Traços de um mapeamento afetivo
Crítica da peça Susuné – contos de mulheres negras, com Carolina Virgüez
Susuné, recente pesquisa cênica da atriz Carolina Virgüez, sob a direção de Antônio Karnewale, é uma potência, é uma necessidade de transformar o espaço de atuação numa área de livre trânsito, onde os vetores da memória são lançados nas mais variadas direções, onde se concentram fluxos alternados de temporalidade, resgate e recriação do passado, densidades, sonoridades e ritmos de voz, de som e de fala estrangeiros. Trata-se de um solo em que se denota uma inquietação bastante peculiar da atriz na concepção e realização de um projeto autoral, no sentido de trazer, para o plano estético, elementos que entrelaçam à ficção muito de sua vida particular, onde a personagem se confunde com a sua intérprete, ou melhor dizendo, onde a intérprete se coloca na situação de personagem de sua própria existência, tanto na Colômbia, país de origem de Virgüez, como no Brasil.
Não se pode afirmar que há um eixo central em que se estrutura a dramaturgia, cuja colaboração ficou a cargo de Emanuel Aragão: Susuné trata das relações de alteridade do indivíduo na situação de estrangeiro, aquele que se desloca de suas raízes e que se afasta dos costumes que o identificam como sujeito, para recriá-lo e redimensioná-lo numa outra terra. Susuné também trata do processo de construção de referências do indivíduo que ignora as influências das culturas ancestrais na composição do eu subjetivo. Por fim, trata-se de um retorno de afirmação da subjetividade, de um regresso, de refazer o caminho de volta para se conhecer ou para oxigenar as lembranças do corpo e da mente para saber quem se é. E Virgüez teve que vir morar no Brasil para conhecer melhor a sua condição de cidadã negra e de índia colombiana, mesmo sendo branca e de cabelos lisos. Por esse aspecto, detecta-se, a partir da percepção negativa do preconceito, a similaridade étnica entre as duas culturas. Ambos os povos tiveram seus direitos negados de se eternizarem como sujeitos históricos, orgulhosos de suas conquistas e vitórias. Aqui no Brasil, tudo de ruim que acontece, a culpa é sempre “do neguinho”.
A peça expande as possibilidades de compreensão dos contos escritos pela conterrânea da atriz, a também colombiana Amalialú Posso Figueroa, vocalizando e encontrando meios corporais expressivos para narrar três pequenas histórias de negras que se destacam pelo vigor, pela sensualidade, pela presença e pelo encanto. Mulheres essas que exercem função mediadora entre os fenômenos terrenos e a fatalidade do sagrado. Segundo site La Otra, o eixo temático que define a poética de Figueroa se caracteriza pela necessidade de registrar a oralidade “de la gente del Chocó, población negra entre el Caribe y el Pacífico colombianos. En sus relatos descubre la sensualidad de la etnia Afrocolombiana, de donde provienen los recuerdos de su infância”.
Tanto o trabalho de criação literária de Figueroa, que também é professora acadêmica em Bogotá, quanto a atuação de Virgüez de materializar os contos de Susuné na área cênica expressam, em estéticas próprias a cada veículo artístico, a busca pelo legado primordial de uma gente que viveu para cantar os seus mitos e que, no entanto, foi dizimada pela exclusão do progresso, foi soterrada na montanha do esquecimento e da ignorância de uma sociedade que parece não se preocupar em afirmar ou estreitar laços com o passado, e, talvez, nem com o presente. Talvez o exercício de análise desse espetáculo possa se aproximar dos esforços empreendidos pela atriz de trazer, para o conhecimento da plateia carioca, uma fatia da obra de Figueroa e, por meio dela, perceber que as relações sociais entre os dois países se estruturaram sob certos regimes de exclusão quase idênticos. A relação de alteridade que mantemos com nossos vizinhos latinos, em especial no plano da produção cultural, ainda é muito frágil.
Outro aspecto bastante interessante que a temática da peça suscita está relaciona com a imbricação entre ficção e realidade. A estrutura da encenação não está apoiada somente na vocalização dos contos, mas também no modo como ela está estritamente entrelaçada com a citação de personagens reais, impregnando os volumes de lembrança de uma dimensão carregada de poesia. O corpo da personagem é o corpo da atriz aos cinquenta anos de idade. Mesmo que a atriz rememore seus dias de infância e adolescência, é o corpo da atriz de cinquenta anos de idade que está em cena. Sua idade é por diversas vezes reiterada no decorrer da ação. Não há um trabalho de composição de personagem individualizado, não existe criação de uma psicologia para a figura que se representa como nos moldes do teatro tradicional. Não há um trabalho de elaboração psico-corporal que expresse as emoções da Carolina do passado e a que se apresenta diante da plateia. O que há é uma série de tensões na constituição desse sujeito, provocadas por partituras físicas significantes que evocam a potência de toda uma experiência de vida, como na sucessão de giros que a atriz dá ao som do batuque de tambor, executado pelo percussionista Michel Feliciano.
Porém, na medida em que o discurso remete para trás, quando ela rememora o dia de seu nascimento ou quando lembra da viagem que fez de avião para o Rio de Janeiro, aos dezoito anos, para ingressar na faculdade de teatro, na década de setenta, soma-se a todos esses fatos verídicos da sua vida uma atmosfera de lirismo que preenche as camadas afetivas do espaço cênico, dando mais força e contundência ao texto do que apenas o relato em si. E nesse sentido, quando a atriz cita a si própria, a ficção se estabelece.
A experiência de traçar virtualmente o caminho percorrido entre a Colômbia e o Brasil de avião, a necessidade de ter que voltar ao local de nascimento anos depois, acompanhada do marido, além da presença de um globo terrestre colocado por Virgüez em cena permite forçar o público a criar, no plano do imaginário, uma espécie de cartografia espacial, em que os rastros da memória pessoal da atriz vão deixando pistas de um mapeamento afetivo. As linhas de fronteira vão sendo constantemente redesenhadas e reconfiguradas na medida em que a natureza física, geográfica, social, psicológica e sensorial das negras que habitam o conto de Figueroa vão se amontoando no espaço cênico juntamente com Virgüez – que acaba se tornando mais uma delas: o quarto conto da peça, uma mulher que herda a cultura de suas ancestrais. Esse trabalho de cartografar emoções, longe de ser linear, congrega vida, obra, palavras e pulsão.
Entre as categorias que foram criadas para explicar o conceito de raça, dentre as divisões que são puras denominações, entre brancos, negros e índios, há uma densidade, uma massa múltipla de influências, um volume de intensidades não mensurável de desejo. Isso é o que o solo explora na cena.
Fonte:
LA OTRA. Disponível em http://www.laotrarevista.com/2009/03/amalia-lu-posso-figueroa/, acessado em 17/12/2011.
Pedro Allonso é ator e bacharel em Artes Cênicas, com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO.