Virá?

Crítica da peça Projeto brasil da companhia brasileira de teatro

24 de dezembro de 2015 Críticas

Vol. VIII n° 66 dezembro de 2015 :: Baixar edição completa em pdf

Resumo: O texto pretende analisar o espetáculo Projeto brasil, peça da companhia brasileira de teatro, de Curitiba, sob a perspectiva da relação com o espectador, a partir dos conceitos de interpelação e apreensão dos atos de fala de J. L. Austin, das ideias de Althusser e Judith Butler. O texto também aborda a obra como uma síntese e um ponto culminante do trabalho autoral do grupo.

Palavras-chave: interpelação, endereçamento, atos de fala, apreensão, dramaturgia contemporânea

Abstract: The text aims to analyze Projeto brasil, a play by companhia brasileira de teatro, a theatre group from Curitiba, Brazil, studying the relationship the plays proposes to the spectator regarding the concepts of interpellation and uptake in J. L. Austin’s speech acts as well as in the ideas of Althusser and Judith Butler. The article also approaches the work as a synthesis and a high point in the authorial trajectory of the group.

Keywords: interpellation, addressing, speech acts, uptake, contemporary dramaturgy

 

Se eu pergunto e vocês me respondem,

alguém me responde,

podemos começar o diálogo.

Vida, companhia brasileira de teatro

 

Em 2013, em Belo Horizonte, participando do Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, assisti a uma cena da companhia brasileira de teatro, com duração de quinze minutos, intitulada Taubira, criada para o festival como demonstração de processo de criação ou como uma experimentação a partir de uma pesquisa do grupo. A cada um dos três dias de festival, depois das apresentações dos grupos locais, assistíamos a uma cena de uma companhia convidada. O grupo Clowns de Shakespeare já tinha apresentado uma bela homenagem ao teatro, cheia de referências à trajetória do Grupo Galpão. A cena da brasileira ficou para o último dia e acabou acontecendo como uma celebração dos encontros do festival.

A cena tinha muitos méritos pela sua concepção, pela proposta em si, pelo texto falado – o discurso da Ministra da Justiça francesa Christiane Taubira pelos direitos de casais homossexuais – e pelas atuações de Nadja Naira e Rodrigo Bolzan. Mas foi a relação entre cena e público que fez do trabalho um acontecimento. A elaboração da encenação tinha um cuidado especial e uma inteligência singular na lida com o espectador. E os espectadores ali presentes, artistas ou pessoas muito próximas ao teatro, estavam em um grau bem avançado de disponibilidade. O clima do festival era de celebração e convívio. Todos os dias, entre as cenas, breves apresentações da espirituosa Macaxeira, personagem de Denize Lopes Leal, com comidinhas e cervejas circulando na plateia, música rolando alto e, em algum momento, todo mundo cantando junto uma canção popular que era, se não me engano, Evidências, sucesso de Chitãozinho e Xororó. Se um dia pude presenciar um trabalho de teatro acontecer para o seu público ideal e em seu momento ideal, foi esse. A impressão era de que aquela cena só poderia acontecer naquele contexto tão propício, acolhedor e singular.

Foto: Guto Muniz.
Foto: Guto Muniz.

Ali, em 2013, a brasileira já estava preparando Projeto brasil, que fez sua primeira temporada no Rio, no Espaço Sesc. A cena que abre o espetáculo é justamente a que assistimos em Belo Horizonte. Não se trata de uma escolha fácil. É uma maneira arriscada de iniciar uma peça porque ali pode se estabelecer uma distância, um desconforto entre a peça e o público, que pode impedir o fluxo do espetáculo. No entanto, o que vi e ouvi sobre a temporada do Rio me faz pensar que o público carioca não é tão conservador quanto às vezes parece – relatos de reações estapafúrdias à parte. Mas a cena abre a peça no sentido amplo do verbo abrir, porque interpela os seus espectadores. E quando eu digo “os seus espectadores”, quero dizer que nem todo espectador é espectador de qualquer peça – e isso não tem nenhuma relação com hierarquias. Mas é que não podemos continuar lidando com aquela ideia de democracia de botequim que toma o teatro como se todo e qualquer espectador tivesse que se relacionar com todo e qualquer espetáculo. As afinidades estéticas são realidades muito concretas.

