Entre o ruído e o esvaziamento

Crítica da peça Um homem e três janelas

10 de fevereiro de 2009 Críticas
Foto: divulgação.

A experiência de arte da linguagem teatral parece estar sempre de um certo modo atravessando as noções de ficção e  de realidade. O teatro tem um estatuto duplo – a presença e o remetimento para outra cena. Isso constitui um modo de estar no tempo sempre complexo e paradoxal. O teatro contemporâneo investiga esse paradoxo e, por vezes, pode abrir uma clareira na qual o espectador, por meio da construção artificial que se dá, tenha a experiência de um mais puro real, ou seja, de um aqui e agora recheado de temporalidades distintas. Do modo como eu percebo, o espetáculo Um homem e três janelas, realizado pela Companhia de Teatro das Inutilezas, dá a ver uma cena que promove um trânsito por essas noções.

O texto dramatúrgico é um tecido de memórias – passado que explode no presente – que se repete ao longo da encenação em um processo de construção e desconstrução de suas imagens. Na versão apresentada no Centro Cultural da Justiça Federal, a projeção inicial que mostra o que seria a primeira leitura do texto realizada em ensaio pelas atrizes com o diretor, foi precisamente elaborada como figuração de imaginário, se dando a ver de forma circular no espaço cênico. Essa formalização sugere algo remoto, porém, exibido no agora. Não estaria aqui uma discussão própria dos recursos midiáticos que promovem experiências no presente de representações passadas? Materialidade sutil que formaliza a contradição do caráter transitório das ações humanas. Abre-se um espaço de paradoxo para o espectador que se repete ao longo da encenação.

Se fosse possível resumir a noção que a projeção oferece é a de uma espécie de quebra do mito tecnológico como aquele que pode fazer previsões para o futuro. Essa possibilidade de controle acaba sendo desconstruída pelo esfacelamento do texto nas múltiplas representações das atrizes para o mesmo evento da memória. O fluxo circular da história (texto-mito da memória) se mostra ineficaz para propor sentidos fixos e o modo alucinado com o qual, numa espécie de febre, a atriz Emileine Zarp opera o jogo da memória é o primeiro sinal desta desconstrução. A meu ver, Emileine é a atriz que constrói mais precisamente uma corporalidade engendrada pelas tensões temporais entre o passado e o agora, oferece um corpo que parece ser a ação do esfacelamento do texto.

A encenação é elaborada por um constante jogo entre ruído e esvaziamento. Essa composição, por vezes, é exagerada tanto por um dado, quanto pelo outro, deixando à mostra as fragilidades da direção. O ruído desnecessário me parece ser o insistente atravessar das atrizes na cena, causando mais desconforto do que estranhamento. Talvez se os corpos das atrizes tivessem mais uma qualidade quase fantasmática, o estranhamento fosse possível, mas o que acontece é um sublinhar de ruídos junto com dificuldade de operacionalização. O paradoxo aqui fica prejudicado. O esgarçamento temporal de determinadas partituras acabam não sendo eficazes para construir contrapontos, com algumas exceções, por exemplo, na cena em que Armanda Holcomb senta diante dos espectadores e brinca com a proibição do riso, ou quando Tuini Bitencourt desamarra suas sandálias e as deixa ali. No primeiro exemplo há uma mistura de patético (cadeirinha, placa de papelão escrita à mão e caretas da atriz) com a simplicidade do que acontece com o espectador que não resiste à graça e começa a rir. A meu ver, acontece pura percepção do agora. No segundo exemplo, a tensão que se abre é entre a utilidade (contraponto bem humorado com o nome da Companhia) e a realização estética.

O espaço que a direção construiu, colocando cena e espectadores no palco, possibilita uma apreensão de estranhamento e ajuste entre as esferas do que é ficcional e do que é o real, porém, perdeu a elaboração de uma visualidade de ruínas que se dava a ver por meio do recuo, na encenação das apresentações no Café Cultural. Nestas existiam partituras corporais precisas no sentido do que essa crítica discute e que, a meu ver, fizeram falta, inclusive prejudicando a percepção do trabalho de Tuini Bitencourt. Um exemplo é a cena em que a atriz figura uma máscara facial histérica. Havia um percurso que ela perfazia e que nos deixava ver toda sua corporalidade antes que começasse a gargalhar, o que prendia nossa atenção e nos preparava para algo de inesperado.

O excesso de ruído e o esgarçamento do tempo, na maior parte das vezes, provocam certo entediamento na recepção que, a meu ver, não parece ser proposital. É como se estivéssemos sendo atropelados por elementos que prejudicam o evento estético. Porém, essa questão não chega a apagar alguns momentos de presença das atrizes e colaboram para uma sensação que nos assalta do espaço material. Essa estratégia de colagem é bem-vinda, mas merece um apuramento em futuros trabalhos da Companhia.

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