Sobre In on it e outras coisas

Conversa com Enrique Diaz

10 de julho de 2009 Conversas

Fernando Eiras e Emílio de Mello. Foto: Dalton Valério .

A conversa com Enrique Diaz foi realizada em 21 de maio de 2009

DANIELA AMORIM – Quando a gente se encontrou, pouco antes do último ensaio aberto da peça In On It, você falou alguma coisa sobre a peça ser “diferente”; você parecia estar fazendo uma distinção entre o que eu veria, ali naquela montagem, e alguma coisa que eu esperaria ver numa peça sua. Isso tem a ver com alguma noção de identidade que você atribui ao seu trabalho, à sua intervenção como diretor numa montagem, e que não estaria tão presente nesta montagem? O que seria isto?

ENRIQUE DIAZ – Ali o que aconteceu foi uma síndrome mesmo de final de ciclo, que eu estou sentindo, em que eu fiquei, hilariamente, me cobrando uma imagem, que foi a imagem mais ou menos recente – essa imagem mais ou menos recente é uma construção de um tempo mais longo mas… -, e que ali, supostamente daria uma encaretada, entendeu? É uma peça em que a desconstrução já vem do texto, e não tem uma operação de desconstrução da minha parte, onde os atores atuam com verdade, sem… sem… enfim, tem a metalinguagem, mas eles não apresentam, não tem o ator “ator”, não tem o ator performer, tem um personagem, ou o outro personagem, e essas camadas são camadas sofisticadas dentro da dramaturgia. E durante os ensaios, eu sempre ficava impressionado com, primeiro: eu não teria tempo de experimentar outras coisas…

DANIELA AMORIM – Quanto tempo de ensaio foi mais ou menos?

ENRIQUE DIAZ – Seis semanas. Aí eu ficava assim sempre me justificando, diante de mim, diante dos atores, diante de imagens mentais de que, bom, esse trabalho tem que ser assim, porque eram oitenta páginas de texto, nem eu e nem os atores tínhamos estudado o texto antes de começar a ensaiar, e era uma quantidade de trabalho braçal pra fazer aquilo muito grande, e seria bobagem – e agora eu vejo que eu estava certo na verdade – começar a fazer mil laboratórios, mil coisas e tal, porque não daria tempo. E eu me ressentia disso. E aí conforme foi chegando perto da estreia, eu fui vendo que as poucas coisas que a gente tinha meio que inventado, ou que eu tinha deixado ficarem na cena, eu vi que não precisava, porque essa peça é essa peça, tem que ser limpa, tem que ser a estrutura do texto, uma atuação elaborada, sofisticada, detalhada, uma generosidade de um com o outro, uma relação com o público que também é elaborada, e vi que era isso mesmo. Mas, durante, eu fiquei com essa questão de não ter mais o lugar de diretor da maneira como eu estava tendo, que era de, junto com os atores, trabalhar numa série, num certo despedaçamento dos padrões, e uma reorganização que resultasse em alguma coisa possível, meio constelacional, assim e tal… E então, teve algumas pessoas que foram no começo e eu cheguei a falar assim “É teatrão, heim?!.”

DANIELA AMORIM – Você falou isso comigo, e eu falei “Pô, adorei seu teatrão”…

ENRIQUE DIAZ – É, deixa eu só falar: o que aconteceu, como resultado, é que a peça está indo muito bem, de um jeito muito legal, que é incluir no mesmo saco os supostos contemporâneos e os supostos não-contemporâneos, porque é elaborada como dramaturgia…

