Água-viva

Peça curta de Carolina Balbi, traduzida por Paulo Aureliano da Mata

24 de janeiro de 2012 Traduções

Tradução de Paulo Aureliano da Mata
Revisão de Tales Frey

“Ensinar a alma a viver sua vida, não a salvá-la… converter-se em filho de seus próprios acontecimentos… Ser digno do que se sucede… Extrair de um acontecimento, por menor que seja, algo alegre, amoroso, um fulgor, um encontro, uma velocidade, um devir, justamente o contrário de se fazer um drama ou uma história… Atravessar o horizonte, entrar em outra vida… compreender que os que haviam sobrevivido eram os que haviam realizado uma verdadeira ruptura… a experimentação, por si só, é a nossa única identidade, a única possibilidade para todas as combinações que nos habitam… há que se perder a própria identidade, o rosto… ser capaz de amar sem recordação e sem interpretar… experimentação-vida… experimentar, jamais interpretar… desaparecer, devir desconhecido…”
Gilles Deleuze

(Na praia, sentadas em frente ao mar. Carolina e Fernanda, numa esteira de praia, tomando sol.)

CARO: Vamos dar um mergulho, Fer?

FER: Claro.

(As duas levantam-se e vão. Carolina afunda os pés em um balde de água e permanece olhando para baixo. Fernanda derrama em si um balde de água. Voltam a sentar-se.)

FER: Por que você não pulou? Estava divina a água.

CARO: Sim, quase pulei. Quando olhei, eu percebi que havia uma água-viva gigante.

FER: Não havia águas-vivas, eu nadei um bocado.

CARO: Eu encontrei uma.

FER: Vá procurar!!!

CARO: Estou certa de que não há nenhuma.

FER: Mas se procurá-las, encontrará alguma.

CARO: Por sorte que eu as vi, senão…

FER: Senão o quê?

CARO: Não sei. Você tem sorte por elas não terem te queimado.

FER: É que não há nenhuma.

CARO: Eu vi uma.

FER: Uma!!! Não quer dizer nada. Capaz que seja a única.

CARO: A variedade vem da mudança. A chave está na repetição. Se há uma, há infinitas, poderia não haver, depende da temperatura da água, da salinidade, da época do ano, das correntes, não sei de que depende.

FER: Depende de você as procurar…

CARO: Eu as encontro, Fer, eu não tenho culpa. Queria mesmo é que não houvesse nenhuma.

FER: Se não quiser, não estarão, não as vê, não existem, não te queimam. Olhe como está toda essa gente na água curtindo.

CARO: Se arriscam.

FER: Você não gosta do mar?

CARO: Muito, mas quando não há perigo.

FER: Alguma água-viva já te queimou alguma vez?

CARO: Não.

FER: A mim, tampouco.

CARO: Mas eu tenho medo delas.

FER: Eu também, mas mesmo assim eu entro na água.

(Pausa. Trocam de posição, seguindo o sol.)

FER: Estou entediada de tomar sol.

CARO: Eu não. Porque reflito.

FER: Sobre o que você está refletindo?

CARO: Sobre o mar…

FER: Não entra, mas pensa nele…

CARO: Sim. Eu pensava que este mesmo mar que está aqui, está, ao mesmo tempo, nas costas da África ou de Buenos Aires e em todas as costas. Pensava que levaríamos dias para chegar até as suas outras partes, inclusive através dele, mas o mar já está aqui. Não vai, nem vem, simplesmente está em todas as partes ao mesmo tempo. É diferente em cada acidente, mas é a mesma e única grande massa de água, um contínuo presente.

FER: E…

CARO: Nada, isso. O mar como contínuo e flutuante presente, continente do Tudo.

FER: E as águas-vivas?

CARO: As águas-vivas ou medusas, um tanto primordiais seriam…

FER: A memória. Se você olhar o mar como um organismo inteligente, as águas-vivas viriam a ser seus neurônios, com suas dendrites, acumulando e transmitindo informações.

CARO: Perdão, mas sem desmerecer a sua profissão, discordo completamente, não podemos comparar o mar a um corpo organizado. O mar é um corpo, mas não possui órgãos.

FER: …

CARO: As águas-vivas, em todo caso, seriam… a consciência… a sabedoria.

FER: E tem medo delas.

CARO: Isso é diferente, queimam, fazem arder. Eu tenho medo da dor que podem produzir.

FER: Dá no mesmo.

CARO: Não. Me passa o bronzeador.

FER: Eu tenho saudade do meu namorado.

CARO: Matias?

FER: Não, Pablo. Troquei. Matias foi estudar em Buenos Aires. Com a distância não dá…

CARO: Que pena, era amoroso.

FER: Este também. Já vai o conhecer, porque ele vem.

CARO: Quando?

FER: Hoje, eu espero.

CARO: Eu sonhei que meu pai vinha.

FER: Não consigo imaginar o papai… Como era?

CARO: Jovem.

(Chega o salva-vidas.)

SALVA-VIDAS: Meninas, já disse a vocês que não podem vir à praia com cachorro. Ele suja o local.

FER: Perdão. É que ele escapa pelo portão.

CARO: Ele não gosta de ficar sozinho.

SALVA-VIDAS: Por mim, está tudo bem, mas quando se trata da prefeitura…

FER: Desculpa. É a última vez.

(Salva-vidas sai.)

FER: Papai era jovem como ele?

CARO: Não, este é um bebê. Jovem assim como eu. Também, papai era portenho.