Uma peça com a palavra brasil no título, mesmo com letra minúscula, é uma peça sobre o assunto Brasil. A peça tem um tema, ou alguns temas relacionados, tem algo em pauta sobre o país em que vivemos. Uma possibilidade de fazer uma leitura da peça é ir atrás dos seus sentidos, procurar o que uma ou outra coisa podem querer dizer. Em vez de procurar pelo que está dentro ou o que veio antes, a proposta deste texto é falar do que aparece na superfície (o que não tem nada a ver com superficialidade). Ou seja, interessa a este texto falar do ponto de vista das formas, dos meios escolhidos para colocar em jogo determinados assuntos, a partir de duas questões: a relação com o espectador e a linguagem da encenação em sintonia com outras montagens do mesmo grupo.

 

Interpelação

O que mais me interessa na forma das peças da brasileira é a relação que se estabelece com o espectador, uma especificidade do teatro que geralmente se toma como algo dado, uma coisa perfeitamente resolvida, que depende apenas da subjetividade do público, do pequeno “gostou ou não gostou”. Mas a relação de uma peça com o espectador não é uma coisa natural. É questão de arte, técnica e método. É um fazer que pressupõe um pensamento, uma proposta, um entendimento dos mecanismos e uma prática de procedimentos que produzem consequências sensíveis.

Em “O teatro, o ato e o fato estético”, artigo republicado em 2013 na Questão de Crítica, Edelcio Mostaço nos lembra que, junto com o conceito de gênio herdado do romantismo, herdamos também uma ideia de arte em que a técnica é mero artifício e que método é algo de que os artistas não precisam, porque acreditam que a expressão artística é algo “natural”. Não é. É trabalho. E o que vemos em Projeto brasil é a continuidade de um trabalho (que vem sendo elaborado desde outras peças do grupo) que se dedica à relação com o espectador.

Pensando sobre a peça, me veio à mente a sensação mencionada acima de que a peça interpela os seus espectadores, o que já acontecia de maneira bem eficaz em peças como Vida e Isso te interessa?. Vida abre com Rodrigo Ferrarini fazendo uma pergunta diretamente aos espectadores:

RODRIGO: Quem brilha? (Pausa) foneticamente a pergunta é uma modulação ascendente na emissão da frase. Perceberam? Quem brilha? Eu pergunto. Se eu pergunto e vocês me respondem, alguém me responde, podemos começar o diálogo (ABREU, 2015, s/p).

Depois, há alguns momentos na peça, em que perguntas são lançadas para atingir os espectadores. Os atores dizem mais de dez vezes: “Nós estamos aqui. Não estamos?”, ou perguntam: “Alguém escapou?”. Quando em determinado momento as luzes se apagam, Rodrigo e Giovana perguntam para o público “Você nos veem?”.

Sobre Isso te interessa?, escrevi em outra crítica algo a respeito do endereçamento aos espectadores, uma ideia similar:

O endereçamento direto, lúdico e bem-humorado ao público presente colabora para criar vínculo entre atores e espectadores, enfatiza o convívio, a ideia (óbvia, mas nem sempre evidente) de que os artistas estão querendo falar com os espectadores – o que o título em português já anuncia com clareza (SMALL, 2015).

O título em português é uma escolha da adaptação feita por Giovana Soar e Marcio Abreu. O original é Bon, Saint Cloud. O título em português é uma fala de um diálogo da peça, a pergunta “Isso te interessa?”. Relendo textos críticos sobre as peças da brasileira, encontrei um trecho da crítica de Luciana Romagnolli para a mesma peça:

Resta observar que, ao batizar o espetáculo com uma pergunta direta, a companhia brasileira explicita na camada mais evidente o desejo de cumplicidade na relação com o espectador, que vem constituindo sua teatrologia. Isso te interessa? não traduz Bon, Saint-Cloud, o título original da peça de Noëlle Renaude, vertida do francês por Marcio Abreu sob orientação de Giovana Soar e rebatizada com uma frase colhida do meio do texto. O que essa escolha revela, para além da identificação entre gerações distintas, é o interesse do grupo curitibano por um nível de interpelação direta do espectador evidenciadora do espaço (aqui) e tempo (agora) da encenação e do pacto de atenção implícito (ROMAGNOLLI, 2012).

