Sobre teatro, resquícios e cinema

Crítica da peça Depois do filme, de Aderbal Freire-Filho, em cartaz no Poeirinha

23 de julho de 2011 Críticas
Aderbal Freire Filho. foto: Nil Canine.

Depois do filme, Ulisses não foi feliz, mas tentou. Desses desejos que muitas pessoas têm de saber o que acontece com o personagem após o final da história. Ulisses é o personagem de Aberbal Freire-Filho no filme Juventude (2008), de Domingos de Oliveira. O Ulisses da peça é o mesmo, tempos mais tarde. Pode-se dizer que a peça tem início, no mínimo, numa ideia interessante.

Saber se o personagem foi feliz não é, obviamente, a melhor pergunta. Saído de um filme de Domingos de Oliveira a única certeza é que o personagem será sempre profundamente reflexivo e frasista. Ulisses não foge desse lugar nostálgico meio confuso meio poético que rememora o passado na tentativa de avaliar o presente. Característica comum nos filmes de Domingos, porém neste caso, o texto da peça é do Aderbal. Tal “proximidade” textual evidencia uma relação mais intrínseca com a natureza do filme do que simplesmente a continuidade da narrativa da vida de alguém. Depois do filme é uma criação feita em cima dos resquícios de uma obra anterior. E estes resquícios estão à mostra.

A peça começa com uma edição de algumas cenas do filme. A edição é passada em telões posicionados nas paredes acima das cadeiras da platéia – no Poeirinha, novo espaço do Teatro Poeira inaugurado por esta produção, o público configura um corredor, com fileiras postas umas em frente às outras. Em algum momento da edição o ator entra. As cenas do filme não são necessárias à peça, pois, apesar de originada a partir do mesmo, a peça é independente dele. Ninguém precisa conhecer o filme para assistir ao espetáculo. Retirar as cenas do filme daria mais autonomia à peça. Mas, uma vez que as imagens editadas intentem, talvez, a uma homenagem, tais cenas dão um sentido bonito aos resquícios.

O ator entra. Perpassa as cadeiras espalhadas pelo corredor-palco, pára em frente a um amontoado de outras cadeiras que se encaixam até o alto da parede. O cenário de Fernando Mello da Costa exibe, mais uma vez, as cadeiras outras vezes vistas em peças com a direção de Aberdal. Contudo, as cadeiras, muito além de um elemento recorrente, concretizam um lugar de fala. Um lugar onde se senta e fala. O texto é dito com o tom de conversa informal, de uma contação íntima, entre amigos. As cadeiras aproximam o público, que está sentado na cadeira de quem ouve, de cúmplice. O público vira um ouvinte ficcionalizado da história de Ulisses. Vira os amigos, do filme. As cadeiras também são usadas para ilustrar passagens do texto por meio de mudanças nas suas posições – apesar ser um recurso bastante teatral, nem todas as mudanças são muito fluidas, provocando interrupções no ritmo do espetáculo, que, ao menos no dia em que eu vi, estava lento. Talvez porque Aberdal desse ênfase à parte poética do texto fazendo uso de pausas muito longas, e, como o texto em si já é poético, as pausas parecem um excesso, criam momentos dispersivos. As cadeiras, ainda, lembram os lugares de conversa do filme, os espaços para falar, um sofá, uma varanda qualquer.

De todos os resquícios, o que nitidamente salta aos olhos, ou melhor, aos ouvidos, é a forma da escrita dramatúrgica. Definido por Aberbal como “cinema falado” (no livro à venda no Teatro Poeira com o texto da peça), é a presença de uma espécie de rascunho de roteiro do próximo filme – um filme sobre Ulisses – que é colocado em cena. Que é falado em cena. Os momentos vividos por Ulisses no teatro iniciam-se sempre com a descrição do que seria a locação da cena para um filme. Por exemplo: “Exterior. Noite. Ulisses dentro do carro”. E a influência do texto cinematográfico se estreita por muitas outras vezes, como quando Ulisses descreve o movimento da câmera de filmagem até que esta encontre Ulisses em algum lugar. Digo “Ulisses descreve”, porque, apesar de ser uma descrição de cenas e imagens, a atuação de Aderbal não parece querer destacar o narrador do personagem, como se a todo tempo um estivesse afetando emocionalmente o outro.

A contação sugere a criação de um filme imaginário. Enquanto se observa o ator no teatro, cada espectador pode inventar para si a mesma história da peça como filme, atendendo ao jogo de imaginar tudo pelas lentes das câmeras de cinema. E para quem conhece bem a cidade do Rio de Janeiro pode ser um jogo divertido, porque Ulisses revisita os lugares marcantes da sua juventude e vaga pelas suas atuais áreas de convivência apresentando um conhecimento cheio de detalhes da geografia da cidade, do Centro à Zona Sul.

A relação com os resquícios do filme que se tentou evidenciar mostra, fazendo uma leitura mais abrangente, a convergência produzida há tempos por essas duas artes. O cinema e o teatro fazem citações frequentes um ao outro. A maneira mais usual, talvez, seja a adaptação – de uma dramaturgia para o cinema, de um roteiro para o teatro. Além de citações declaradas de outras maneiras, como um “inspirado em…” ou a repetição de falas de peças e filmes muito conhecidos no palco e na tela. Enfim, são, claro, infinitas as possibilidades de referenciar o outro, mas a proposta de Aderbal concedeu ao cinema a chance de fazer o “CONTINUA…” (das histórias que continuam nos próximos filmes) no teatro.

E por mais que a peça seja independente, e isto é importante e bem entendido, a história de Ulisses, no teatro, sempre partirá do Depois do filme. E tanto ele não se desliga desse passado, que este permanece na sua forma de falar ao público. A autonomia da peça se dá na dependência do filme que não está no palco (com a mesma história contada no cinema). A autonomia e a dependência estão nos resquícios.

Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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