Dramaturgia cênica delicada

Crítica da peça Ingrid

10 de setembro de 2008 Críticas
Atriz: Carolina Virgüez. Foto: divulgação.

A cena do espetáculo Ingrid opera um certo deslocamento em relação aos formatos mais usuais de monólogos em teatro. A meu ver não existe uma pretensão de construir um personagem que propriamente retrate a personalidade que é o ponto de partida do espetáculo, nem a peça insiste no sofrimento do cativeiro ao qual ficou sujeita a colombiana Ingrid Betancourt sob o poder das Farc. Acredito que o que está em jogo no acontecimento que o espetáculo quer revelar esteja impregnado nas ações corporais da atriz Carolina Virgüez. Um paradoxo refinado constitui suas ações que, para dar a ver cinestesicamente o sofrimento real de Ingrid Betancourt no cativeiro, trabalha com gestos expressivos que remetem a uma ordem simbólica. Este movimento, esta espécie de desequilíbrio formal (cativeiro e refinamento) constrói a possibilidade de apreensão de sentidos sócio-culturais por meio de um corpo que se dá a ver mais como político do que como portador de dramaticidade, ou seja, uma corporeidade que se constrói por meio de gestos que procuram uma negociação com o contexto.

A dramaturgia cênica é fragmentada, o que constitui uma encenação que se oferece por meio de imagens e em alguns momentos faz surgir uma leitura de instantâneos fotográficos que se tornam suporte para o trabalho da atriz e revelam uma corporeidade facetada. Esta conjugação, por vezes, se ajusta a gestos que ficam suspensos e em outros momentos parecem capturar uma ação em andamento, ressaltando aos nossos olhos um elemento corporal diferenciado, como, por exemplo, o andar nas bordas internas da pequena sala que serve de cativeiro e as mãos de Carolina Virgüez.

O desenho da luz no espetáculo torna-se, neste contexto, elemento igualmente dramatúrgico, pois escreve um percurso facetado que nada tem de gratuito e ainda compõe uma materialidade, por assim dizer, que constrói certas surpresas para o olhar.

A cenografia, o lugar do confinamento, parece sinalizar uma possível relação de alijamento à qual todos os nossos corpos estão sujeitos em relação às instituições de poder, sejam elas legais ou ilícitas. Este efeito se dá, na minha percepção, pela localização do dispositivo cenográfico fora do lugar central do palco, permitindo a existência de um grande espaço escuro. Estar confinado requer um espaço exíguo, um canto, mas nos faz pensar que existem complexas relações externas que não necessariamente estão visíveis para nós. Este espaço escuro da esfera social parece ser o da precária consciência cotidiana das imbricações políticas que inspiram nossas práticas.

Um espetáculo como Ingrid, que apresenta uma cena de realização cuidadosa, revela um refinamento e também uma certa transformação de noções enraizadas em formas teatrais mais tradicionais pois não é a exposição de um discurso monológico composto por uma espécie de fala dramática, suscita certamente que pensemos em certas especificidades da linguagem teatral. No caso desse espetáculo, o que parece mais comprometido, ou seja, mais problemático, é uma fragilidade do texto dramatúrgico propriamente dito. Os procedimentos da encenação materializam refinamentos que nos fazem perceber algo da esfera política da existência corpo-pensamento, porém, a meu ver, a maior parte do texto falado parece soar como algo panfletário, mesmo quando não se refere objetivamente às questões políticas. O texto soa como uma proposição que sublinha, que quer fixar o investimento ou o reordenamento político dos sentidos que a encenação provoca.

Acredito que as questões identitárias entre a igualmente colombiana Carolina Virgüez e Ingrid Betancourt se revelam nas camadas das subpartituras da atriz, ou seja, no que a inspirou, nas suas referências, nos seus elementos culturais em composição constante com sua subjetividade. Portanto, o texto parece ser um material estrangeiro, o que por si só não configuraria um problema. Não conheço o processo de trabalho do espetáculo, mas a sensação é a de que falta ainda uma etapa para a elaboração do texto, ou melhor, um outro nível de complexidade. Complexidade que a encenação tanto sinaliza quanto conforma.

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