O lugar do ressentido
Crítica de Cine-Monstro, de Daniel MacIvor, com direção de Enrique Diaz
Um filho que esquarteja o pai. Poderia ser capa de um jornal sensacionalista. Ou notícia de um programa de televisão da tarde. Um acontecimento para uma semana de comoção nacional. Mas não é disso que se trata, do esquartejamento do pai, e sim dos motivos por detrás do ato. Cine-Monstro, traduzido por Bárbara Duvivier e pelo diretor Enrique Diaz do original Monster (1998), de Daniel MacIvor, é o terceiro texto do dramaturgo canadense que o diretor brasileiro põe nos palcos. In on it (2009) e A primeira vista (2012) são referência de como o autor organiza a dramaturgia: 1) período longo de tensão na vida das personagens; 2) perda do controle emocional e 3) final supostamente surpreendente.
Depois de duas montagens, a estrutura fragmentada da dramaturgia de MacIvor já não se apresenta da mesma maneira (para quem viu as três peças, como eu). O mistério, o suspense, a forma de colocar o espectador como articulador das pistas que o texto vai dando no seu decorrer perde força quando se sabe que a última cena dá a resposta para o jogo de metáforas que o autor constrói. Cine-Monstro não se difere, e talvez não possa, por ser o seu texto mais antigo, e por apresentar um encadeamento mais brusco de narrativa, que, em comparação às duas outras citadas, parece mais um estudo, um processo, para as dramaturgias escritas depois. Apesar da fragmentação, MacIvor apresenta uma dramaturgia “fechada”, que apara as arestas, não deixa espaço para a especulação, acaba com as reticências. Por isso o final “suspostamente” surpreendente, porque depois de tantos rastros pelo texto, ainda que se crie mais um efeito de suspense, o grande final é o que existe mais próximo do óbvio.
Então acredito que seja mais interessante olhar para esta montagem pela apropriação feita ao inserir o “Cine” antes de “Monstro”, que não contém no título original, Monster. Enquanto “Monstro” estaria mais próximo do personagem, “Cine-Monstro” está mais próximo da ideia um filme de horror. Assim, o espectador pode pensar que irá ver cenas de muita violência, e de fato irá, contudo, estas cenas são particularmente produzidas a partir da narração, em outras palavras, o filme se passa na cabeça de cada espectador. As imagens medonhas são palavras na boca dos personagens. E os três platôs que circundam o palco e se fecham em paredes de projeção estão ali mais por efeito estético e rítmico do que para corresponder ao terror que vem do título. Há no texto um personagem que cria um roteiro e propõe exatamente a história narrada, como um efeito meta-dramatúrgico, mas aqui, como o texto nos é apresentado com o prefixo “cine”, este efeito passa a ser um tipo estranho de meta-cinema, porque está no teatro. Este roteiro recebe uma projeção especial quando narrado. As cenas cruéis, o esquartejamento e o sangue comuns a este gênero fílmico dão lugar a uma sucessão veloz de imagens com um ar onírico, disforme, muito próximo à tentativa de MacIvor de traçar um perfil psicológico a este filho assassino.
Quando se pensa que a história pretende produzir uma homenagem ao Terror, o texto recai sobre a psicologia do discurso do ressentido. Aquele sujeito que se sente injustiçado socialmente, e quando perde o controle sobre isto, recorre à vingança. Como a maioria dos vilões de novela, como os articuladores de chacinas em colégios (as recentes vítimas de bullying), como a investida policial numa favela depois de ter um de seus membros mortos em combate com o tráfico, como os atentados americanos em retaliação aos atentados terroristas anteriores, como a caça aos líderes “inimigos”, como o Holocausto oriundo do sentimento revanchista alemão depois da derrota na Primeira Guerra, como tantas outras grandes e pequenas situações que, nascidas do ressentimento, terminam em catástrofe, intolerância contra a intolerância.
Como um filho que não recebeu do pai a atenção que desejava. É disso que se trata. E o cinema é o propagador em grande escala do protagonismo desses personagens, e às vezes da legitimação, de uma justificativa “plausível” para suas atitudes. Por exemplo, quando se trata das investidas americanas, de cunho bélico-nacionalista, em outros países, estes atos recebem no cinema interpretações cheia de heroísmos, com trilhas sonoras apoteóticas. Este cinema é que é um grande monstro. Os ressentidos não são lidos numa perspectiva maniqueísta, por isso às vezes recebem o louro, outras, a condenação. Como o tema do ressentimento surge com muita força no último século, com períodos de maior e menor ênfase, é importante que se trate dele com mais responsabilidade. Chamar de “corajosos” os que mostram “o lado obscuro do ser humano” já é superficial e simplista demais para o nosso tempo. Porque exibir artisticamente o “lado obscuro do ser humano” sem crítica é um problema. Pode gerar uma distorção na interpretação, e fazer entender que é mais forte quem comete crimes segundo seus ressentimentos.
Mas para MacIvor o pai esquartejado não teve culpa de ter sido um péssimo pai. Porque na sua explicação psicológica, o seu pai, o avô do filho injustiçado, também tinha sido um pai ruim, que produziu um filho que não queria ser pai, mas quando este não conseguiu se livrar do desejo de maternidade da mulher, gerou um filho a contragosto. Ele não tem culpa de ser um pai ruim, o filho também não tem culpa de ser mal-amado, e assim o crime se justifica num processo psicológico quase trágico, porque se tenta dizer que não há escolhas por trás desses atos. Mas há.
Quando assisti ao espetáculo no meio da temporada no Oi Futuro, em julho, fiquei com uma sensação de que não saberia escrever sobre. Enrique Diaz, em seu primeiro monólogo, se desdobra em 13 personagens com muito domínio. O texto é um excelente exercício para um ator com muitas habilidades. Fica-se muito atraído pela performance. As projeções também contribuem com o magnetismo. A iluminação, a cadeira de acrílico, os copos com água e a taça de vinho em cima da mesinha transparente, o velocípede, o figurino neutro, a direção que recorre a uma movimentação com signos claros, como dar uma volta com o velocípede em torno da cadeira do narrador no início e ao final da peça.
Precisei de um tempo para compreender que não foi a forma que despertou minha intenção de escrita, mas o conteúdo. Existe uma ironia aparente em textos (dramatúrgicos ou não) de autores canadenses quando trata de temas tão intrinsicamente ligados ao universo americano. É uma hipótese, mas que não é clara no texto, não tem como dizer se ela realmente está ali. É comum, no exercício crítico, pender sobre a materialidade das obras, mas ainda existe um conteúdo que precede a forma bem feita. Não que forma e conteúdo apresentem uma distinção óbvia, mas penso aqui em forma como estrutura dramatúrgica e meios de encenação, e conteúdo como tema e “o que se diz”.
A história de um só ressentido acabar por apontar o ressentimento na História da humanidade. Ler desta forma, com uma justificativa psicológica legitimando os fatos, é no mínimo imprudente. Pensei que por conta do protagonismo da voz do filho ressentido ficaria difícil ser de outra maneira, mas lembrei de Ricardo III, o protagonista de Shakespeare com sede de vingança, que tira força da mágoa para atender à sua vontade de poder. Algumas análises em perspectiva histórica comparam Hitler a Ricardo III, personagens centrais de narrativas que não existiriam na ausência deles; a diferença para o texto de MacIvor é a seguinte: o final das histórias, as “inteligências” desses homens pararam de ser enaltecidas.
Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO, e graduanda em Ciências Sociais da UFRJ.