A primeira vista e três dramaturgias – uma crônica-poética da morte e da vida

Crítica da peça A primeira vista, de Daniel MacIvor

23 de junho de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

A peça A primeira vista de Daniel MacIvor dirigida por Enrique Diaz conta, fragmentariamente, a história de duas mulheres (vividas por Drica Moraes e Mariana Lima) que se conhecem num lugar banal e por meio de um encontro aleatório. Vivem, a partir daí, uma história de amor. Ou seja, no meio da banalidade dos acontecimentos de suas vidas, erige-se um enorme afeto. Esse faz com que se permitam uma experiência homoafetiva, cheia de desencontros e de decepções – apesar de elas desconhecerem, aparentemente, a prática homossexual em suas vivências afetivo-sexuais anteriores.

Depois da primeira noite, a personagem interpretada por Mariana Lima foge antes de sua amiga acordar, e comenta, como narradora, acerca da dificuldade de se ver como bissexual, pois, segundo ela, a bissexualidade exige do indivíduo grande poder de organização, qualidade que ela não dispunha naquele momento.

Do mesmo modo, a personagem vivida por Drica se considera uma mulher sem essa experiência homoafetiva. Entretanto, nota-se nela maior predisposição ao relacionamento nascente entre as duas. Apesar de suas ações, assim como a da amiga, encaminharem-se ao escapismo, há alguns elementos que sugerem ser ela o “agente” mais efetivo à vinculação construída: a inclinação do seu corpo no momento do primeiro beijo, seu grito diante da inação da outra, seu comentário com os amigos sobre a relação, a desconfiança de Sasha de que ela (a personagem de Drica) teria sido a causadora do relacionamento. Evidentemente, a característica de agente deve ser apreciada apenas em comparação com a outra personagem e dentro do interior das circunstâncias de A primeira vista.

Na peça, não há agente do ponto de vista tradicional de um drama absoluto. E o que vem a ser o drama absoluto senão uma construção histórica referente à subjetividade do homem de determinado tempo? É possível que ele apenas tenha existido como abstração perspectiva de um classicismo dramático que buscava projetar em cena o nó dos acontecimentos do drama, aproximando esse às premissas aristotélicas próprias à leitura de certo contexto histórico. Pois o próprio Aristóteles pode/deve ser lido, atualmente, fora dessa lógica classicista.

É importante pressupor a tradição em que MacIvor constrói os seus jogos em A primeira vista. Essa seria aquela que segue a maneira da peça de conversação de Samuel Beckett, e elege Harold Pinter como o primeiro grande maneirista. Não que a obra de Beckett possibilite apenas esta leitura. Do mesmo modo, não se deve ser categórico na descoberta de uma origem elementar na dramaturgia de Maclvor, sem o reconhecimento da impureza das linhagens. Entretanto, o modo como em A primeira vista o dramaturgo impulsiona a ação, pela excessiva consciência conversacional, remete a certa leitura crítica recorrente à obra de Beckett.

Ao ser lida como peça de conversação, a obra de Samuel Beckett resolve a polêmica épico-dramática, mostrando como é possível pôr em diálogo a conversação banal do homem. Conversação em que o próprio falar e os seus limites transformam-se em conteúdo para ação. Assim sendo, o diálogo cômico e prosaico vira conteúdo épico para a produção dialógica de uma dramaturgia fundamentalmente lírica – que reflete por meio de seu verbo sua força poética. Com o ritmo do diálogo e com o rebaixamento da fala cotidiana, a poesia perde qualquer élan de declamação, assumindo uma enunciação modesta e nua, em que fala e palavra ficam no mesmo plano. Fala em oposição à declamação. Palavra como força verbal do paradigma, impondo-se dentro da sintaxe da frase.

