Ato de variação

Crítica da peça Oxigênio, da Companhia Brasileira de Teatro, texto de Ivan Viripaev

19 de maio de 2011 Críticas
Rodrigo Bolzan. Foto: Elenize Dezgeniski.

Na tentativa de repensar o indivíduo e a sua relação com o mundo, a Companhia Brasileira de Teatro montou a peça Oxigênio, que está em cartaz no espaço SESC até o dia 29 de maio. Numa melhor definição, poderíamos dizer que há na peça uma preocupação com o essencial e o institucional. Ao perseguirem o que de fato pode auxiliar o indivíduo na descoberta da sua presença no mundo, há o perigo de se instituir os caminhos e engessá-los sem levar em consideração o particular, o dinâmico. Nessa condição paradoxal, as questões sobre o que determina nosso lugar no mundo são feitas pelo dramaturgo russo Ivan Viripaev. A forma encontrada pelo diretor Marcio Abreu para afastar sua montagem de um teatro de instituições foi mesclar uma série de linguagens: a música, no ritmo marcado e preciso da peça; a moda, no vai e vem dos atores pelo palco-passarela, desfilando suas idéias; o talkshow, com microfone aberto para discussões entre os atores; a ficção, com a história da Sacha e do Sacha; a biografia, através do dialogo franco entre Patrícia Kamis e Rodrigo Bolzan, atores da peça. Com isso, ele consegue devolver o poder de impacto de certas palavras, e consequentemente de certos atos, que foram perdidos devido a um processo de dessensibilização social. Assim, o conflito que é proposto em cena escapa dos conflitos previstos por um sistema institucional e não pode ser controlado por ele. Essa é a inquietação que a peça causa no espectador, a ele é oferecida uma brecha para se repensar.

De fato, o silogismo das sentenças proferidas pelos atores não é o mais importante, não é a forma de raciocínio que leva o significado das coisas a um lugar diferente das suas premissas. Então os atores precisam ir além do discurso. A homilia já não toca mais ninguém, a fala está esvaziada de força, as palavras impressas em versaletes nas manchetes gritantes aos nossos olhos são mudas, não movem mais nossos ânimos. É preciso ressignificar as palavras. As discussões apontadas na peça acerca dos problemas da maconha, da pedofilia ou dos conflitos étnicos no Oriente Médio se arrefecem, no dia a dia, banalizadas e enfraquecidas. Para que o espectador preste atenção, os atores precisam dedicar uma força para além do simples uso desses termos. Eles o fazem por meio de dois mecanismos: primeiro atualizando as palavras como conceitos e depois acrescentando a presença da variação contínua.

As palavras são como marcas na nossa consciência que, ao serem evocadas, nos trarão as lembranças por elas registradas. Esse registro é reforçado e/ou redirecionado pelo uso cotidiano da palavra que vai ampliando ou caducando seu significado, como o movimento das margens de um rio, ou de um traço. Na peça, para demonstrar isso, cada uma das dez composições apresentadas é encabeçada por uma sentença bíblica, antigos axiomas que, usados e abusados com o passar dos tempos, foram se entortando em velhos preceitos morais. Em tentativas de extrair novos usos, esses ditados vão sendo desmembrados e desalinhados por uma pesquisa verbal em busca do que é possível restar de sentido neles. Na maior parte das vezes, nada sobra. Diante dessa vacuidade de sentidos é preciso repensar como continuar se comunicando. Uma forma de retraçar o significado de uma palavra é através da sobreposição de uma marca maior do que ela em seu lugar. Este é o trabalho feito pelos atores de Oxigênio. Eles precisam gritar mais alto do que o signo falido. Para tanto, eles pegam em microfones, amplificam suas vozes e aproveitam a linguagem musical para fazer um show com guitarra, baixo e bateria bem barulhenta a fim de, como dizia Nietzsche, “martelar” um novo conceito no espaço da palavra.

A força que Marcio Abreu escolheu para efetuar esse trabalho foi a dos próprios atores. Eles não têm como usar as forças da razão para efetuar esta tarefa, vencendo pela argumentação, pois foi exatamente isso que desgastou as palavras. A estratégia, portanto, é usar a força dos afetos. Estes podem ser vistos como um tipo de comunicação que não depende da intelecção para estabelecer uma ponte entre a coisa e o sujeito. A vantagem de uma expressão afetiva é que ela é capaz de comunicar independentemente da compreensão cognitiva. Ela é física. Depende, no entanto, do empenho do ator em tempo real, de uma dedicação essencial. Eles não podem estar representando, devem estar apresentando seus afetos em relação às novas ideias, para que este afeto faça sentido para o espectador e, por empatia, permita que as marcas nele determinantes da sua compreensão possam ser realocadas e ressignificadas. Motivo esse que torna essencial haver um conteúdo biográfico em cena. Esse é um trabalho para os corpos vivos dos atores, plenos de significados, não por representações cansadas.

As novas possibilidades de uso dessas palavras, porém, não devem ficar restritas ao seu significado refrescado, afinal não parece ser essa a tônica desse espetáculo, a de restituir uma moral. Eles programam para as palavras um código aberto. Cada tema é trazido de diversas formas, sob vários pontos de vista, aumentando a data de validade da palavra problematizada. Os atores assumem posições contrárias e contraditórias, usando a cada hora uma possibilidade de interpretação do conceito alargado, assumindo antes de tudo a possibilidade de variação destes. Eles não podem deixar acontecer que os múltiplos pontos de vista se tornem fixos e logo hegemônicos, isso tornaria suas palavras apenas novas representações já falidas. Tudo que se deve evitar, a partir daí, é a representação dos conceitos, os atores devem manter a palavra sempre viva e presente, sem um representante para elas. O ato de variação deve ser constante para que as ideias não caiam em representações e se organizem em novas instituições fixas.

Portanto, o que parece ser um espetáculo da desconstrução, na verdade dá continuidade à fábula de construção do homem. Põe em questão as ideias, principalmente as pré-concebidas, e problematiza o lugar delas no mundo, apontando para a efemeridade de suas funções num sistema em que quem faz as regras são os próprios jogadores.

Informações sobre temporadas no site da Companhia Brasileira de Teatro: http://www.companhiabrasileira.art.br/

Leia também a crítica de Luciana Romagnolli para a mesma peça: http://www.questaodecritica.com.br/2011/01/uma-reavaliacao-das-posturas-individuais/

Humberto Giancristofaro é escritor. Formado em Filosofia pela UFRJ e Université Paris VIII, atualmente mestrando em Filosofia na UFRJ, perquisador das teorias francesas de Estética contemporânea.

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