Cabaré Hamlet ou das várias dificuldades de escrever a verdade

Crítica do espetáculo Cabaré Hamlet de Mathias Langhoff

21 de janeiro de 2010 Críticas
Foto: V. Arbelet

De tudo o que vi em 2009 nada me pareceu mais uma “questão de crítica” do que a montagem de  Un Cabaret Hamlet, espetáculo de Mathias Langhoff assistido no Odéon, Paris, numa co-produção com o Théâtre Dijon Bourgogne-CDN.. Seu longo e tedioso nome completo é De casaco vermelho, a manhã atravessa a roseira que, à sua passagem, parece de sangue ou HAM. AND EX BY WILLIAM SHAKESPEARE UN CABARET HAMLET.

Examinemos o contexto. O ano marca os dez anos da queda do Muro de Berlim, efusivamente comemorado em todos os recantos do continente; e, embora o fato não seja explicitamente evocado nessa realização, é óbvio que qualquer pessoa medianamente informada relaciona os dois eventos. Ainda mais porque Langhoff, suíço de nascimento – a pátria da neutralidade -, emigrou nos anos 1970 e construiu sólida carreira no Berliner Ensemble, na época em que ainda ali reinava absoluto o cânon brechtiano. Depois das quedas do muro, da proteção estatal e das verbas, o encenador bateu asas, trabalhando em diversas casas européias e alternando seus modos expressivos, dedicando-se também à ópera.

A montagem é o que é: um cabaré. Ou seja, uma reestruturação do texto shakespeareano, traduzido para o alemão há trinta anos atrás por Langhoff e Heiner Muller, segundo um molde muito particular de recuperar o “senso original” do bardo, o que lhe deu licença, ao que parece, para introduzir desde citações de batidas canções norte-americanas até a presença de um cavalo em cena. A versão de Muller (Hamletmachine) pode ser considerada, em termos de comparação, mais provocativa, ao fustigar os fantasmas da Revolução. Seria aqui o quadrúpede uma citação de Incitatus, o corcel tão benevolamente tratado por Calígula? Pode ser. O que não falta em cena são referências intertextuais. Aliás, qualquer coisa pode ser qualquer coisa nesse espetáculo que perdeu a mão, o pé e demais partes do corpo.

E, dizendo isso, devo acrescentar que também eu que perdi a paciência e não assisti ao final do tour de force: no intervalo, após duas horas e quinze, abandonei o local – eu e metade da platéia, – convicto de que daquele mato não sairia coelho algum, nem mesmo após uma filigranada decupagem das quatrocentas páginas de O teatro pós-dramático

Limites

Diante dos fatos e situações explicitados, cabe-me perguntar sobre as limitações da crítica, motivação que me leva a aqui pensar em voz alta. Em primeiro lugar, como reagir diante de um espetáculo chato, sem empatia, destituído de apelos às sensações? Nada, ao que parece, evidencia com maior acuidade o problema cultural que essa ausência de ressonância interna, essa crise dialógica que se instala entre diferenças.

Minha primeira reação foi me acreditar um sapo de fora, que não estava entendendo nada do que estava ocorrendo. Tal deslize, todavia, dissipou-se ao olhar em volta e perceber a platéia igualmente desnorteada. Motivos, não faltavam: o texto era falado metade em francês e metade em inglês (grife-se que franceses falam inglês com acentuação gaulesa, o que torna impossível a compreensão de um simples what are you speaking about?); Horatio, o confidente do protagonista, era desempenhado por uma mulher, tornada Horatia, sem justificativas maiores; assim como Cláudio, no corpo do ator negro Anatole Koama, cuja prosódia, à beira de um grillot africano, tornava-a palatável apenas a ouvidos treinados além mar. François Chattot, um sexagenário intérprete para o protagonista, destoava francamente em relação a Gertrudes, a linda atriz Emmanuelle Wion, de menos de um terço de sua idade.

