No silêncio, a voz muda

Crítica da peça Outros tempos, de Harold Pinter, traduzida e dirigida por Pedro Freire

29 de julho de 2011 Críticas
Otto Jr e Cristina Flores. Foto: Dalton Valério.

O que o diretor Pedro Freire construiu em sua montagem da peça Outros tempos de Harold Pinter foi uma maneira de dar visibilidade às forças que, embora naturais do caráter humano, aparecem veladas por serem demasiado intrínsecas. Outros tempos, que esteve em cartaz no mês de julho no teatro SESC Copacabana, é uma peça que, sem recorrer a flashbacks, amarra as linhas do tempo num instante presente. A medida que os nós vão sendo atados, mais perceptível a cadeia de relações vai se tornando, porém nunca sendo completamente explanada. O projeto que possibilita a visibilidade dessas forças depende da edificação de três níveis de relação. A tarefa do diretor de equacionar um provável contato entre esses níveis é determinante para a definição dos eixos em torno dos quais a peça gira.

A camada mais profunda de contato entre os personagens estabelece um nível de relação seminal. Aparentemente, Kate (Paula Braun) e Deeley (Otto Jr.) formam apenas um casal comum, sem grandes peculiaridades, ou nada que justificasse trazer suas vidas à tona. A visita de Anna (Cristina Flores) dispara uma reflexão com poder de atualizar essa relação. O contato entre os três no passado – por mais que um não saiba completamente o quanto o outro sabe sobre esse contato, ou com qual intensidade ocorreu – cria um jogo de cumplicidades e alianças no presente. A relação entre os três personagens, por sua vez, se dá sob um acúmulo de apostas cada vez mais cáusticas. Estas determinam a posição, marcadamente insolúvel, em que eles se encontram no final da peça. Cada um pode ser o que conseguir lembrar ou forjar na lembrança do outro. O trabalho dos atores foi o de fabricar uma relação de ações correlatas ao texto para incluir uma transição de tensões que obriga a ação a desenvolver significados que são distintos do seu significado original. Assim, é nessa pluralidade de possibilidades que começam as apostas.

“Você aceita um conhaque?”, oferece Deeley imediatamente após sua esposa servir café com leite e açúcar a Anna. O que acontece é uma disputa por lembranças – da rotina, pela parte de Kate, de uma noite no bar, por Deeley e das afinidades, por Anna. Esse jogo é constantemente explorado durante os momentos de diálogo, de forma adversa aos efeitos cultivados pelo diretor nos solilóquios e nos silêncios. A principal força impressa nos diálogos é a de formar linhas de relações que atravessam o tempo, construindo a possibilidade de um contato atemporal. Eles não conjugam os verbos no passado para falar de ações vividas. Os personagens estão a todo o momento trazendo para o presente suas lembranças, refazendo-as. Cada ação assume assim uma temporalidade múltipla e, por isso, pode sofrer variações de tons de acordo com quem, como e em que situação da peça são lembradas/executadas. Como se o entendimento do que estivesse acontecendo dependesse da capacidade (interessada) de conectar a ação com os fatos do passado.

Cada ação, tendo um sentido para além da situação presente, se envolve com a ativação das lembranças. É nessa contenda que é criada uma tendência inerente desse primeiro nível de relações: a disputa pela familiaridade de um com o outro. Isto é, o que o diretor cunha como intenção dos personagens é o afã de possuir o sujeito alheio, eles anseiam por saber todos os segredos do outro, com a pretensão de compreendê-lo melhor do que o próprio. Paralelamente aos diálogos, há uma luta corporal pelo domínio espacial do outro, uma tensão entre proximidade e distância, a fim de definir as associações entre os três. Contudo, cada um a sua vez se percebe incapaz de sobrepujar o outro e de privatizar uma relação. Esta vai sempre ser atravessada por outras relações, sobre as quais não há possibilidade de ingerência.

