Geografia da exclusão

Crítica da peça Bom Retiro 958 metros, do Teatro da Vertigem

1 de novembro de 2012 Críticas
Foto: Flavio Morcbach Portella

O Teatro da Vertigem evidencia a ampliação do conceito de texto por meio da utilização de espaços não-convencionais, a exemplo das apresentações em igreja (Paraíso Perdido), hospital (O Livro de Jó), presídio (Apocalipse 1,11), rio (BR3) e prédio (Kastelo). O público é inevitavelmente influenciado pela carga desses espaços – carga que se converte em texto não-verbal, confirmando que as vias de acesso aos espetáculos não se dão mais tão-somente pelas palavras proferidas pelos atores em cena.

Não é diferente em Bom Retiro 958 Metros, encenação itinerante na qual os espectadores percorrem as ruas e determinados espaços fechados do tradicional bairro paulistano. Se os espetáculos da Trilogia Bíblica foram estruturados em espaços fechados, às vezes claustrofóbicos, o Vertigem vem confrontando, cada vez mais, o público com as especificidades dos espaços abertos, a julgar pela interação com São Paulo suscitada por BR3, Kastelo e, agora, Bom Retiro 958 metros.

Mesmo antes do início da apresentação dessa nova montagem, a plateia é convidada a desvendar o Bom Retiro através do percurso compreendido entre a Oficina Cultural Oswald de Andrade e a entrada de um shopping, locação da primeira parte do trabalho. Antigo reduto da imigração judaica, o Bom Retiro recebeu, ao longo do tempo, outras presenças estrangeiras, como a de coreanos e bolivianos. Hoje se apresenta como um bairro de movimentação intensa durante o dia, bem mais comercial do que residencial – não por acaso, deserto e mal iluminado durante a noite.

Nessa parte inicial, o público é conduzido pelo interior do shopping que sugere um nível sócio-econômico superior ao do bairro no qual está instalado. O diretor Antônio Araújo, a partir do texto de Joca Reiners Terron, contrasta a abordagem social (a figura do mendigo que atravessa o espetáculo) com a suspensão do real (os números musicais fantasiosos dentro do shopping). Mas, à medida que a encenação avança, Bom Retiro 958 metros destaca com contundência a questão da exclusão – não só através do mendigo expulso do templo do consumo como da manequim defeituosa, constantemente rejeitada por não estar sintonizada com o padrão estético exigido.

Ao saírem do shopping, os espectadores voltam a transitar pelas ruas do Bom Retiro se deparando com cenas que sobrepõem o passado (a delicada imagem das costureiras projetadas em fachadas) e o presente do bairro. A energia visceral, catártica, algo kamikaze, do grupo se impõe aos poucos, particularmente na passagem em que o público é levado a transitar por uma rua repleta de imagens perturbadoras do que parecem ser fragmentos de corpos humanos misturados a retalhos de manequins. O desespero irrompe nesse espaço arruinado e caótico.

O Teatro da Vertigem promove uma interação com a cidade ao realizar o espetáculo em ruas abertas ao tráfego, o que tende, possivelmente, a realçar a importância do acaso. Os integrantes do grupo se apropriam do espaço na construção das cenas, conforme as alterações provocadas na iluminação “natural” dos postes em certos momentos. Há, nesse sentido, uma manipulação do “real”, apesar do espaço ganhar representação mais documental que em outras montagens. Afinal, a igreja, o hospital, o presídio, o rio poluído e o prédio espelhado não eram correspondentes literais em relação aos universos temáticos abordados em cada uma das encenações anteriores. Ao invés disso, pareciam sintetizar e, ao mesmo tempo, potencializar os discursos do grupo.

Já ao palmilhar a geografia do Bom Retiro, Antônio Araujo se debruça sobre as especificidades do bairro, ainda que não só. Se em BR3 o Teatro da Vertigem se deteve sobre outra região de São Paulo, a Vila Brasilândia, visando, porém, a confrontar o público com uma panorâmica do Brasil (decorrente também de imersões nas cidades de Brasília e Brasileia), em Bom Retiro 958 metros o entrelaçamento entre diferentes épocas na história do bairro traz à tona questões abrangentes (como a mencionada abordagem da exclusão).

Seja como for, o elo com o real não se manifesta a partir de uma perspectiva didática, como fica comprovado em toda a parte ambientada no fantasmagórico Taib (Teatro de Arte Israelita Brasileiro), no qual a riqueza do patrimônio cultural – vide breves menções à cultura judaica (como o nome do escritor iídiche Sholem Aleichem, escrito na parede de fundo do palco) – contrasta com a decadência de um espaço degradado. A administração das provocantes propostas espaciais se sobrepõe, em alguma medida, ao detalhamento das interpretações dos atores, mas o espetáculo confirma a inquietude do Teatro da Vertigem.

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