Sweet Tiger Lili à deriva

Crítica da peça O gato branco de Jô Bilac, com direção de João Fonseca

31 de julho de 2011 Críticas
Elenco de O gato branco. Foto: Divulgação.

Sete desconhecidos, Michel (Bruno Ferrari) um advogado sem escrúpulos, Arthur (Camilo Bevilacqua) um médico sofisticado, a soturna Letícia (Fernanda Nobre), o comandante Tadeu (Leandro Almeida), a dona de casa Ana Paula (Luciana Magalhães), o vigarista Erik (Pablo Falcão) e a professora Vic (Paloma Duarte) recebem um misterioso convite para um jantar a bordo da embarcação Sweet Tiger Lili. Atendendo ao estranho chamado e movidos, sobretudo, pela curiosidade, as personagens embarcam e descobrem que durante o encontro alguém entre eles deverá morrer. Diante desta situação, o grupo descobre que a razão de estarem todos ali é a realização de um julgamento extrajudicial que pretende descobrir qual dentre os presentes é o culpado por um crime acontecido três anos antes. Na tentativa de identificar um culpado, os presentes vão aos poucos revelando que todos ali são mais do que aparentam ser e as máscaras das personagens caem com o desenrolar dos fatos. Todos os passageiros a bordo do Sweet Tiger Lili podem ser culpados ou inocentes. É tudo uma questão de ponto de vista.

A trama acima parece mais uma daquelas histórias policiais oriundas do universo da escritora inglesa Agatha Christie. Na verdade, trata-se de O gato branco, peça escrita pelo jovem dramaturgo carioca Jô Bilac que, muito provavelmente, foi buscar em A ratoeira (The Mousetrap) e em O caso dos dez negrinhos (The Ten Little Niggers) a inspiração necessária para a criação de seu mais novo texto e que marca a incursão do autor pelo gênero policial. Gênero este que ainda é pouco explorado em nossos palcos. A diferença entre o texto de Jô e o de Agatha é que a figura tão marcante dos detetives (vide Inspetor Hercule Poirot e Miss Marple) foi deixada de lado. No caso de O gato branco, a investigação é conduzida pelos próprios envolvidos na trama, o que colabora para aumentar ainda mais o clima de suspense. É uma boa amostra de um texto com infinitas possibilidades de leituras cênicas que, na sua transposição para o palco, não obteve o mesmo êxito e o resultado final fica aquém de sua potencialidade dramatúrgica.

Em cartaz no Teatro das Artes e cumprindo sua segunda temporada até o dia 25 de agosto, a peça escrita por Jô Bilac e levada à cena pelas mãos do diretor João Fonseca nos leva a refletir teoricamente sobre alguns tópicos: o texto dramático, a sua encenação e a relação existente entre estes dois elementos. A este respeito, tomo emprestadas as palavras do professor e teórico Patrice Pavis:

“(…) Durante muito tempo – desde Aristóteles até o início da era da encenação como prática sistemática, no final do século passado, e à exceção dos espetáculos populares ou das peças de grande espetáculo – o teatro esteve encerrado numa concepção logocêntrica. Mesmo que esta atitude seja característica da dramaturgia clássica, do aristotelismo ou da tradição ocidental, ela acaba, seja como for, convertendo o texto no elemento primário, na estrutura profunda e no conteúdo essencial da arte dramática. A cena (o espetáculo, o opsis, como diz Aristóteles) só vem em seguida como expressão superficial e supérflua, ela só se dirige aos sentidos e à imaginação e desvia o público das belezas literárias da fábula e da reflexão sobre o conflito trágico. Uma assimilação teológica produz-se entre o texto, refúgio do sentido imutável da interpretação e da alma da peça, e a cena, local periférico da lantejoula, da sensualidade, do corpo em falta, da instabilidade, em suma, da teatralidade.” (PAVIS: 2005, 406)