Esse jeito meio escorregadio das lembranças que dão formas invisíveis às relações é potencializado pela luz de Paulo César Medeiros. Conferindo uma atmosfera azulada à cena, a luz vai esmaecendo as imagens, ajudando a conferir um status de memória bergsoniana para a cena, de imagem que se conserva em si, em seu lugar, e vive enquanto esse espaço durar ou puder ser reconstituído. A luz encerra a cena como um território brumoso. É, também, o que acontece com as relações seminais. Nessa esfera os atores estabelecem a tensão básica da encenação, e o espectador precisa lidar com uma situação ao mesmo tempo não visível e não oculta das relações dos personagens.

O segundo plano de relações é formulado entre cada personagem e o reconhecimento do seu próprio sujeito, por isso, é um plano mais apreensível nos momentos dos solilóquios. Uma vez que a etapa anterior fica estabelecida e uma potência de variação passa a ser associada como alicerce para se estabelecer qualquer tipo de relação nesta montagem, os personagens passam a correr atrás da sua própria definição. Correlativo ao que acontece nas relações extrínsecas, não há possibilidade de se construir uma definição intrínseca que se remeta a uma forma única. Enquanto cada figura dramática divaga longamente pelas decisões que a conduziu até onde se encontra agora, eles buscam pistas de quem sejam e o que realmente desejam.

A forma como Pedro Freire constrói sua versão da trama, porém, não parece endereçar o olhar da plateia para uma afirmação definitiva de como é possível encontrar certezas, como se isso fosse razoável. Antes disso, essa montagem aponta para o desatino do indivíduo que, perdendo qualquer possibilidade crítica, se deixa definir por rótulos e papeis sociais. Este é o caso das pessoas dessa peça, que ficam presas em situações emocionais sem solução, mas que mesmo assim procuram oferecer resistência, ao invés de ficarem sentadas diante da falta de sentido com a qual vão se deparando. Quando os três se dão conta de que não são os sujeitos de suas vidas, ou da “impossibilidade de reduzir o mundo a um princípio racional e razoável”, como diz Camus, é que emerge a idéia de absurdo com a qual essa peça lida. O drama que caracteriza esse nível de relação intrínseca é o de “percorrer até o fim esse beco sem saída, que o homem da platéia leva uma vida para percorrer” (CAMUS 2004:59). Não obstante, reconhecendo a falta de sentido, cada personagem continua executando seu papel, como Sísifo em sua tarefa diária de rolar a pedra montanha acima.

É no silêncio diante do absurdo que se desenrola o terceiro nível de relações. Estas, estabelecidas na encenação como responsáveis por uma função estruturante, espacializante. O silêncio não está por trás da cena, ou mesmo dos personagens, está rigorosamente à cerca da cena, mas sem causar qualquer sensação de profundidade. Se os diálogos recebem a função de pano de fundo é, sobretudo, por sua relação estrita com a superficialidade dos solilóquios. Essas falas produzem uma força centrífuga nas situações, enquanto o silêncio é usado como força centrípeta. A inserção de pausas silenciosas entre o ritmo cadenciado das falas torna o momento um espaço ótico puro. Forçando a atenção aos contornos dissipados que foram delineados para os personagens e suas histórias esparsas, é o silêncio que torna visíveis os outros níveis de relação.

Se o silêncio não tem nada a narrar, mesmo assim algo se passa, definindo o funcionamento das relações. O que conta é essa proximidade absoluta entre o silêncio e o texto a ser dito. É esse sistema, essa correlação de dois âmbitos, um ao lado do outro, que fecha o espaço, que constitui um espaço absolutamente definido dessa leitura dada ao texto da peça. Com essa relação não-discursiva percebe-se como é difícil ater-se ao que é efetivamente dito. Se o que é enunciado não é imediatamente percebido é por estar sempre encoberto de diálogos e solilóquios. Por essa terceira relação é que se faz possível o advento da reflexão e seus frutos. Quando é preciso fazer um corte limite, a fim de se contemplar uma estrutura da obra, o silêncio aparece.

Referência bibliográfica:

CAMUS, A. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Ed Record, 2004.

Humberto Giancristofaro é escritor. Formado em Filosofia pela UFRJ e Université Paris VIII, atualmente mestrando em Filosofia na UFRJ, perquisador das teorias francesas de Estética contemporânea.

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