Conexões históricas e atemporais

Crítica da peça In On It

19 de março de 2010 Críticas
Atores: Emílio de Mello e Fernando Eiras. Foto: Dalton Valério.

Se o teatro é uma arte efêmera, uma das possibilidades da crítica será a de exercer sua memória. Memória do transitório. Esse poderia até ser o título desse texto, na medida em que escrevo de memória sobre uma peça que dá forma a temporalidades distintas. Este novo olhar sobre a peça só pode ser incorporado no seu sentido mais estrito tendo em vista o fato de sua atualidade. In On It está em cartaz em São Paulo no Teatro FAAP e fará uma incursão na próxima edição do Festival de Curitiba. Este contexto me fez refletir a respeito do potencial que existe em rememorar – termo mais específico ainda quando os fatos passados transitam por meio da linguagem. Quando narramos o evento passado, ele não aparece na sua forma integral ou fidedigna, mas sim, atravessado pelo momento presente que, ao mesmo tempo, resulta de outra série de acontecimentos decorridos. Esta imbricação temporal está formalizada em In on it onde o acontecimento entre os personagens não é constituído por um tempo romântico. Ao contrário, é o surgimento do tempo imperioso contido na paixão, que suspende e fotografa as tensões do acontecimento. A meu ver, esse mecanismo constituinte da encenação é um elemento artístico que opera positivamente para a reflexão do espectador.

A peça In On It ilumina a relação entre dramaturgia e encenação. Compartilho da visão do professor José Da Costa de que o que anima o comentário sobre o teatro contemporâneo é pensar a noção de escritura cênico-dramatúrgica. Neste sentido pensarei aqui uma escritura que articula esses dois âmbitos, me valendo ainda do fato de não ter lido o texto dramatúrgico propriamente dito. É preciso ter em mente que quando escrevo refaço o movimento solitário inaugurado pelo romance moderno. O movimento está colocado assim: penso na peça como escritura cênica e minha escrita como derivação da primeira, porém, sem nenhum caráter de significação hierarquicamente colocado. Esta chave parece vir da escritura de In On It que opera com o paradoxo existente entre a palavra e o fluxo de imagens que ela possibilita. Seria como dizer que existe uma zona invisível dentro de nossos fluxos de palavras, de nossas ações e de todo o contexto de objetos que constitui nosso panorama cultural.

Dizendo assim, a encenação parece ter como matéria o teatro contemporâneo, situado em uma esfera que problematiza o que é ficcional e o que é da instância do real. O próprio título nos faz transitar por duas esferas, uma que está dentro da narrativa e outra que vemos de fora se criando simultaneamente com a primeira e que se dá a ver aos espectadores como um jogo de desdobramentos. Porém, como todo o jogo, o percurso não se delineia em linha reta, perfaz idas e vindas e a dramaturgia expõe pensamentos sub-reptícios e o não dito.

Essa noção problemática aparece logo no espaço cenográfico da encenação. A dramaturgia de Daniel Macivor oferece um espaço vazio, duas cadeiras e um casaco – um lugar simbólico do real – para logo a seguir surgir Fernando Eiras com ações mais tradicionalmente teatrais deslizando para um clichê de atuação. A sensação é paradoxal, como se o espaço e a ação não pertencessem à mesma esfera e o resultado é a entrada do espectador no jogo. Pode-se dizer, por exemplo, que Eiras opera com a noção de presença cênica do ator e para o espectador a paisagem é apreendida em um fluxo tenso entre a satisfação gerada pela combinação estética de voz e ações e uma certa desconfiança da mesma situação enquanto real, sensação esta que é acentuada pela luz que sublinha a cena. Presença cênica aqui passa por um acontecimento entre o ator e o espectador onde a credibilidade parece ser no pensamento artístico que norteia a cena e não em sua suposta atitude abstrata ou psicológica do ator.

As atuações de Fernando Eiras e de Emílio de Emílio de Mello se inscrevem como poéticas aliadas da dramaturgia. Podemos entender poética como um modo de fazer, um conjunto de procedimentos artísticos que conferem singularidade a uma prática na esfera da arte. Traduzindo livremente o mestre de teatro polonês Jerzy Grotowski, o território da ação do ator é a paisagem da sua própria individualidade. Os dois atores criam partituras poéticas onde parecem não criar barreiras em mostrar sua pessoalidades. Este movimento de exposição pessoal acaba desvelando os personagens aos espectadores.

No teatro tudo o que visualizamos é lido como dramaturgia. A peça se desenvolve em níveis: a relação entre os personagens, a fábula que um deles escreve que se mistura com a atualidade da primeira e o ensaio desta. O espaço também é conteúdo: uma parte central ladeada por uma passarela um pouco elevada, as laterais do palco e duas escadas de alumínio ao fundo estão visíveis indicando a alternância dos planos, mesmo que seja virtual, como no caso das escadas que não são utilizadas pelos atores, porém, estão ali todo o tempo compondo o que vemos. Esse jogo de diferentes níveis vai ao encontro da dramaturgia que se configura não por uma ordem cronológica, alterna momentos que podem ser considerados como o presente da encenação e com acontecimentos no passado ou no futuro. Assim como, por exemplo, o som de acidente de automóvel logo na cena inicial que só é decifrado no final da peça. Trabalha também com a repetição de episódios entre os personagens com algumas modificações de palavras, de ações ou de contextos. Isso nos parece propor camadas de sentidos diferentes e nos indica virtualmente que podemos mudar o destino das coisas. Assim congregados, dramaturgia e cenografia compõem também uma temporalidade implícita nas repetições, nas ações de subir e descer, no fato de os atores representarem diferentes personagens e no metateatro. O tempo é o elemento do possível para os personagens e para o público.

A sobriedade da encenação oferecida como complexidade estética nos remete ao fato de que o teatro – e a arte de um modo geral – produzem coisas imateriais. Pensando a arte como produção capitalista, In On It propõe uma reinvenção do próprio produto capital sendo constituído por um conjunto de subjetividades. Quando os atores se dirigem diretamente ao público, ou quando este é inserido na cena, como no exemplo da performance em que os dois personagens acabam envolvidos e se vêem obrigados a representar. Aqui, acontece todo o jogo de deslocamentos que a linguagem teatral possibilita entre a presença e o remetimento do espectador à outra cena.

Informações sobre a temporada no blog da peça.

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