As palavras de Luciana expressam bem o meu pensamento. Mas talvez seja interessante marcar a diferença entre endereçamento, cumplicidade e interpelação. Para fazer uma distinção e chegar ao ponto que me interessa, precisamos fazer uma passagem pela teoria dos atos de fala de J. L. Austin, e por algumas ideias de Louis Althusser e Judith Butler. Não sou leitora tão assídua de filósofos e linguistas, então minhas associações são bem simples. Penso que não é preciso ter estudado essas referências para entender a minha hipótese.

O que Austin propõe no seu conhecido How to do things with words, que em português foi publicado com o título Quando dizer é fazer, é que o ato de fala pressupõe duas partes, o ato e o efeito, e que o efeito depende da apreensão, do uptake. “Em geral, o efeito equivale a tornar compreensível o significado e a força da locução. Assim, a realização de um ato ilocucionário envolve assegurar a sua apreensão” (AUSTIN, s/d, p. 100). O endereçamento pode não ser eficaz, pode ser um ato de fala “infeliz” como diria Austin, porque pode não concretizar o ato ilocucionário, ou seja, pode não ter nenhum efeito.

A cumplicidade, por sua vez, pode ser uma relação serena, de rabo de olho, sem sobressaltos. Já a interpelação pressupõe um corte que liga uma pessoa a outra, que interrompe, que faz levantar a cabeça.

Para esclarecer o que quero dizer com interpelação, recorro ao exemplo de Althusser em Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, no capítulo “A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos”. Ele se refere à “mais banal” interpelação policial, que diz “Ei, você!”. Aquele que é interpelado sabe que é com ele e se volta porque reconheceu que a interpelação se dirigia efetivamente a ele e não a outro. Ele acrescenta: “O interpelado reconhece sempre que era a ele que interpelavam”. Em seu livro Excitable Speech, logo na introdução, Butler dedica uma seção à ideia do ato de fala como interpelação. A questão de Butler é a função interpelativa dos discursos de ódio, o que não tem relação com o que queremos expor, mas algumas de suas considerações fazem sentido quando tentamos encaixá-las na relação espetáculo-espectador no teatro.

A primeira questão colocada por Butler é que a interpelação é uma forma de constituir uma identidade a partir de um reconhecimento. Tendo em vista que não existimos sem linguagem, ela diz, em uma tradução livre: “O ato de reconhecimento é um ato de constituição: o endereçamento anima o sujeito à existência” (BUTLER, 1997, p. 25). Ela afirma que nessa situação de interpelação e reconhecimento não há um estado mental prévio do sujeito, é a voz que interpela que o constitui. Mas esse ato que constitui um sujeito que se reconhece na resposta demanda uma vulnerabilidade.

No teatro, quando percebemos que algo nos interpela, que “é com a gente”, sabemos que somos o público daquela peça, que somos os espectadores que ela chama. A peça nos constitui enquanto espectadores. Também sabemos quando não o somos. Não se trata simplesmente de uma questão de gosto, de estilo, nem de conhecimentos a priori. Não é uma simpatia prévia. É algo que se dá em um ato, que precisa de duas partes para acontecer. Há o reconhecimento de uma linguagem comum e de uma relação. Muitas vezes quando sentimos que não somos os espectadores de uma obra é porque sua linguagem não faz sentido para nós, sentimos que ela não se sustenta, que é postiça, vemos as falhas da sua construção.

Quando somos fisgados, percebemos que algo faz sentido, de maneira imediata, sem racionalizar, sem analisar. Não que isso implique uma atitude acrítica. Mas a apreensão da chamada, o que Austin chama de uptake, esse reconhecimento, atravessa as mediações intelectuais e nos surpreende na nossa vulnerabilidade. Recorro ao termo em inglês, uptake, porque sua sonoridade é mais eficaz que a da tradução em português. Quando escuto ou pronuncio uptake entendo um efeito curto e certeiro, enquanto a palavra apreensão me soa como algo que se dá em processo.