DANIELA AMORIM – Você está falando da galera que vai assistir e tem reações…

ENRIQUE DIAZ – É, porque ela é elaborada como dramaturgia, porque ela não é facilzinha, você tem que trabalhar um pouco, você tem que estar construindo, é você que constrói, é o espectador que constrói, se ele não construir não acontece nada; é bonito, é interessante, as operações são bem vivas, complexas e tal, e tem o espaço do emocional num lugar que me pareceu, quer dizer, que está me parecendo, super interessante, porque resvala mesmo no apelo melodramático, mas não chega a ser, porque é elaborado de uma maneira bacana; o próprio autor fala “eu gosto de coisas minimalistas, mas que toquem no coração”. Eu estou achando interessante, ver a reação desse público, e especialmente conquistar um público mais amplo, porque assim, a minha mãe me ligou duas vezes nessa semana pra falar da ex-médica dela, que ligou pra ela pedindo um jeito de ver a peça, porque não tem mais ingresso; a minha ex-professora que é diretora do Colégio Espaço Educação querendo ver, e mil outras pessoas, entendeu? É super interessante… Se fosse uma peça que eu fizesse meio largado, ou meio caça-níquel, ou que tivessem me chamado pra fazer e eu não tivesse nenhuma relação com aquilo, talvez eu pudesse falar: beleza, bom que está “lucrando”… Mas como é com o Emílio e com o Fernando, e o texto tem a ver comigo, tem uma proximidade, eu fico vendo uma operação interessante que é na verdade, a de alargar as fronteiras que eu achava que eu tinha, e ver que eu tenho que ser mais generoso com a coisa. Não é que vá fazer sempre peças desse jeito. Mas, pode tudo, entendeu? E é gostoso.

DANIELA AMORIM – Quando eu entrei no teatro, e vi aquela economia, a peça tem essa economia de recursos assim bem visível, aí eu vi que realmente eu esperava alguma coisa de uma encenação sua, nem que fosse algum cenário, os objetos… Enfim, sem ler o texto, num primeiro momento, eu fiquei pensando no porquê dessa diferença dos seus outros trabalhos, e depois, quando li, no porquê você tinha sido tão fiel às rubricas do autor, ainda que eu tenha de fato achado que não precisava de nada além. Então eu queria que você falasse um pouquinho sobre essa coisa da economia na encenação…

ENRIQUE DIAZ – É… O negócio da economia… A gente foi fazendo, né? Eu sempre ficava ali me debatendo em porque não botava as coisas, mas ao mesmo tempo, o processo de estudo foi isso, a coisa foi determinada pelo tempo. Então o tempo não me permitiria, sem um risco muito grande, usar tempo do estudo de texto para a experimentação de coisas formais, ou de narrativas, porque aquela estrutura não estava dominada, não estava entendida… Então, o tempo que a gente tinha era basicamente para entender, decorar, deixar aquilo vivo, e chegar a algum ponto que tivesse consequência, em que os atores estivessem muito inteiros, claros, objetivos, e sensíveis. Então, como eu disse, eu ficava me justificando, mas ao mesmo tempo pedindo desculpas para os atores, porque a gente não saía da mesa. Não saía da mesa! Porque não adiantava a gente sair da mesa. Por exemplo, no final, a gente foi chegando perto da estréia, e a gente foi chegando perto do final da peça também. E a peça tem vários finais. Eu confesso que a gente começou a trabalhar os vários finais sem entender a função de ter vários finais. É uma que peça fala de fim e tem vários finais, e não acaba; então ela é um jogo, uma mistura, que se relaciona também com uma coisa que é dita na peça que é “é verdade ou invenção?”, que um dos personagens fala, e a gente não relacionava uma coisa com a outra! A gente ficava assim “Meu deus, por que essa peça tem tantos finais? Por que ela não acaba?!”… Só depois do último final é que eu fui ter a noção da estrutura como um todo, que inclui ela ter vários finais e falar sobre fim, e falar sobre alguma coisa que acaba.

