Shakespeare para jovens de coração

Crítica da peça R&J de Shakespeare – Juventude Interrompida

19 de maio de 2011 Críticas
Rodrigo Pandolfo e João Gabriel Vasconcellos. Foto: Luiz Paulo Nenen.

R&J de Shakespeare – Juventude Interrompida texto do americano Joe Calarco (que estreou em Londres ainda nos anos 70) teve esse ano uma versão carioca dirigida por João Fonseca, que começou com uma temporada na arena do Espaço SESC, passou pelo Teatro Glaucio Gill e em seguida foi para o tradicional palco italiano do Teatro Carlos Gomes. O texto mostra quatro alunos de um colégio rigoroso em Londres onde, entre os estudos, a rigidez dos professores, o dever das lições e orações, pairam quatro jovens que decidem encenar Romeu e Julieta no momento em que lhes é permitida a descontração do recreio escolar.

A peça começa com os atores entrando em cena como os alunos da escola. Vestindo uniformes escolares sóbrios e pesados, sentam-se em suas carteiras. A cena inicial é marcada por falas corais que representam o universo da sala de aula em que se encontram: repetem regras da física, da matemática; recitam em latim; declamam as ordens e obrigações escolares que lhes são dados. A atmosfera de uma escola castradora e seus jovens oprimidos (que pode remeter ao filme Sociedade dos poetas mortos) se instaura, seja pela expressão dos atores, seja pela música que dá um tom punitivo ao ambiente em que vivem aqueles alunos. Mas esse quadro sério e opressivo logo se desfaz quando toca a sirene da escola: os atores se transformam nos quatro alunos/amigos que decidem brincar com a poesia shakespeariana, encenando na sala vazia a famosa história do amor proibido escrita pelo bardo inglês no século XVI.

Esse pretexto, que a princípio parece ser o vetor da peça, vai se desfazendo aos poucos e o que resta como fio condutor ao espetáculo é o empenho dos quatro atores, Pablo Sanábio, Felipe Lima, João Gabriel Vasconcellos e Rodrigo Pandolfo, em contar a trágica historia de Willian Shakespeare dentro das possibilidades aparentemente precárias, que serão reveladoras de uma teatralidade despojada: quatro atores revezando-se em dez personagens e tendo como dispositivos cênicos os recursos que a sala de aula cenografada por Nello Marrese oferece, como o giz, os vários quadros-negros pendurados no cenário, os cadernos, lápis, réguas e etc. Da mesma forma, o figurino de Rui Cortez, que se compõe de ternos avermelhados com forro amarelo, soturnos como a escola dimensionada nas carteiras de madeira bruta e o próprio sentido de uniforme, se transforma em saia, véu ou batina, partindo daí a ideia de que a teatralidade está no uso que vai ser dado pelos atores ao objeto ali disposto no palco, tanto para a cenografia quanto para o figurino.

Quanto à musica, no espetáculo de João Fonseca o que se dá é o uso de canções que fazem referências a outras montagens de Romeu e Julieta, como Somewhere de West Side Story (musical de 1961), A time for us do clássico de Franco Zefirelli (1968) ou Flor, minha flor da antológica montagem do Grupo Galpão (1992). Assim como canções pop, numa referência ao universo jovem daqueles estudantes, como No speak americano de Yolanda Be Cool e Dcup ou a balada da banda U2, ambas recentes. Assim verificamos que também quanto ao uso da música, bem como da cenografia e figurino acima citados, esses recursos têm o intuito de contar a história através do estado de cumplicidade e diversão engendrada pela relação dos quatro amigos de escola, aproximando Shakespeare dos espectadores.

Interessante notar que enquanto a peça mostra a peça dentro da peça, os quatro encarando Shakespeare, o que acontece é uma aproximação entre o público e a história, revelando a comunicabilidade contida numa obra de cinco séculos atrás e travando um diálogo potente com os jovens, principais interlocutores nesse trabalho, a meu ver. Dá-se aí uma potência da atuação de cunho festivo e despretensioso no trabalho conjunto dos atores e direção, visto a forma como constroem aqueles personagens no presente da ação sem esconder as idiossincrasias juvenis e masculinas de cada um.

João Gabriel Vasconcellos, Felipe Lima e Pablo Sanábio. Foto: Luiz Paulo Nenen.

A Julieta de Rodrigo Pandolfo é uma criação híbrida: ele empresta de certa forma sensações e desejos do personagem aluno à Julieta, operando um registro sensível e delicado – até na voz percebemos um tom mais agudo, sem cair num tom afeminado e banal. Vemos o masculino e o feminino em um jogo de formas. Já quando ele é o aluno, percebemos um registro mais representado, que beira o histrionismo. Pablo Sanábio, enquanto aluno e na rotatividade dos personagens da tragédia (sobretudo como a Ama e o Frei), desenha os diferentes estados com precisão, tanto no teor cômico como no trágico, ou mesmo materializando o personagem aluno como um ser juvenil e delicado, com certo tom feminino – mas sem cair no perigo de tipificá-lo como homossexual, o que seria uma banalização. Talvez essa escolha, que não foi empregada, trouxesse um resultado cômico para a plateia mais jovem, que geralmente dialoga com esses tipos mais ligeiros, banais e de imediata identificação. Mas a sutileza desse estado fica mais como um subtexto que como uma tipificação simplificadora, conferindo maior concretude ao personagem.

A peça dá pouco enfoque à relação dos personagens alunos no seu ambiente escolar. A princípio, parece que a peça dentro da peça seria um pretexto para as discussões intrínsecas à juventude, como a sexualidade, os arroubos da paixão ou a rigidez familiar, a intolerância, num debate sobre questões caras às suas existências. Mas assim que a peça dentro da peça é alavancada à cena, parece que o foco se fixa mais na execução, pelos atores, da peça de Shakespeare e em como resolver cenicamente esse desafio. É possível diagnosticar esse fato observando o desfecho do espetáculo, que termina com o final da própria tragédia. Há somente o soar da sirene escolar que funciona como signo teatral para o corte ser estabelecido entre a Verona dos amantes suicidas e os alunos de uma escola conservadora. Também na forma em que se dá a atuação.

Como já foi acima destacado, há um registro festivo e despretensioso na peça dentro da peça, um tom de brincadeira entre amigos. Na dimensão dos personagens alunos vê-se um caráter mais representado no que tange ao registro de atuação. R&J de Shakespeare se inscreve na temporada teatral carioca como um espetáculo com um forte apelo ao público jovem. Não me parece que há esse intuito a priori, mas esse diálogo profícuo que se estabelece entre as sensações emanadas da cena e a recepção do espectador mais jovem é decorrência da forma como é encaminhado o jogo da encenação da peça do amor trágico, impetuoso, arrebatador do jovem casal de Verona. No final, tem-se a sensação de que, seja como for, essa história, por mais montada e remontada que tenho sido ao longo dos séculos, ainda dá caldo para a experiência cênica, além do profundo poder de comunicação que Willian Shakespeare inscreve na nossa história.

Dâmaris Grün é atriz e graduanda em Teoria do Teatro pela UniRio.

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