Em outra ocasião, ao escrever sobre Krum, comentei a ação do punctum na teoria que Roland Barthes desenvolve sobre a fotografia em A câmara clara. Não vou repeti-la aqui, mas percebo que falo praticamente da mesma coisa. Reitero que não estou tentando descrever o que significa entender uma peça, ou “gostar” de uma peça. Reconhecer-se espectador de um trabalho, essa relação de interpelação, provoca uma sensação de pertencimento. Na vida, diria que é um pertencimento a uma situação, a uma condição. No teatro, um pertencimento à linguagem.

 

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Projeto brasileira

E me parece que Projeto brasil também é “Projeto brasileira”, um quase autorretrato poético, um ponto de maioridade de uma trajetória. Se Vida foi uma espécie de “18 anos” do grupo, Projeto brasil é a chegada aos 21. Não que as outras peças sejam criações da “menoridade”, os espetáculos do grupo sempre foram maduros, vigorosos. Mas essas peças têm uma assinatura, uma identidade singular. O fato da dramaturgia original é determinante, mas não é evidente como pode parecer. A experimentação dramatúrgica mais autoral poderia ser mais tateante. A autoria não é garantia de originalidade. Soma-se a isso a dimensão de risco das escolhas dramatúrgicas feitas pelo grupo, que em Projeto brasil vão mais longe que em Vida. É uma dramaturgia ensaística, que arrisca começar pelo clímax, fazer longas citações, transitar entre poéticas radicalmente distintas, expor ideias sem hierarquia de sentidos. Além de levar a ideia de “narrativa” para outro lugar. Sem personagens fictícios, mas citando figuras da história atual do mundo em que vivemos, sem criar uma história, como no drama ou na tragédia, mas nos fazendo olhar para a história do nosso país, sem apresentar uma narrativa, mas comentando e elaborando em imagens as narrativas sobre a nossa identidade histórica cultural. O Brasil de Projeto brasil é todo um continente. Não me refiro às dimensões geográficas do país, mas ao espelhamento de sua natureza antropofágica, de tomar para si o que é de língua estrangeira sem crise e sem recalque. O olhar da brasileira sobre o Brasil é, como escreve Leminski em seu Descartes com lentes (performado por Nadja Naira em espetáculo com mesmo título), “um olhar com pensamento dentro”.

Justamente o contato constante e demorado, profundo e comprometido com dramaturgias de outras línguas, tratando-se de diversas línguas e de linguagens dramatúrgicas específicas, que transitam por poéticas que desestabilizam as narrativas que conduzem, pode ser o que proporcionou à brasileira a criação de duas dramaturgias tão sofisticadas como Vida e Projeto brasil. Uma das propostas da companhia é traduzir para o português e realizar no Brasil montagens de textos estrangeiros contemporâneos singulares de diferentes nacionalidades tais como Suíte 1 de Philippe Minyana, Apenas o fim do mundo de Jean-Luc Lagarce, Oxigênio de Ivan Viripaev, Isso te interessa? de Noëlle Renaude com adaptação de Marcio e Giovana, Esta criança de Joël Pommerat e Krum, de Hanoch Levin, para mencionar apenas as que eu vi. Essa proposta é determinante para a formação do grupo.

Com isso, não quero dizer que a companhia “aprendeu” com as outras peças estrangeiras, porque as coisas não são tão simples. Mas o trânsito entre elas pode ser considerado como uma espécie de formação. Para ser escritor é imperativo ser leitor. E ler teatro, no sentido denso de “ler”, é ler fazendo, ler traduzindo, ler falando – falando com o texto, para o texto. Nas montagens destas peças, a tradução e a encenação atuam sobre o texto.

Mas a concretização de uma dramaturgia própria não é o único nem o principal elemento do que vejo como um autorretrato da poética do grupo. Algumas questões de encenação e elaboração visual são determinantes para essa hipótese.