Todos esses estranhamentos deteriam alguma ambição pós-brechtiana, ou pós qualquer outra coisa, inacessível em sua clausura? Pode ser.  No reino dos signos tudo é possível, notadamente quando faltam as balizas de contexto circunscrevendo as referências.

Questão crítica

O que deve fazer o crítico quando não aprecia uma montagem (ou, como no caso, sai antes do espetáculo terminar)? É legítimo resenhá-lo?

Durante muitos anos considerei que não, que, mesmo não apreciando o assistido, era minha obrigação ali permanecer até o final, quando nada para verificar se algo se alteraria no desfecho. Para tanto, tenho algumas explicações: o contexto artístico era outro, naquela ocasião (ainda se acreditava que a arte – ou o teatro – poderia alterar alguma coisa); os artistas eram tomados como pessoas que propunham algo que, no mínimo, deveria ser avaliado; os espetáculos eram criados a partir de uma lógica que, mesmo no último minuto, poderia reverter tudo o que acontecera antes, redirecionando a leitura para outros significados. Esses, e alguns outros pressupostos, compunham certo espectro de relações entre o crítico e o criticado, tornando essa relação produtiva.

Hoje em dia, tudo isso ruiu. A obra tornou-se um produto, uma sobra, tão digerível e fácil quanto qualquer outra mercadoria, destituída de uma lógica autônoma em sua estrutura. Discursos e atitudes menores não faltam para proclamar o contrário, insuficientes, todavia, para reverterem essa dura e fatal realidade  – uma pena, é claro. Na sociedade do espetáculo, já não existem mais rebeldes, nem causas. O que torna um tanto quanto desajustada a existência de uma crítica que, por decurso de prazo ou validade vencida, insista ainda em se balizar pelas velhas atitudes antes referidas.

Não sei como termina Un Cabaret Hamlet; e, para ser franco, não fiquei muito preocupado com isso, optando por passear na praça defronte em busca de outros espetáculos, mais vivos e interessantes. Lembrei-me, caminhando para o metrô, de um comentário de Barthes, ao largar a crítica teatral: o mundo da escritura era tão mais vasto e tão mais atraente que era uma perda de tempo continuar sentado na antiga platéia.

No momento de escrever esse texto ocorreu-me outra possibilidade para meu desagrado. O espetáculo é velho; debatendo-se consigo mesmo em busca de explicações para a crise do continente (a econômica, a migratória, a imigratória, a perda do eurocentrismo, o avanço islâmico e fundamentalista, mas também o Holocausto e a Primavera de Praga etc etc). A montagem parece referir-se a um país convulsionado que, ao olhar para o passado, hesita quanto ao presente e o caminho futuro, prenhe de compromissos com a divisão, como se a queda do muro tivesse sido também a de sua personalidade. O que Langhoff não entendeu ainda – e essa é a questão que efetivamente interessa – é que não há mais duas Alemanhas, a RDA e a RFA, mas tão somente a Germânia, locus improvável de uma nação cindida pelos interesses e nacionalidades, unida apenas pela língua, instrumento insuficiente para colar rachaduras bem mais fundas que as políticas. Heiner Muller já havia desmontado essa aporia em diversos de seus textos (Germânia Morte em Berlim, A Estrada de Wolokolamsk), evidenciando que as alternativas poderiam ser outras, menos as existentes RDA ou RFA.

Mas o incômodo Muller está cada dia mais esquecido nesse novo contexto alemão, no qual realizar exercícios públicos de auto-flagelação soa mais atraente e up to date.

Peça: Un Cabaret Hamlet
Encenação: Mathias Langhoff
Elenco: Théâtre Dijon Bourgogne-CDN
Local: Odéon Théâtre de l`Europe – Paris
Temporada: 5 de novembro a 12 de dezembro 2009
Co-Produção: Théâtre Dijon Bourgogne e Odéon Théâtre de l`Europe

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