Fusão temporal em espetáculo expositivo

Crítica da peça Sua incelença, Ricardo III, do grupo Clowns de Shakespeare

30 de junho de 2011 Críticas
Foto: Pablo Pinheiro.

Gabriel Villela propõe articulações (pelo menos, aparentemente) ousadas em Sua incelença, Ricardo III. O próprio título sugere uma apropriação da peça de William Shakespeare atravessada por referências à cultura nordestina e instâncias temporais diversas. De certo modo, o diretor inscreve esse espetáculo – resultado de sua parceria com o grupo Clowns de Shakespeare, de Natal – na vertente de versões contemporâneas de obras do autor inglês, como, guardadas as devidas distâncias e proporções, o filme Romeo + Juliet, de Baz Luhrmann. O entrelaçamento entre passado e presente também faz evocar outra produção cinematográfica (agora, desvinculada de Shakespeare): Maria Antonieta, de Sofia Coppola.

Mas Sua incelença, Ricardo III, montagem que integrou a última edição do Festival de Londrina e com presença confirmada na programação do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, não é descortinado diante do público como uma encenação enigmática. Ao contrário. Mostrada ao ar livre, a montagem assume um tom explicativo diante da plateia, como que evidenciando a intenção de ser acessível a uma massa heterogênea de espectadores. O contexto histórico (a Guerra das Duas Rosas, entre as dinastias dos York e dos Lancaster) é rapidamente apresentado nesse espetáculo que parece realizado a partir da preocupação em garantir a compreensão do público. Esse caráter expositivo está ligado à apreciação frontal proposta por Gabriel Villela, apesar da disposição em semi-arena com três arquibancadas envolvendo a cena.

O desejo de realizar uma encenação popular levou o diretor a valorizar o humor, em especial através de um registro interpretativo do elenco voltado para a comunicação direta com a plateia, garantida por meio de falas proferidas com inconfundível acento cômico (notadamente, no caso de Lady Anne). Se William Shakespeare ficou conhecido como o dramaturgo que se atreveu a trair as regras clássicas (ao misturar procedimentos da tragédia e da comédia e rejeitar as unidades de tempo, lugar e ação), nessa montagem de Sua incelença, Ricardo III Gabriel Villela não hesitou em fazer com que o humor se impusesse sobre o drama histórico referente à sangrenta escalada ao poder comandada por Ricardo III.

Eventuais discordâncias à parte, o resultado evidencia as qualidades de encenador de Gabriel Villela, que, como seria de se esperar, une as referências nordestinas às influências mineiras comumente encontradas em seus trabalhos. Entretanto, o diretor volta a surpreender em sua assinatura barroca através de uma disposição espacial que evoca, longinquamente, suas soluções mais criativas, como a ação estruturada sobre uma Veraneio na montagem de Romeu e Julieta, também de Shakespeare, com o Grupo Galpão. O espaço de apresentação é delimitado por um cercado e algumas rosas. Dentro dele os principais elementos de cena são três carroças que remetem à atmosfera de um teatro ambulante – tudo emoldurado por uma iluminação que oscila entre a sutileza do artesanal (pequenas luzes, lampiões) e elementos mais evidentes que, porém, não chegam a adquirir caráter impositivo (refletores). Os figurinos, exuberantes, exibem sobreposições de estampas e cores fortes (mas sem abrir mão de certo predomínio do preto). A trilha sonora, na já referida conjugação entre passado e presente, entrelaça o cancioneiro popular brasileiro com o rock de bandas inglesas das décadas de 70 e 80, como Queen e Supertramp.

Daniel Schenker é doutorando em Artes Cênicas pela UniRio e crítico de teatro do Jornal do Commercio e da revista Isto É/Gente.

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