DANIELA AMORIM – E isso ao mesmo tempo já está no início, você já sabe o assunto, um pouco. Você começa a entrar naquele assunto porque ele fala, textualmente…

ENRIQUE DIAZ – É, um pouco. Mas na verdade, voltando, o que acontece naquele momento de começo onde tudo pode, é que dá vontade de que tudo esteja, de que tudo fique, a princípio, de experimentar tudo. E a experimentação, na verdade… É por uma demanda de sair um pouco do texto pra poder experimentar, poder o cérebro trabalhar em uma outra frequência. Tanto que tem o workshop do Fernando que ficou na internet (workshop em vídeo disponível no blog da peça) que foi super bonito, super revelador… Enfim, sendo pouco econômico na resposta, a Cecile (Cecile Dano, atriz), aquela francesinha, estava acompanhando, e aí, um dia antes de ela ir embora, eu tive um almoço com ela pra gente conversar, porque ela veio por minha causa pro Brasil, e aí ela falou: “Continuei não entendendo a sua maneira de trabalhar. Por exemplo, pra que serve aquele workshop do Fernando?”. E assim, ele não é objetivo, evidentemente não é um workshop que é feito para descobrir alguma coisa formal, naquele caso, e que é utilizado na peça, como aconteceu em muitos casos, como no Hamlet, na Gaivota e tal. Mas ele dá uma imagem muito concreta do que é a peça pra gente, uma imagem poética fortíssima, e que nos ajuda a nos aproximarmos do tema da peça de uma maneira muito humana. O fato de a gente produzir aquilo, e assistir aquilo, faz a gente sentir um pouco aquela perda, esteticamente, porque é uma articulação estética, e isso nos aproxima da coisa. Em vez de já: vamos entender! Tem hora que não é entender, tem hora que é onde é que está você ali… Então, o percurso foi esse. Voltando àquela coisa do início, onde é tudo aberto, tudo pode; quanto mais o tempo vai passando e as coisas vão encontrando alguns lugares, e a estrutura da peça vai dialogando com ela própria, mais aprofundado podia ser o trabalho dos atores, ou as escolhas de direção, por mais minimalistas que fossem. E aí aquelas cenas onde antes parecia que não tinha nada, que era só ator e texto, tem muita coisa, sendo só ator e texto! Tanto que, uma das poucas invenções que eu fiz, e nem podia chamar de invenção, que é a coisa deles, nas cenas da peça dentro da peça, ficarem de frente e de lado – o texto pede só de frente, a convenção é os atores falando de frente, como se estivessem falando um com o outro – e a gente inventa um plano e contra-plano, um plano e um plano de lado, que durante a peça vai dando uma sensação diferente do que seria a de dois atores só de frente. A gente tem o que seria uma visão mais cubista, mais labiríntica, e de câmera, mais do que uma versão teatral que é: estou de frente, que é melhor de frente, o outro também está de frente, mas, supostamente, a gente está dialogando. Na hora que um está mais à frente, o outro está mais atrás, e vira de lado, e aí esse vira pra cá, o outro vira pra lá, isso já é uma outra coisa. E é da ordem do minimalismo. A gente vê que aquilo é uma coisa.

DANIELA AMORIM – É uma intervenção, e é grande.

ENRIQUE DIAZ – Ela é grande. Porque o que veio antes foi se sedimentando, foi se encontrando em um lugar, e aí que a gente sabe que o foco é no ator, o foco é no ator e é naquelas camadas. E aí o trabalho mental do espectador, ele é muito mais elaborado. Quanto mais a gente colocasse coisas, claro, se o texto precisasse – e aí dando um exemplo de qualquer operação dessas, da Gaivota, a couve-flor e a gaivota -, claro, isso produz, provoca um trabalho no espectador que naquele contexto faz sentido, porque a peça já é super ampla, ela aponta para mil lugares. Essa não, ela é toda amarradinha, e deixa um espaço vazio que é o espaço exatamente da articulação que o espectador tem que fazer. Isso no minimalismo é super bacana.

