Um Hamlet em sintonia com o teatro de hoje
Hamlet, a mais célebre tragédia de William Shakespeare, é um veículo privilegiado para o diretor Aderbal Freire-Filho lançar questões bastante pertinentes em relação ao teatro contemporâneo. Esta perspectiva desponta, sobretudo, na passagem em que o personagem-título faz uma série de indicações aos atores de sua peça.
Hamlet pede aos atores “que não declamem, mas busquem conciliar um registro sóbrio com vitalidade, que ajustem a palavra à ação e vice-versa para, assim, alcançarem a medida do natural porque o teatro é o espelho da natureza”. Não por acaso, o ator Wagner Moura fala este texto olhando para os espectadores presentes ao Teatro Faap.
Além de valorizar pontos bastante precisos no que diz respeito ao trabalho do ator, como a complexidade referente ao ajuste entre palavra e ação, Hamlet/Wagner Moura aborda, em certa medida, o poder desestabilizador do teatro em relação ao público. Basta lembrar que na peça de Shakespeare o teatro é ressaltado como uma manifestação artística capaz de empreender um desmascaramento – no caso, da trama arquitetada pelo Rei Claudio para tomar o poder.
Coerente com esta perspectiva, Aderbal Freire-Filho investiu num teatro cujas engrenagens estão a descoberto; um teatro que estabelece e assume códigos com a platéia, a exemplo do momento em que o ator Gillray Coutinho sobe e desce três degraus para assinalar sua entrada em cena.
Na cenografia de Fernando Mello da Costa e Rostand Albuquerque, apenas a projeção de imagens numa tela registradas por uma câmera no instante da apresentação é elemento passível de indagação acerca de sua real necessidade. O que estaria de fato sendo valorizado por meio deste recurso? A própria presença do ator potencializada na tela? O instante imediato do acontecimento teatral? Os mecanismos de representação realçados pela câmera em oposição à construção de uma naturalidade? Seja como for, há pelo menos uma passagem que ganha com o registro em vídeo: a projeção das imagens de Claudio e Polônio numa cena entre Hamlet e Ofélia. Já os figurinos de Marcelo Pies também demonstram sintonia com a proposta da montagem, não só pela opção por trajes contemporâneos (em cores neutras) como por reforçarem a idéia de virar o estabelecido pelo avesso através da concepção dos casacos.
A busca pelo natural pregada por Hamlet é apenas aparentemente negada por Wagner Moura, que adota o registro histriônico para, na verdade, marcar a encenação arquitetada por Hamlet para trazer à tona toda a verdade sobre o assassinato do pai. É como se o ator sublinhasse de propósito as engrenagens da representação, ao invés de utilizá-las de maneira alienada. O Hamlet de Wagner Moura extravasa por meio de gestos largos e enfáticos, dispara falas revestidas de deboche, mas sem enveredar por um eventual jogo de efeitos e perder de vista a concretude e a contundência com que pronuncia as palavras, e esfrega e entrelaça as mãos de modo quase tão ofegante quanto o som de sua respiração. No restante do elenco, Gillray Coutinho procura imprimir acento cômico a partir da prolixidade de seu texto. Pode-se citar ainda a qualidade de atenção de Caio Junqueira, a autoridade cênica de Tonico Pereira ou a habilidade no manejo do humor de Claudio Mendes, mas os atores (além destes, Carla Ribas, Georgiana Góes, Fábio Lago, Marcelo Flores e Felipe Khoury) não chegam a imprimir uma identidade interpretativa.
Esta versão de Hamlet assinada por Aderbal Freire-Filho caminha na contramão da chamada peça de época. Parece haver uma saudável disposição em investigar de que maneira o texto de Shakespeare permanece lançando perguntas à contemporaneidade.