Diante das descobertas formais do grande dramaturgo, e da fertilidade de seu trabalho, Harold Pinter e MacIvor nos parecem maneiristas. Ou seja, criadores de imagens (subjetivas e interiores) para preenchimento de uma descoberta formal a priori. Perceber tal tradição não se dá com o intuito de diminuí-los diante do grande artista irlandês e nem com o objetivo de afirmar que a dramaturgia contemporânea seja toda ela feita por maneiristas da descoberta planar metalinguística e metaconversacional de Samuel Beckett. Mas situar um filão em que tal leitura comum deste autor edificou tradições. Há outras leituras. Certamente, outras tradições.

Em suma, há dois modos de se compreender o termo maneirismo, cunhado por Giorgio Vasari. Por um lado, ele é formalista, pois repete uma forma já descoberta. Por outro, traz a possibilidade de representação da imagem pela variação tonal dentro daquela forma já dada. Tal terminologia se deve ao fato de o historiador italiano ter notado a crise formal do último período de vida de Michelangelo, quando o pintor começava a se repetir formalmente e pintava a sua maneira. Na verdade, tal terminologia foi utilizada também para situar uma crise no renascimento, já que os artistas não conseguiam resolver em termos formais a relação cognitiva do real, criada pela perspectiva – e pelas técnicas desdobradas a partir dessa. Nesta encruzilhada formal, sem descobrir uma nova forma, o maneirismo aprofunda-se no espaço perspectivo, criando um grande exercício de apreensão da imagem e não do real – explorando, consequentemente,o topos do espelho.

Sem preocupar-se com o real, mas utilizando-se das descobertas dos mestres anteriores, os pintores maneiristas põem em quadro o sentimento do artista. E uma vez que se vê em quadro o desejo e o pathos do pintor, aquele real pictórico passa a ser altamente questionável, tornando-se imagem derivada de uma imaginação e não realidade captada pelo olho. Em “Laura ou retrato de uma jovem noiva” de Giorgione, assistimos mais o desejo erótico do pintor em relação à modelo do que a certeza objetiva de um olho que captura o real. Nesta obra, pode-se aproximar o conceito de profundidade perspectiva ao sentimento de profundidade subjetiva, uma vez que o desejo do artista está naquele ponto de fuga, expondo a subjetividade do real, isto é, o quanto não há uma apreensão objetiva do fenômeno sem que antes seja processada pelo sujeito.

O maneirismo contemporâneo nos mostra variações sobre o paradoxo do real e suas metalinguagens. Isto porque o real está incrustado na linguagem. Assim sendo, só a partir de uma apreciação metalinguística, metabiológica, meta-histórica e metateórica ele pode ser testado. Nunca de um ponto de vista metafísico, pois assim ele se aproximaria à logicidade aristotélica – tão altamente criticada pela retoricidade contemporânea. Daí sua trágica condição de errância. Neste modelo epistemológico contemporâneo, a linguagem é entendida, sobretudo, como planar. Não está tampouco submetida a uma unidade espaço-temporal abstrata e nem organizada por um ponto de fuga. Ou seja, a perspectiva e o nó dramático são apenas uma das possibilidades da linguagem em sua tentativa errante de buscar atingir o real. Esse apenas pode ser captado como paradoxo planar do tempo presente. Vive-se no presente. Entretanto, capta-se tal temporalidade apenas pela justaposição do passado e do futuro. Gilles Deleuze falará de um devir próprio ao tempo presente que o arrasta para essas duas direções.

Em Esperando Godot de Samuel Beckett, observa-se o problema existencial da linguagem preso ao paradoxo do presente. No presente, o futuro da espera será negado. Mas o presente apenas se constrói mediante essa espera negativa. Já em A primeira vista, será no presente (da encenação) que o passado será apresentado como um emaranhado de planos (imagens) instáveis. Há aí o maneirismo planar da autorreferência contemporânea, que não é formalista visto que não está preocupado em realçar a forma, mas em apresentar o quanto o imaginário de pessoas comuns já se inscreve em relações afetivas aprisionadas à metalinguagem. Ou seja: o quanto a imensa autoconsciência acerca da metalinguagem aprisiona os sentimentos dos sujeitos, a ponto de uma experiência sexual e afetiva ter de ser pensada e relativizada exaustivamente por duas personagens, que, contraditoriamente, são, ao mesmo tempo, analíticas e alienadas. Certamente, tal alienação provenha de uma inflação especulativa.

