Uma história com início, meio e fim

Crítica da peça Savana Glacial

21 de junho de 2010 Críticas
Foto: divulgação.

Savana Glacial, espetáculo do Físico de Teatro em cartaz no Maria Clara Machado, tem como mote e interesse principal o que podemos entender por “uma história bem contada”, bem escrita e bem resolvida dramaturgicamente.

A trama se baseia nas relações de um casal em crise, a perda de um filho, o trauma de um acidente, a privação de uma vida, a solidão das vidas vizinhas e estranhas entre si. O enredo da peça se baseia na história de um casal que tem de lidar com o trauma de um acidente de carro que deixa a mulher, Meg (Andreza Bittencourt), com uma sequela: a perda de memória recente. O marido, o escritor Michel (Renato Livera), aprisiona a mulher em casa, fazendo-a anotar tudo o que lhes acontece num bloquinho, para que Meg possa se lembrar das pessoas que passam por sua casa e os últimos acontecimentos. Quando uma estranha vizinha, Ágatha (Camila Gama), aparece pela primeira vez em sua casa, todos os acontecimentos se embaralham. Ágatha aparece como uma intrusa na vida do casal; aparece como alguém que sabe tudo sobre a relação de domínio e castração que o escritor impõe sobre sua esposa, na tentativa de ajudar a esposa a livrar-se daquela prisão domiciliar/conjugal; ao mesmo tempo insinua-se um envolvimento dessa estranha com Michel, o que ora se concretiza em cena, ora é apenas sugerido.

A relação que envolve os três toma contornos irreversíveis: em determinado momento da peça, não sabemos mais quem é culpado, quem é louco, quem está mentindo para quem ou se tudo é realmente real naquela instância ficcional, ou se tudo não passa de um fluxo de criação do personagem Michel em sua lida diária com a escrita. O personagem deflagrador desse emaranhado é um simples motoboy, Nuno (Diogo Cardoso) que surge na casa do casal para pegar uma encomenda de um bolo. Sua presença estimula a memória daquela mulher e a impulsiona a deixar aquela prisão domiciliar imposta por seu marido em decorrência de seu problema. A partir daí, uma nova historia poderá ser contada. A partir daí, o escritor baterá em sua máquina de datilografar, confundindo nossa percepção enquanto espectadores. Será realmente tudo mentira e pura criação de Michel em seus devaneios de escritor? Ou a saída de Meg será o deflagrador necessário para a inspiração de Michel? Onde a ficção termina e onde começa o processo de escrita da dramaturgia de Bilac?

É interessante perceber como o autor inicia a peça com a fala de Michel, deixando aberto o espaço para a reflexão sobre a problematização das instâncias do real e do ficcional, da memória e da criação artística.

“ Tudo aqui é ficção. Esse apartamento. O casal se beijando no elevador. O elevador em si. A mulher entretida com papéis. A suposta pilha de caixas, a suposta espera, o suposto cuco do relógio: tudo ficção. O tempo aqui é ficção. O beijo é ficção. O desejo é ficção. Ele também não é real. Tudo falso. Tudo ficção. Menos a dor… Não. A dor não. A dor é real.”

Nessa medida, Savana Glacial é mais esse questionamento, o que me parece mais interessante, do que o próprio desenrolar dos fatos, onde a verdade, a realidade, a mentira, a memória e a ficção estão o tempo inteiro suspensos, confundindo-se. Não se pode tirar conclusões decisivas. A única é a acima citada, de que entre o real e o ficcional o limite é tênue e suspenso, mas em ambos a dor será o mais vital e humano. Em Savana Glacial, essa dor se esgarça na medida em que presenciamos a ação.

O Físico de Teatro propõe uma encenação cuidadosa com essa dramaturgia e sua estrutura que atua como peças que se encaixam num quebra cabeça sem deixar buracos, bem urdido na execução cênica e construção das imagens e atmosfera por ele proposta, dando forma e visão a cada fio da rede tecida engenhosamente por Bilac. Pensando o teatro como artificialidade e representação, as cenas se constroem e se desenrolam aos nossos olhos com nitidez, onde os conflitos se estabelecem num jogo de decifração dramatúrgica e cênica.

A cenografia de Mariana Ribas é bastante precisa, com os objetos cênicos manipulados em cena pelos próprios atores. A idéia de savana, um lugar de vegetação esparsa bastante plana e seca, pode ser referida na cenografia. Um palco composto somente por luminárias no chão e diversos lustres arranjados pelo espaço, dão uma amplitude reverberada na iluminação, de Renato Machado, sempre em tons sombrios e avermelhados, evocando o lugar onde habitam aqueles seres sufocados no dia a dia de suas relações e angústias. A sensação é de ser sempre noite, de aquela casa onde todas as cenas se passam estar sempre fechada para nada sair de dentro dela. Ninguém sai. A estranha vizinha é quem adentra a fundo aquele lar.

Nesse viés, a trilha sonora também converge para essa atmosfera de opressão e claustrofobia doméstica: uma música que não sublinha a tensão em cena, mas pontua o clima de mistério que emana daquele ambiente interno e opera como ferramenta desestabilizadora dos estados pulsantes daqueles seres em relação e diálogo. O registro de atuação desenvolvido pelo grupo e pela direção de Renato Carrera é de uma psicologização dos personagens. Numa linha claramente naturalista, os atores se propõem à construção de personas bem definidas. Os contornos de sua personalidade são delineados à medida que as cenas se seguem e podemos julgar cada um por alguma característica que se evidencia e marca cada personagem, como a mulher desmemoriada de Andreza Bittencourt, que possui um tom sempre lacunar e um olhar perdido, o escritor que possui uma rigidez nos gestos e a vizinha que se caracteriza por ser uma pessoa invasiva e expansiva nas palavras e gestos.

Ao mesmo tempo em que a atuação nesse espetáculo opta por um registro psicológico e naturalista, há, em alguns momentos, passagens de uma marcação mais pontual na atuação. É quando os atores sugerem uma quebra na estrutura narrativa e linear do texto com movimentos coreografados e bem marcados, evocando a ideia inicial da peça ser uma obra ficcional. É como se quando esses movimentos marcados surgem em cena, o autor desse o aviso para não nos esquecermos de se tratar de uma ficção. A artificialidade desses movimentos sentencia a artificialidade da historia em certa medida.

O que temos, afinal, é uma peça com uma dramaturgia bem costurada, bem acabada e fluida. Conflitos bem estabelecidos com início, meio e fim, realizados com destreza. É a percepção de um teatro que prima por um espectador que acompanhe a história e junte os pedaços de sua estrutura, jogados pelo dramaturgo. O olhar aqui está vinculado àquilo que se conta em cena pela atuação dos atores, à ideia de uma história que precisa ser desvendada e que prende a atenção na eminência de um final que põe tudo às claras, num sentido de compensação daquele espectador que quer ver até o desfecho final dos fatos desenrolados em sua frente.

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