Neste sentido, a encenação de O gato branco inverte essa lógica textocêntrica e se preocupa em potencializar as lantejoulas. É um bom exemplo de que nem sempre texto e cena caminham juntos. Na encenação proposta por João Fonseca, o que paira no ar é a dúvida: Seria esta peça uma comédia? Um thriller policial? Ou um texto de suspense com pitadas de humor? Não há como saber. O texto aparentemente tem uma “pegada” séria, pois Jô Bilac cria uma série de complicações na trama que é recorrente nos romances policiais. Jô investe nas viradas da ação, colocando todas as personagens como culpadas ou assassinas em potencial. Já a encenação opta por se situar com uma veia mais cômica. Ao longo da peça, percebe-se claramente a falta de um lócus – um local definido no qual se situar – de uma mise en abyme, ou seja, de um maior “encaixe” entre texto e encenação e essa dissonância texto/cena se torna indisfarçável. Embora o teatro contemporâneo seja balizado justamente pela indefinição e a mistura de gêneros e até preconize por uma não-localização em termos de gênero ou de uma fórmula específica, isso não acontece em O gato branco, justamente por ser esta uma peça bastante convencional em termos de texto e encenação. Não há aqui uma preocupação com uma pesquisa de linguagem ou experimentalismos. E isto não é nenhum demérito, no Teatro também há lugar para os convencionalismos e isso pode ser muito bom, mas em O gato branco fica muito evidente que o texto vai por um caminho enquanto a encenação vai por outro. Ao longo da peça esse distanciamento vai se aprofundando cada vez mais. E não há como esconder essa confusão, pois tudo se potencializa no palco.

Patrice Pavis diz ainda que a evolução histórica da relação entre texto e cena só faz ilustrar a dialética destes dois componentes da representação. Ou a cena procura dar e redizer o texto ou cava um fosso entre ela e ele, o critica ou o relativiza por uma visualização que não o redobra. No primeiro caso, aquele da redundância cênica, a encenação limita-se a procurar signos cênicos que ilustram ou dão a ilusão, ao espectador, de ilustrar o referente do texto. E isso acontece em O gato branco, é perceptível o abismo entre cena e texo. A encenação tenta se livrar do seu papel ancilar frente ao texto, mas acaba por criar uma distância de significação entre os dois componentes. E o que observamos é um desequilíbrio entre o visual e o textual.

Este desequilíbrio ao qual Pavis se refere pode ser percebido nesta peça e o que poderia funcionar muito bem cenicamente fica comprometido por uma série de deslizes. A começar pela clara opção por tratar o texto como uma comédia, recheando-o com artificialismos e a busca pelo riso fácil. Tal escolha acaba por interferir também em outros elementos – como os figurinos que destoam bastante e se afastam da concepção do texto. Por se tratar de uma peça explicitamente inspirada no universo de Agatha Christie, era de se esperar que a indumentária seguisse por uma linha mais sóbria, como uma tentativa de aproximar ainda mais os textos de Jô e Agatha. Nos livros de Christie, a autora inglesa geralmente se preocupava em criar personagens com um certo glamour e sofisticação, mesmo para as personagens decadentes, e Jô Bilac parece propor justamente isso para os passageiros do Sweet Tiger Lili.

Outro fator de dissonância que podemos apontar está no elenco pouco afinado com a proposta de trabalho do diretor. A sensação que se tem é de que os atores não estão à vontade no palco: agem como que engessados por marcas e repetições para criar efeitos cênicos e coreográficos que não se concretizam, apenas cumprem com aquilo que foi preestabelecido com a direção. Para equalizar texto e encenação, investir em uma relação de profunda intimidade entre elenco e direção seria condição sine qua non e bastante benéfica para o resultado final. Logicamente, seria leviano apontar a falta de comprometimento dos atores para com esta encenação, não é isso que estou afirmando. Mas o que fica aparente é que, para esta encenação especificamente, a melhor opção seria escalar um grupo, um coletivo com muitos anos de convivência, com muitos truques e artimanhas em seu repertório. O gato branco é o tipo de peça que deveria ser defendida por atores com maior intimidade, que se conheçam profundamente entre si e o diretor a eles. É o típico caso de uma peça que se encaixaria melhor na mão de um grupo e não na reunião ocasional de atores que se encontraram para um trabalho. O que quero dizer com isso é que há certos códigos que somente um grupo com uma trajetória e uma linguagem estabelecida na base do tempo de convivência seria capaz de alcançar. Assim, com uma maior entrega, o desenho da encenação conseguiria ser executado de forma mais precisa. Mesmo que a subversão do texto original fosse assumidamente deliberada.

Referência bibliográfica:

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 406-407.

Raphael Cassou é ator, iluminador estagiário de Jorginho de Carvalho e graduando do curso de Teoria do Teatro da UniRio. Atualmente estuda o Teatro do Grand Guignol e acompanha o trabalho da companhia paranaense Vigor Mortis.

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