No texto de Maclvor, desenrola-se a história de encontros e desencontros de duas mulheres. Tal desenvolvimento se dá por meio do recurso de expor em planos as duas narradoras-personagens que contam/vivem suas histórias (comuns) em comum. A narração surge, entretanto, do jogo de um diálogo que camufla o conteúdo épico. Não por desejar um ilusionismo rasteiro, mas por ter pudor de uma ingenuidade épica. É indispensável reforçar epicamente que o palco está nu? É imprescindível mostrar que isso é teatro? Não. A metalinguagem nasce de modo tonal, mostrando as gradações entre os planos. E não por meio de uma confissão gratuita. Elas não estão na tribuna e nem no tribunal. Mas vivem num mundo muito pequeno e ordinário. E o teatro perdeu sua grandeza apoteótica para os grandes shows midiáticos – caso queiramos estabelecer essa distinção.

Há até mesmo na peça uma cena em que as duas estão num show de rock. Daniel MacIvor traz ao palco a experiência de estar perdido no meio da multidão. O dramaturgo almeja expor, portanto, a força anônima e sem grandeza destas duas mulheres, que são espectadoras mais do que agentes. Nota-se nelas, consequentemente, a beleza cotidiana de seres que, ao perceberem o mundo em grande escala, entendem-se diminuídos diante da imensidão. De tanto observarem a altivez de bandas, de músicas e de amores, elas não se permitem vivenciar a grandeza do sentimento que surge dentro delas e nem conseguem se tornar a banda idealizada, sem antes reconhecerem o apequenamento de suas figuras, na recorrência de um “nada é suficiente”.

Dialogicamente, a narrativa das duas se fragmenta articulando as memórias, os ajuizamentos e as mentiras criadas. São, certamente, personagens-narradoras mortas, performatizando histórias afetivamente vivas. E não narradoras-personagens vivas, contadoras de histórias mortas – de um passado remoto sem vivência. Estão mortas porque morrem ao fim da narrativa, caso essa seja organizada com início, meio e fim pelo espectador. E igualmente porque a epicização foi transformada (‘mortificada’) em diálogo. De tal modo, em cena, as duas subjetividades instabilizam a realidade dos fatos, expondo a fragilidade do real. Mas o real não é explodido. Exibe sua fragilidade pelo desencaixe, pelo atravessamento da dúvida das identidades, dos posicionamentos sexuais, locais e afetivos. “L: A gente devia começar./M: De onde?/L: Do começo.” Logo, o começo não é negado. Brota, contudo, assumindo a insegurança subjetiva da memória. E o passado é imagem de um real instável, individual e perdido nestas interioridades que não acreditam nelas mesmas, pois “nada é suficiente” para resolver as demandas existenciais, tampouco a criação de uma banda e a erupção de um amor.

A falta de plenitude do amor se deve à dúvida lançada ao próprio sentimento. Ele é instável demais para dar segurança. O sentimento está num plano metalinguístico em que é desacreditado por ser linguagem. Ao ver a amada na cama de Sasha, o ciúme torna-se mais concreto que a certeza da relação. Há um instinto real e imenso que não consegue se equacionar à crise das identidades. Diante do colapso identitário, as duas vivem essa história de ambiguidades sentimentais. E a dificuldade da responsabilidade do afeto só está sendo posta em evidência porque o real e as identidades já foram compreendidos como imprecisos.

O mais fascinante no texto é a percepção de que a encruzilhada metalinguística atingiu a nossa cotidianidade afetiva. E este cruzamento não se presta apenas para expor questões grandiosas assim como a do criador e da criatura tão presente em In On It. A meu ver, a peça discutida torna-se potente por sua naturalidade formal e temática. Nesta simplicidade metateatral, observa-se a delicadeza e a sensibilidade do dramaturgo em construir planos dramáticos vinculados a um grande senso tonal.