FER: Como?

CARO: Não sei, assoviava tangos o tempo todo.

FER: Era lindo?

CARO: Eu gostava.

FER: Que assoviava tangos…

CARO: Não, ele.

FER: Como era? Alto, baixo, gordo, magro?

CARO: Alto, alto, eu o via alto, não sei. E lhe chamavam O Magro, então, devia ter sido magro em algum momento, no entanto, eu me lembro de uma grande barriga. Peluda, também. Certa vez, depois de jogar futebol, tirou a camiseta. Então, eu descobri que tinha todo o torso envolto com uma faixa de bolsas de polietileno, como um chouriço de plástico. Era “para transpirar mais”, dizia “e de passagem disfarçar a barriga”. Dizia ele, piscando o olho.

FER: Foram lançados ao mar, não?

CARO: Ao rio, de aviões.

(Silêncio. Cai uma bola de futebol sobre elas. Elas a devolvem.)

FER: Tenho calor.

CARO: Se joga na água.

FER: Não, agora tenho medo, por causa das águas-vivas conscientes.

CARO: Aqui na beira, não deve haver, há muita gente. Olhe como todos se banham sem problemas.

FER: Me acompanha.

CARO: Não, se eu vou, certeza que vai surgir uma.

FER: Quando você era pequena, havia águas-vivas?

CARO: Sim.

FER: E o que você fazia?

CARO: Me montava no papai. Com ele, eu não tinha medo.

FER: Então, vou esperar o Pablo para entrar.

CARO: …

FER: Parece papai, o Pablo?

CARO: Quando chegar, eu digo.

FER: Por que não temos nenhuma foto?

CARO: Levaram todas.

FER: Você estava, não?

CARO: Sim.

FER: E eu na barriga de minha mãe.

CARO: Sim… Fer, por que você me faz contar tudo de novo, mil vezes?

FER: Para ouvir.

CARO: Quer que eu te recorde também, que você viveu na cidade de Neuquén e eu em Buenos Aires.

FER: Por quê?

CARO: Por que o quê?

FER: Por que sempre vivemos separadas?

CARO: O que eu sei, grande coisa.

FER: Agora nós somos grandes.

CARO: Sim.

(Passa o salva-vidas assobiando um tango, as cumprimenta sorrindo com as mãos. Fica parado na proximidade delas.)

FER: Olha o salva-vidas, está na tua.

CARO: Até parece. Está na tua.

FER: Eu tenho namorado.

CARO: Você sempre tem namorado. De onde você arrumou este?

FER: Estuda veterinária, como eu.

CARO: Papai estudava filosofia.

FER e CARO: (ao mesmo tempo) E escrevia.

FER: Eu também escrevo.

(Apanham pedrinhas da praia e tratam de colocá-las nos baldes.)

FER: Se você atira assim, você faz um patinho. Vê? Repercutem na água.

CARO: Eu não consigo.

FER: Eu, desde pequena, atiro pedrinhas no rio Limay.

CARO: Eu não.

FER: Jogamos cinco-marias?

CARO: …

FER: No jogo cinco-marias, quem perde, faz a comida.

CARO: Não sei jogar cinco-marias, não dou conta.

FER: Então, você cozinhará.

CARO: Tá com fome?

FER: Não, mas tenho vontade de comer. E você?

CARO: Não.

(Pausa. Trocam de posição seguindo o sol.

Caro tira um caderno e uma caneta.)

FER: O que você está escrevendo?

CARO: Nada.

FER: Tá vendo?

(Esforçam, se riem, jogam e finalmente Fer pega o caderno. Folheia.)

FER: Mas aqui não tem nada.

CARO: Eu disse nada, é o que há.

FER: Você não escreveu sobre o papai?

CARO: Tento.

FER: É fácil…

CARO: Sim, não sei, pouco me importa mostrar o segredo da infância para deixar claro que alguém possui um segredo…

(Olham-se. Batem palmas. Grito de guerra.)

FER: Para a água!

CARO: Para a água!

(As duas se levantam e, decididas, vão para os baldes e os derramam sobre seus corpos.

Chega o salva-vidas correndo.)

SALVA-VIDAS: Cuidado, meninas, não se atrevam ir tão fundo, porque o mar está agitado.

(Caro e Fer, começam a jogar água nele.)

FER: Vem! Entra também. Assim, guardarás nossas vidas, Salva-vidas!!!

SALVA-VIDAS: Não. Eu cuido de vocês daqui de fora.

(Pausa. Saem da água. Ficam de pé. Olham-se em suspenso.)

FER: Caro… me queima todo o corpo.

CARO: Eu também… Fer.

FER: … Caro … não se assuste … mas você está cheia de águas-vivas pequenas, como gotas …

CARO: … você também, Fer … cheia.

FER: Dentro da malha… em todos lados, milhares de gotinhas de águas-vivas…

CARO: … dói? …

FER: Não… queimam….

CARO: Brilham…

FER: Deslizam-se, olhe…

CARO: Não é o ardor, é outra sensação…

FER: … é raro…

CARO: … lindo…

FER: É como… agradável…

CARO: Sim.

(Salva-vidas, na orla, aponta o mar.)

SALVA-VIDAS: Meninas, olhem que entardecer!

(Os três ficam em silencia olhando o crepúsculo. Caem em penumbras.)

CARO: Eu nunca choro.

FER: Eu tampouco.

Informações sobre a autora: http://www.alternativateatral.com/persona5171-carolina-balbi

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