neta uma espécie de agente curinga.

Qual a função deste agente curinga na obra? 1º) Compor um simbolismo artificial entre mãe, filha e neta. 2º) trazer ao palco momentos de citação literária, sendo uma espécie de super-ego literário da mãe – citando falas sobre a natureza do poeta e da fabulação, aludindo, num momento de destaque da encenação, ao mito de Perséfone. 3º) concordar com a mãe (Niskier) na imagem que esta erige da avó – como no fato narrado em que a personagem de Niskier diz que a mãe amaria mais o irmão ausente do que a ela. Cumprindo esta última tarefa, a personagem da neta se mostra como elemento artificial de resolução para confirmar a força de visão daquela personagem (a de Niskier), que tem a grandeza da confissão moral aos moldes do realismo positivista, porém nunca duvida de sua representação de mundo. Para ela, o cogito “Penso, logo existo” está corretíssimo – apesar de não citá-lo. Assim, a doença da mãe torna-se, de fato, um problema para o seu excesso de lucidez. E se ela ajuíza moralmente acerca de suas ações, por outro lado, não duvida de sua memória, visto que deseja, de algum modo, fixar-se na certeza de seu passado, entendendo lembrança e passado como sinônimos. Há aí, certamente, um medo profundo de enlouquecer.

Existe um modo convencional de se organizar as narrativas do romance. Basta mostrar certeza em tudo que é dito pelo narrador. Esse pode ser um eu ou um sujeito indeterminado. Contanto que ele seja seguro no que se refere à sua visada geral. Em O lugar escuro não se observa o exercício de diálogo quanto à representação de mundo. O que é visto provém majoritariamente de um sólido ponto de vista. Mesmo na cena em que a personagem de Amado assiste à de Niskier num acontecimento do passado, apesar do jogo criado pela direção, aquele episódio transcorrido continua fixo e indubitável para a narradora, como se houvesse nela bastante confiança quanto aos fatos. Se a filha discordasse em algum momento da mãe, se ela pusesse em xeque a memória da mesma, haveria a ação de um conflito dialógico tensionando o desenrolar da história. Mas isso não ocorre.

Numa primeira camada de observação, os problemas de carpintaria da peça estão resolvidos. O espetáculo comunica sua história. Há clareza nos códigos cênicos. Deve-se dizer que há muitos espetáculos que se orgulham de sua pródiga carpintaria teatral, mas sem qualquer complexidade temática. Nesta peça, assiste-se a temas sérios tratados com maturidade e respeito. A ausência de carpintaria é mais profunda: ela está na falta de um diálogo real entre as três. O núcleo do relato não se dialelitiza. E, observando os planos hierárquicos compostos por Seixas, a personagem de Zaid é artificial demais. Nota-se aí um problema para a dramaturgia, uma vez que a força de O lugar escuro se dá na construção realista e complexa dos afetos existentes entre as outras duas personagens. Há carne e osso nas duas personagens principais, enquanto a neta está ali apenas como cabide. Poderia ser uma espécie de personagem simbólica. Mas o seu simbolismo também não possui força, tornando-se artificial. Do mesmo modo, poderia ser artificial. Mas seu artificialismo deveria mostrar-se mais consciente de si, desdobrando-se numa função metalinguística mais forte, e não tão esquemática.

Na peça, diz-se que a personagem se salvou pela palavra, pela escrita. Contudo, a palavra e a escrita também nos levam à deriva. Certamente, o que salvou esta personagem foi a necessidade de um relato seguro, em que ela própria se organizava a fim de emergir de sua escuridão amedrontadora. Há em O lugar escuro uma intensa luminosidade. Esta traz sua grandeza, pois expõe um desejo imenso de iluminar o terror e o medo de acabar como a mãe.

Contudo, talvez haja paz dentro da escuridão. Por isso, o final da peça seja tão belo. Nele observa-se a força inexplicável de uma canção de habitar a ruína sombria da mente. Há ali uma outra espécie de luz… Uma luminosidade menos desesperada, mais reconciliada.

João Cícero Bezerra é crítico teatral, dramaturgo e teórico de arte, formado em Teoria do Teatro, mestre em Artes Cênicas e doutorando em História Social da Cultura.

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