A dramaturgia de MacIvor é o que estou nomeando como a primeira dramaturgia presente no espetáculo dirigido/criado por Enrique Diaz. Evidentemente, essa separação é apenas um esforço crítico de mostrar organizadamente em um plano isolado o que na peça está em movimento de atravessamento de planos.

Há, portanto, mais duas dramaturgias a serem percebidas. São criadas pelas atrizes: Mariana Lima e Drica Moraes. Elas se encontram num ponto nevrálgico do texto. Mas desenvolvem premissas textuais dramatúrgicas por meio de escolhas e das tradições em que cada uma das interpretes se insere. São criações de dramaturgia à medida que apresentam uma riqueza de interpretação a ponto de construírem um texto cênico de pausas, inflexões e de operações críticas em cima do “original” (traduzido) que é visto em cena.

Apenas para efeito de distinção, assim como foi feito na tentativa breve de situar uma tradição para o dramaturgo, deve-se chamar a operação de Mariana Lima como a do ator dramaturgo-poeta, e a de Drica Moraes a do ator dramaturgo-comediante. Contudo, deve-se ressaltar que há momentos em que as duas se põem no mesmo plano como tonalidades em relação de gradatividade – como tons diversos de uma mesma cor.

O ator dramaturgo-poeta é aquele que provoca uma fratura dentro do texto, uma vez que está ocupado com o paradigma das palavras, a posição dos pronomes e a experiência dêitica do discurso. Busca, principalmente, atingir o lugar de autoridade da criação artística, alcançar o ponto de produção dos sentidos do texto. Filho do aedo homérico, ele se relaciona intensamente com a experiência vocal do canto como emissão sonora de cada palavra. Mas está altamente ciente da crise da representação refletida em nossa contemporaneidade. Ele se encontra imerso naquela experiência paradoxal artaudiana de procurar a palavra como sopro, como origem sem significação.

Diante da crise da representação e pela desconfiança da originalidade da criação, o ator dramaturgo-poeta capta a dívida que a invenção artística tem com a linguagem. O fato de estar preso a ela torna-se o mote existencial da ética desse ator. Logo, há nele uma ação de desvelamento da forma. Busca, especialmente, perfurá-la, mostrando sua estranheza amorfa, sua crise.

A atriz Mariana Lima vem construindo trabalhos em que tal estranheza é exposta de modo vigoroso. No monólogo, A paixão segundo G.H., dirigida por Enrique Diaz, a atriz apresentava-se num primeiro momento do espetáculo por meio da identidade difusa de G.H., num híbrido clariceano, até ser atravessada como no texto de Clarice Lispector pela imagem da barata. No espetáculo, o corpo e a voz da atriz transtornavam-se pelo mote da imagem daquele animal, e revelava o quanto essa modificação de foco (escritora – G.H. – Barata – G.H) produzia uma grande erupção dêitica. No próprio texto e de modo vigoroso no espetáculo, salvo qualquer discussão acerca da transposição de meios (literatura-teatro), estava revelado o paradoxo da linguagem, sua sobreposição animal e humana.

A relação com Artaud se deve à percepção da linguagem humana nessa cisão histórico-biológica. O homem é um animal histórico. Ele é o nojo da barata. Mas é, além disso, a capacidade de superação do nojo e de identificação com o animal asqueroso. Não existe linguagem fora do corpo. Dele surge a capacidade de expressão, assim como o nojo.

Em A máquina de abraçar de José Sanchis Sinisterra, ao representar uma autista, Iris, Mariana Lima experimentava, de outro modo, com seu imaginário de intérprete, a cisão da linguagem em direção aos limites do corpo. Sua personagem usava a terceira pessoa para falar de si. No momento da enunciação da fala, a atriz alcançava o ponto crucial do texto em que o dramaturgo marcava a distância daquela personagem, Iris, que estava experimentando o mundo de um lugar diverso do padrão.

