Engrenagens expostas diante do espectador

Crítica da peça Cine-Teatro Limite

10 de agosto de 2008 Críticas
foto: divulgação.

A concepção cenográfica de Cine-Teatro Limite, assinada por Rui Cortez, talvez traga à tona uma das principais características desse novo trabalho de Pedro Brício: a opção em deixar expostos mecanismos de construção cênica. Composto por uma espécie de painel de fundo (de tom verde-acinzentado e de textura gasta) que escorre pelo chão delimitando um espaço de representação, o cenário, porém, conta também com elementos localizados nas laterais do palco – fora, portanto, desta geografia circunscrita – que são deixados propositadamente à vista do espectador. De um lado, uma cama e um armário; do outro, parte da coxia, como que “lembrando” o público de sua permanência no teatro.  

Não parece ter havido preocupação em ocultar “truques”. A platéia pode ver, por exemplo, um ator saindo do armário pela parte de trás. A decisão em fazer com que a empregada seja interpretada por um ator (Alexandre Pinheiro) diz respeito, em alguma medida, a um desejo de evitar que a platéia produza uma identificação plena (passiva, nesse sentido) com os personagens. Este traço geral da montagem não se alterna com a transformação do armário em elemento do camarim de Totorito, figura que mescla citações ao comediante Oscarito e a artistas da Praça Tiradentes, e de Francisco Alves.

Coerente com a proposta de não ocultar as diretrizes do espetáculo, Pedro Brício assume as referências presentes em Cine-Teatro Limite. Uma das mais importantes diz respeito à fase dos textos autobiográficos de Mauro Rasi, mesmo que Brício valorize mais as citações populares (principalmente, o universo das chanchadas da Atlântida) do que as eruditas. Há notada inspiração em A Cerimônia do Adeus – no que se refere ao descompasso entre o desgastado mundo familiar do jovem Sábato e sua imaginação sem fronteiras, a qual dá vazão quando está confinado em seu quarto – e A Estrela do Lar – no roteiro escrito por Sábato a partir da recriação passional dos integrantes de sua família, “operação” que leva o dramaturgo Pedro Brício a lidar com uma dupla camada ficcional.

Pode-se buscar ainda uma conexão mais longínqua com Viagem a Forli, tanto no que diz respeito ao contexto da Segunda Guerra Mundial quanto à discussão sobre o tempo, abordada, em Cine-Teatro Limite, de forma discreta. “Como escrever uma história que não acabou?”, pergunta Sábato. Pedro Brício traz à tona a questão do comprometimento do artista com a sua obra, incluindo a necessidade (?) de um certo distanciamento para criar. Para Sábato, a ficção surge como um canal para externar o seu sofrimento diante dos conflitos familiares – em especial, na relação com o pai – e como uma via de escape para um mundo bem mais interessante do que a sua rotina. Não por acaso, pergunta: “Você acha que a ficção pode salvar as pessoas?”

Diretamente afetado pelo contexto doméstico, ocupando um lugar desfavorável dentro da trama familiar, Sábato coloca uma lente de aumento sobre as figuras de sua família, deformando algumas e projetando suas aspirações sobre outras. Para as seqüências da ficção de Sábato, Rui Cortez contrasta a envelhecida tonalidade verde-acinzentada com um vermelho vibrante. Mas em Cine-Teatro Limite as cenas do cotidiano superam as da imaginação. Sustentando com segurança as já citadas escolhas que norteiam a montagem, Pedro Brício e Sergio Módena, que dividem a direção, alcançam melhor resultado nas passagens de caos em família do que nas referentes ao mundo interno de Sábato. A figura de Totorito, evocada por Sábato no refúgio de seu quarto, não chega a se tornar atraente.

A maior parte dos personagens do texto confronta o elenco com a limitação do tipo. Não por acaso, as interpretações mais instigantes são as dos atores encarregados de interpretar personagens mais avolumados pelo autor no decorrer da peça. Rodrigo Pandolfo empresta boa dose de empatia a um Sábato frágil e constantemente inquieto. Erica Migon, por sua vez, valoriza pequenos tempos de reação contida, relevantes na construção de uma mãe reprimida. Em todo caso, as qualidades superam eventuais restrições em Cine-Teatro Limite, um espetáculo que ganha com a iluminação de Tomás Ribas, que valoriza a luz quente sem perder de vista a atmosfera melancólica e o travo nostálgico, componentes centrais nesse afetuoso exemplar da promissora dramaturgia de Pedro Brício.

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