Quando a tecnologia é transformada em efeito

Crítica da peça What’s wrong with the world?

15 de abril de 2008 Críticas
Foto: divulgação.

O espetáculo What’s wrong with the world?, em cartaz no Oi Futuro, conforma uma proposta inovadora: quebrar as barreiras geográficas e subjetivas entre os continentes pela cena simultânea no Brasil (Rio de Janeiro) e na Inglaterra (Londres), transmitida ao vivo via internet streaming – “tecnologia que possibilita transmissões ao vivo em broadcasting – rádio, TV e teleconferência.” O espetáculo integra a série Play on earth das companhias Philia 7 e Station house opera, que, em sua primeira edição brasileira, em 2006, contou ainda com a participação da Theatre works, de Singapura. A idéia que o projeto sugere é a de que a pesquisa de linguagem, atualizada em tempo real pela internet e desenvolvida por cada companhia através de suas próprias construções cênico-dramatúrgicas, discuta a virtualidade, a troca de informações por indivíduos distintos e, talvez, a transformação lúdica do nosso conceito de diáspora. Contrariamente a diáspora, que figura os povos (pertencimento) espalhados pelo mundo em comunidades, a proposta do espetáculo parece destruir a noção dessas comunidades como porções subjetivas. O subjetivo é intercontinental.

O teatro é uma instância que potencialmente pode tensionar a tecnologia por ser um campo de produção artística que incorporou elementos tecnológicos em seus processos de criação e reprodução, contra a idéia de pensar a arte como uma evolução linear. Os artistas embaçam hierarquias entre diferentes linguagens que eram consideradas como alta ou baixa cultura, recuperam pela fragmentação e combinação estilos e perspectivas descartadas. E isso, me parece, faz parte da concepção da curadoria do Oi Futuro quando investe em expressões que exploram a interação da tecnologia com recursos do teatro, das artes visuais e das artes plásticas Porém, o espetáculo What’s wrong with the world? não realiza esta proposta e parece revelar o teatro como um campo atrofiado de sentidos.

A fisionomia da construção cenográfica favorece diferentes pontos de vista: duas telas frontais alocadas do meio para o lado esquerdo do palco, onde se sobrepõem as transmissões de Londres, as cenas que acontecem no palco, as cenas em outros espaços do prédio do Oi Futuro e as cenas na rua. A cena teatral propriamente dita acontece ao lado e atrás das duas telas, fragmentando e dinamizando nosso olhar e nossa apreensão. Mas isso não basta para que o espaço participe do processo de reflexão. Neste espetáculo, o que está em potência anunciada pela forma e que sugere novos enquadramentos se desfaz ao longo da encenação. Creio que um dos principais problemas reside na estrutura da dramaturgia – que cria um diálogo fechado calcado em clichês conhecidos a respeito das relações humanas, a respeito do vazio e da incomunicabilidade. Em relação às cenas de rua, estas, infelizmente, parecem despotencializar o teatro das suas possibilidades de interação: a atriz corre de um lado para o outro sem causar nenhuma alteração na paisagem, o ator fala ao telefone na janela de um apartamento causando o riso da platéia. O único momento em que os espectadores pareceram engajados em algum evento foi quando dois senhores desavisados passaram ao lado do ator que estava sendo filmado no bar anexo à sala de espetáculos. O efeito provocado era similar ao daquelas conhecidas pegadinhas exploradas pelos programas televisivos.

O fato de a tecnologia ser problemática – ela não funciona em vários momentos – revela a precariedade do diálogo entre os objetos. Não fez a menor diferença o fato de existir algo acontecendo ao mesmo tempo em outro lugar, na medida em que isso não está relacionado reflexivamente com a cena construída pela companhia brasileira. Do que conseguimos ver (não conseguimos escutar bem) do espetáculo londrino, fica a impressão de que lá acontece algo mais interessante. Em What’s wrong with the world?,  os recursos tecnológicos parecem ter sido assimilados como uma mercadoria com a qual se familiarizou, que virou artefato doméstico, e com a qual não se estabelece nenhuma relação de resistência. Desconheço detalhes do processo de construção do texto dramatúrgico brasileiro mas o programa diz ter sido elaborado em conjunto pelo elenco e a direção. Isso torna ainda mais opaco o meu entendimento destas escolhas, por que parecem ressaltar a obsessão do indivíduo de deixar sua marca diante do consumo generalizado.

Por outro lado, os atores trabalham fora dos padrões tradicionais de representação, fora das noções dramáticas e parecem mesmo discutir a representação. Do modo como eu percebo, essa é a única rede possível que o espetáculo engendra. Marcos Azevedo trabalha num registro que parece imbricar as reflexões da sua trajetória como ator e, assim como Beto Matos, compõe um gestual seco, resistente ao drama e que nos remete ao cinema. Suas ações têm uma limpeza que, em alguns momentos, chegam a nos fazer duvidar dos sentidos mais pobres sugeridos pelo texto. Luciana Fróes tem participado de produções que propõem a construção de uma cena que dialoga com as tecnologias e com a materialidade. Pude acompanhar seu trabalho desde a companhia de dança Ikswalsinats e é visível em sua trajetória a releitura e transformação dos códigos que separam o real e o ficcional e a subversão dos limites entre linguagens. Aqui, diferentemente de no espetáculo Glass, ela parece criar e executar ações baseadas mais na fisionomia das coisas do que na dramatização, ou em algum psicologismo, e nos garante alguns bons enquadramentos, como seu andar com os sapatos amarelos ou os repetidos movimentos de arrumar, desarrumar e manusear o conteúdo da bolsa. Talvez seja o trabalho dos atores o que nos faz ainda procurar algum sentido no texto consumível.

O espetáculo formula um impasse: relega a tecnologia à categoria de efeito, tenta criar um artifício que a cena não consegue elaborar. O resultado é menos instigante e atualizador do que entediante. No público não afeito à relação arte/tecnologia deve prevalecer uma certa desconfiança ao final. Como não conheço o trabalho da companhia Philia 7, resta-me aguardar por outros desdobramentos.

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