Nos dois exemplos, Mariana utilizava-se de seu arcabouço de intérprete para tocar num limite enunciativo: transmutar-se em animal e numa autista. Logo, o desafio de seu imaginário de atriz ligava-se a uma experiência limítrofe de sua própria enunciação como intérprete. E, como já foi dito, no caso do ator dramaturgo-poeta, a palavra é importante como significante em sua nudez e por isso o corpo deve participar ativamente desta pesquisa atorial. Não para o exibicionismo físico, e sim para que o intérprete sinta o ponto de resistência corpóreo da emissão da palavra. Não há composição do ponto de vista fisionômico, mas o enfrentamento de uma imagem concreta em relação ao corpo do ator.

Há nesse procedimento uma ética. Não lhe interessa compor uma caricatura. Antes experimentar corporalmente os limites de sua poética (produção) como atriz. Tal artifício está na fronteira com a performance no que essa ambiciona experimentar o aqui-agora físico e concreto da representação. Mas distancia-se do autoritarismo identitário que caiu os estudos acadêmicos sobre a performance – que já apaixonam os editais de cultura no Brasil. O sentido performativo solicitado pela atriz se desvia das identidades, pois se encontra no limite do significante-significado. Quer, sobretudo, alcançar a materialidade da produção sígnica entre a materialidade corporal e a criação poética. Pretende, portanto, mortificar o autor mostrando a centelha animal da linguagem.

Em uma matéria do Jornal O Globo, Mariana Lima fala acerca da dificuldade de atuar em A primeira vista de Daniel Maclvor.

Nunca tinha feito uma pessoa pessoa no teatro. Sempre fiz alguém no limite de alguma coisa. E foi muito árduo chegar até aqui. Você fica mais exposto. Mais perto da sua vida, ao mesmo tempo que não é a sua vida, é outra pessoa. (1)

Acostumada a perfurar a linguagem em questões limítrofes, a atriz nota que a entrada no texto de Maclvor tem de ser outra. Na verdade, a potência de seu trabalho deve ser suavizada a fim de não revelar o formalismo do texto do dramaturgo. Ao ser uma “pessoa pessoa”, Mariana Lima atinge a planaridade cotidiana das relações humanas expostas pelo autor – que mostra sua força nesse ponto em que revela a nossa falta de grandeza.

Entretanto, há momentos preciosos na peça em que a atriz Mariana Lima perfura a forma do texto de Maclvor pela acentuação da palavra. Sua emissão de “nada é suficiente” martela uma secura beckettiana dentro do texto do dramaturgo maneirista, pretendendo chegar naquele lugar cru da linguagem em que o dramaturgo não toca; não atinge porque a metalinguagem da peça, como já foi dito anteriormente, encontra-se no sentimento interior dessa “pessoa pessoa”- das duas personagens amigas e amantes.

A emissão da expressão “nada é suficiente” por Drica Moraes é uma simples fala. E não há acentuação do sentido de cada palavra. Displicentemente, a atriz em fluxo ilusionístico leva o texto da peça pelo compasso rítmico de suas mãos e de seus dedos. Já Mariana Lima marca seu tempo pela pulsação respiratória que faz os seus braços se erguerem num movimento mais lento do que o das mãos de Drica.

Há um momento belíssimo do texto. Nele, por meio de uma caixa de luz projetada no palco e pela marcação das intérpretes, a direção distingue bem o trabalho das duas atrizes.

M: (lendo o título da obra no chão)”Caixa de luz”.

L:” Caixa de luz.”

M: É.

L: E isso faz o quê?

M: Acho que ela simplesmente é.

L: Eu não entendo nada de arte. (2)

Foto: Divulgação.