A opção pelo endereçamento claramente voltado ao público, se não me engano, acontece em todas as peças acima citadas. Em cada uma delas esse recurso tem um tom diferente das outras e acontece em variados graus de intensidade. Em alguns casos, a fala ao público tem função narrativa, em outros casos, é comentário, às vezes é depoimento, em algumas cenas é muito sutil, em outras é declarada. Mas em Projeto brasil o endereçamento é inequívoco e assume a forma do discurso, assim como da canção ao vivo. Nas outras peças, me parece que as falas endereçadas ao público fazem mais sentido na relação dessas falas com o todo do espetáculo e da narrativa. É claro que em Projeto brasil a relação entre os discursos é determinante, é a complexidade da convivência entre imagens e discursos que produz a reflexão – mas a reflexão sobre o todo talvez deva ficar para depois. Aqui as falas, endereçadas ao público, as cenas ou as partes do espetáculo têm sentido em si, podem ser escutadas como se fossem autônomas. Isso se deve também à natureza ensaística da dramaturgia. Assim como o leitor do ensaio, o espectador da peça precisa ter escuta para cada coisa, sem ficar tentando extrair conclusões ou coerências a cada novo dado. A dramaturgia ensaística demanda uma escuta do momento presente. Ela oferece acúmulos sem propor necessariamente uma relação causal no seu processo e, assim, não cria expectativas do que vai vir depois nem denuncia se está próxima do fim.

Vale considerar o preto na cenografia de Fernando Marés. Não se trata de uma prática comum nas peças do grupo, mas me pareceu tão determinante em Krum que algo se fixou ali. Na encenação da peça de Hanoch Levin, o espaço cênico parecia vazio em um primeiro momento, depois os elementos cenográficos – cadeiras pretas e piano preto – apareciam, mas eram manipulados pelos atores. Os ventiladores de teto, também pretos, praticamente ocultos, não revelavam seu movimento até determinado ponto da peça. Em Projeto brasil, não há a aura fantasmática do preto substancial da cenografia de Krum. É um preto aberto, declarado. Vemos o chão e as paredes. Não há uma dinâmica de separação entre figura e fundo na relação entre os atores e o cenário. O movimento autônomo do dispositivo cenográfico emancipa o fundo, torna-o independente, causador mais que ferramenta.

A iluminação de Nadja Naira é sempre firme. Dessa vez, a parceria com Beto Bruel é praticamente uma afirmação da filiação curitibana do grupo. O que vemos é uma luz mais aberta, como papel em branco, que não determina tanto a textura e a temperatura das cenas como acontece, por exemplo, em Isso te interessa? e Esta criança.

projeto brasil foto marcelo almeida
Foto: Marcelo Almeida.

Há também o trabalho sobre o nu. O nu não é uma constante no trabalho do grupo, mas assim como o preto de Krum se tornou uma questão, o nu, escolha decisiva em Isso te interessa? e Descartes com lentes reaparece em Projeto brasil. É muito comum que atores e atrizes façam cenas nus. Mas é raro ver um trabalho tão elaborado sobre o nu no teatro. Parece tão natural que é desbanalizador. Sabemos que nada é natural, que para parecer natural há muito trabalho. O trabalho sobre o nu nas peças da brasileira é como o de um desnudamento da própria nudez. Mesmo sem roupa, o corpo do ator em cena guarda sempre uma medida de vestimenta, uma espécie de máscara. Em Projeto brasil, os nus parecem mais sinceros. O trabalho de Marcia Rubin, responsável pela direção de movimento, também tem sido determinante na atuação do grupo.

A referência ao índio aparece em alguns momentos. A nudez do ator é muito diferente da nudez do índio. É interessante ver que há um trabalho sobre isso no espetáculo, uma tentativa de simplificar a atitude com a nudez. Como já disse em outro texto, Isso te interessa? apresentava a nudez como condição humana, em uma acepção espiritual, intelectual. Em Projeto brasil, fica a impressão de se tratar de uma nudez mais perto do chão, uma nudez anatômica, biológica, de espécie.

Há um contraste interessante entre as imagens corriqueiras de Brasil, simplórias e fetichizadas, dos cartões postais e propagandas turísticas, e as imagens que os artistas da brasileira produzem na reflexão sobre uma ideia de Brasil que não é o Brasil da paisagem nem dos tipos, mas o Brasil das pessoas e do pensamento. Vivemos uma relação amarga com dívidas históricas –exterminação de tribos inteiras, a ação nociva das igrejas e de seus projetos de poder, escravidão, colonização, exploração, ditadura, violência de estado, fascismo cada vez mais aparente, boicote à educação, desigualdades atrozes, o hedonismo acrítico e o culto à ignorância, racismo, homofobia e machismo gritantes, as grandes distâncias e o desconhecimento do outro, o outro brasileiro, que impedem qualquer conclusão sobre uma identidade de nação.