Na hora em que se relacionam com a caixa de luz, as duas atrizes agem de modo distinto. Mariana Lima põe seu rosto nu de frente para a plateia, mostrando plena consciência da face iluminada pela projeção naquele tablado. Já Drica Moraes fala o seu texto perdida numa brincadeira de estar imersa na caixa de luz, como se estivesse de fato num outro lugar ficcional, distante daquele palco (quase nu) – composto por um cenário belíssimo de riscos grafados sobre uma superfície branca, construído por Marcos Chaves. O ‘ilusionismo’ praticado pela atriz, Drica Moraes, traz à baila o procedimento dramatúrgico desenvolvido por ela nesta encenação – do ator dramaturgo-comediante.

O ator dramaturgo-comediante possui grande consciência acerca da aparência do mundo. Toda existência humana foi entendida como rasa. Logo, o mundo é uma superfície aparente e imaterial, sem qualquer verticalidade do alto e do baixo, própria àquela antiga denominação que distinguia a tragédia como superior e a comédia como inferior. Tal imaterialidade não é apenas metafísica, mas faz-se análoga à imaterialidade da mercadoria própria ao mundo capitalista, e relaciona-se com o fato de a linguagem existir por ser uma convenção social. E como a sociedade está abarrotada de valores intangíveis – vide os termos recentes da nossa sociedade do espetáculo: capitalismo cognitivo, economia criativa, consumo autoral, etc. –, toca-se aqui no tema do fetiche do produto usufruído pelas massas – que é imaterial, visto que está separado de sua imagem.

Portanto, a sociedade é uma imagem de posições, de relações, repleta de valores abstratos, internos e subjetivos. Pensá-la objetivamente é pensar o quanto os sujeitos possuem o poder de reificar a si próprios nas coisas, tornando-se objetos até pelo cansaço de serem sujeitos. E as hierarquias sociais, quando enxergadas por uma visada panorâmica deste ator dramaturgo-comediante, tornam-se uma planta baixa, uma visão de ângulos matemáticos, riscos rápidos que exibem, principalmente, estereótipos de grupos.

Denis Diderot elucidou o paradoxo do comediante pelo fato de dois seres ocuparem o mesmo corpo. Nele, assiste-se a construção “ilusória” e naturalista do comediante de fundir sua persona de ator com a personagem interpretada. O termo cunhado por Diderot promove toda uma reverberação que vai alcançar o método do ator naturalista do tão seguido, e, por isso, criticado, encenador Konstantin Stanislavski. Tal metodologia transforma-se em manual de ator da Actors Studio através de uma leitura de Elia Kazan, tornando-se basilar para a formação do ator de cinema norte-americano (o produto de consumo de massa mais potente do século XX). Não nos interessa fazer uma leitura exegética de cada um dos métodos e nem estabelecer diferença entre esses contextos, e sim perceber o lugar-comum de uma tradição, reforçando o quanto tal genealogia fez parte, e ainda faz (apesar de estar em queda), de uma engrenagem da sociedade do espetáculo.

Em favor de um aqui-agora da representação, tal comediante foi excessivamente condenado. A maior acusação foi a de que havia nele a fé de uma interioridade cristã preservada. Por conta de tal interioridade, sempre entendida como burguesa, repetiu-se, sem nenhuma contextualização, a tese de Weber sobre a ética protestante do trabalho, lançando um veredicto negativo sobre o trabalho ficcional e técnico de tal intérprete. Acentuou-se demasiadamente essa percepção, esquecendo-se de que havia uma ética da aparência, em que várias máscaras se construíam por cultivar um pudor diante de uma verdade interior – a imaginação. E de que esse interior era, genuinamente, uma fonte inesgotável de máscaras, nunca se revelando por completo, existindo em relação multiforme de aparência, como diante de um espelho, para a sociedade. Tal pudor, se for desligado de antigas regras sociais e morais, e de uma hierarquia problemática à nossa moral vigente, pode ser interessante como contraponto à atual condição da sociedade do espetáculo, em que tudo se performatiza publicamente num aqui-agora acrítico, sem nenhum limite entre o público e o privado, vide o fenômeno dos reality shows.

Na ação de Drica Moraes de compor sua personagem em A primeira vista, observo um extremo pudor próprio a este comediante. Não o pudor oitocentista daquela nascente sociedade dos espetáculos que apreendia a aparência de uma vida citadina de passeios em teatros, museus, cafés e lendo folhetins. Mas o pudor de uma grande comediante com grande domínio técnico e plástico de construir sua personagem utilizando-se dos seus truques de humor, sua inteligência cênica, e, especialmente, com um rico discernimento do que é a naturalidade da fala humana. Sua personagem fala como se estivesse alheia ao sentido daquilo que está articulando, mostrando, deste modo, o quanto somos falados por dizeres que nos antecedem, visto que são, fundamentalmente, sociais.

O tom da emoção da atriz na última fala da peça, em que está discorrendo acerca da experiência da morte, é dotado de um estoicismo leve em que a própria morte é embelezada num plano etéreo e narrativo, altamente plástico, cheio de sons onomatopaicos. Há aí o paradoxo do comediante, pois Drica Moraes empresta sua emoção real, submetendo-a ao seu senso rítmico. E, ouso dizer, aos seus truques de humor. Apesar de grande parte dos espectadores terem conhecimento de sua superação recente de uma doença grave, e de ser a atriz uma pessoa pública da atual sociedade dos espetáculos, a quarta parede plástica, criada pela atriz, defende, principalmente, a alegria da máscara zaratustriana da intérprete de estar viva, sem qualquer espetacularização pública de sua dor privada – como muito se vê na mídia atual. Ou seja, a máscara escolhida pela comediante não se presta apenas para criticar a sociedade, mas para delimitar limites altamente artísticos e críticos.

O jogo criado pelas duas atrizes possibilita uma operação artística inusitada no texto de MacIvor e no espaço cênico. Tal intervenção é sutil e não promove a desarmonia da encenação, uma vez que opera uma complementaridade dos procedimentos atoriais. Este jogo experimenta o risco do desafio de matar o texto, expondo o seu maneirismo formal, através da enunciação martelada de Mariana Lima de algumas palavras, principalmente a do ‘refrão’ “nada é suficiente”. Há uma grande contenção energética da intérprete. Entretanto, a riqueza da encenação foi a de não abdicar de características da atriz, pondo-as ali de modo sutil, a fim de se pensar os encostes do texto. Ela revela o formalismo textual, isto é, o recurso da repetição do dramaturgo de utilizar a expressão, enquanto Drica Moraes oculta a mesma expressão, emitindo-a como fala distraída, como se ela nunca houvesse sido dita/ouvida ali no palco. No espaço cênico (quase) nu, composto por poucos elementos (uma barraca, duas cadeiras, um rádio), o jogo é outro. Sem quase tocar nos objetos cênicos (visto que a outra atriz traz a barraca e o vaso com a planta), Drica Moraes preenche o espaço por meio de um olhar que tateia formas invisíveis.

Neste espetáculo, o encenador Enrique Diaz edifica uma síntese do trabalho de duas grandes atrizes. Em A primeira vista, em vez da óbvia oposição dos talentos, assiste-se o equilíbrio crítico de duas grandes intérpretes, lidando com a encruzilhada de um texto dramatúrgico na contemporaneidade. Mariana Lima se envolve na ficção do dramaturgo, mas não se abstém de tocar, conscientemente, a nervura do texto. Drica Moraes, como uma cronista de um mundo fundamentalmente raso, mostra o quanto a consciência metalinguística já atingiu a “pessoa pessoa”. Contempla-se, portanto, três dramaturgias que constroem uma crônica-poética da morte e da vida sobre o quão difícil e metateatral se tornou os afetos humanos na atualidade.

Nota:

(1) Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/enrique-diaz-tece-relacoes-afetivas-profissionais-em-primeira-vista-4280115#ixzz1xgCL8AZP © 1996 – 2012. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização.

(2) Texto cedido por Daniele Avila Small, tradutora.

João Cícero Bezerra é crítico teatral, dramaturgo e teórico de arte, formado em Teoria do Teatro, mestre em Artes Cênicas e doutorando em História Social da Cultura.

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