A música de Felipe Storino, parceria recente do grupo que parece ter encontrado um encaixe bastante produtivo, comenta o papel da música no nosso entendimento de identidade brasileira, especialmente nos momentos iniciais da peça. Ao entrarmos no teatro, Felipe está sentado na beira do palco, tocando uma música popular como se estivesse num churrasco na calçada ali na esquina, enquanto os atores recebem os espectadores e servem cachaça, outro símbolo de brasilidade. Os figurinos de Ticiana Passos são simples, mas me pareceram interessantes na cena em que os atores simulam uma celebração de Ano Novo. Os figurinos são como roupas clichê de Réveillon – só que pretas.

Foto: Ricardo Brajterman.
Foto: Ricardo Brajterman.

O efeito rotatório do cenário faz acontecer uma imagem complexa, institui uma duração na imagem criada, faz pensar em movimentos tectônicos que anunciam pontos de pico das grandes transformações, como o ano de 2015 no Brasil, na mesma medida em que revela as mudanças mais suaves da passagem do tempo, a circularidade como forma possível de representação de um tempo mítico, a engrenagem da projeção de um filme ou simplesmente uma máquina. Tudo isso contribui para a ideia de um desenvolvimento, de uma formação contínua, um olhar que revisa, repassa, repensa.

Uma citação de Antônio Negri no programa me chama a atenção:

Há um porvir. Existe um tempo aberto diante de nós, que depende de para onde caminhamos, que quer dizer encontrar o algoritmo de conjunção desta rede enorme de atos, de gestos e de linguagem que constituem a multidão. É a multidão que comanda a história.

O fato de que esse trecho está no programa da peça faz dele uma parte de discurso da peça. O anseio de porvir do brasileiro me parece um anseio de esperança – cada vez mais firme contra as ladainhas reacionárias de pessimismo apocalíptico, característico do bordão ridículo “É por isso que o Brasil não vai pra frente”. A peça não faz um discurso unívoco sobre o Brasil, textos e imagens não se pretendem conclusivos. Mas identifico pelo menos três momentos em que há um apelo – intelectual e emocional – a uma ideia solar de porvir: o discurso de Christiane Taubira traduzido para o português, o de Pepe Mujica pronunciado em castelhano, e a canção de Maria Bethania dublada em libras. Entre um Brasil que fomos e não fomos, que vemos e que somos, vislumbramos ali um Brasil-projeto, que, quem sabe, virá.

 

Referências bibliográficas:

ABREU, Marcio. Vida. In: Revista Ensaia, n. 1, dezembro 2015. Disponível em http://www.revistaensaia.com/#!vida/octut

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Editorial Presença, s/d.

AUSTIN, J.L.. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul, s/d.

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1984.

BUTLER, Judith. Excitable Speech: A Politics of the Performative. NY & London: Routledge, 1997.

MOSTAÇO, Edelcio. “O teatro, o ato e o fato estético” in Questão de crítica. Vol. VI n° 60 dezembro de 2013. Disponível em: http://www.questaodecritica.com.br/2013/12/teatro-o-ato-e-o-fato-estetico/

ROMAGNOLLI, Luciana. “A família sob a perspectiva do teatro” in: Questão de crítica, Vol. V, n. 42, março de 2012. Disponível em: http://www.questaodecritica.com.br/2012/03/a-familia-sob-a-perspectiva-do-teatro/

SMALL, Daniele Avila. “Exposição e partilha da condição humana”. Agosto de 2015. Disponível em: http://www.cenacontemporanea.com.br/exposicao-e-partilha-da-condicao-humana/.

 

Daniele Avila Small é doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO. Editora da revista eletrônica Questão de Crítica (www.questaodecritica.com.br), autora do livro O crítico ignorante – uma negociação teórica meio complicada (7Letras, 2015) e da peça Garras curvas e um canto sedutor (Cobogó, 2015).

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