DANIELA AMORIM – E ele te puxa pra dentro. Amplia a tua capacidade de atenção. Porque você tem pouca coisa, você vai se ligando no detalhe. Aí alguém pegou um copo d’água, e o copo d’água é um assunto. Você ressignifica, porque então é o cara que está dentro? É o cara que está doente? É o ator que está cansado?

ENRIQUE DIAZ – O copo d’água é um bom exemplo. Porque não foi escolha.

DANIELA AMORIM – Foi necessidade.

ENRIQUE DIAZ – Eles ficam secos. Então o copo d’água acaba sendo a tal camada onde o ator é ator, mesmo que ele esteja no personagem ou não, pouco importa, mas é… A camada ator não tem na peça. Tem no sentido em que eles estão muito articulados entre si, eles erigem aquele circo juntos. Pegar aquele copo d’água que é real, talvez seja…

DANIELA AMORIM – Mas o copo fica grande, é outro elemento, além da cadeira, do casaco, dos dois atores.

ENRIQUE DIAZ – Eu acho que tem uma coisa dos poucos elementos no minimalismo que vai chegando num ponto que é muito legal, e nesse sentido com esses atores especificamente, que são incríveis, e foram incríveis nesse trabalho, é que, por exemplo, lá no final, quando você já se acostumou com o negócio, e que o Emílio faz o velho e a mulher, você tem a nítida… Quer dizer, o velho ainda tem uma composição mais forte, mas a mulher, é como se você ficasse o tempo todo percebendo que não precisa de nada, e a mulher está ali e não está ali ao mesmo tempo. O jogo do ator em mostrar o personagem, sem ser brechtiano, sem precisar apontar, é tão claro ali, de barbicha… E você segue a história perfeitamente, você esquece daquilo, eu acho aquilo muito legal.

DANIELA AMORIM – E é um take, é cinema.

ENRIQUE DIAZ – A peça é bem cinema. Tem vários ambientes sonoros.

DANIELA AMORIM – O restaurante… Ele pede no texto o som, não é?

ENRIQUE DIAZ – É… Eu cheguei a pensar em botar um vídeo, sempre nas ficções ter um vídeo, claro que o mais elaborado possível, menos ilustrativo possível, mas que tivesse a ver com a locação, tivesse naquele lugar, pode ser… Sei lá, no restaurante, pode ser a mão da pessoa no guardanapo, pode ser um detalhe, no médico pode ser um objeto, alguma coisa que apontasse para aquela locação e que só nas ficções tivesse. Depois eu vi que não precisa. O som faz essa função.

DANIELA AMORIM – Quando acaba a peça, há a revelação final. Tem certo gap, fica aquilo ali meio mal digerido, porque é rápido, porque a gente não sabe se é só mais um outro final, além do que já foi apresentado, porque está ali, envolvido… Como foi pra vocês o negócio de a peça ter um desfecho?

ENRIQUE DIAZ – O desfecho… Eu não sei o que dizer não… Isso aí é a peça, né? A peça está escrita desse jeito, ela tem esse truque de certa maneira, mas quanto mais eu trabalhava na peça mais eu sentia que não se reduz a um truque. Eu acho que é tão bem amarrado que, por exemplo… Eu não posso contar tudo, mas quanto mais você… Por exemplo, a história do passado deles, o passado é muito empático, né? É quase uma comédia romântica. E você, quanto mais a peça vai passando, mais você se relaciona com o que vai entendendo que são aqueles personagens, e mais você se apega a eles. E quanto mais a peça passa, ao mesmo tempo, mais o fim se aproxima. Então, quando o fim se consuma, você está apegadíssimo, emocionalmente você está envolvido, o que é muito legal. Porque a peça, ela tem uma exigência intelectual grande, porque você tem que associar várias pontas soltas, em vários níveis, e isso não é à toa, é muito elaborado. E tem um desafio, porque você tem que ficar juntando aqueles negócios. Ao mesmo tempo, você acaba se envolvendo, se pega dentro do negócio, se pega não se exigindo que entenda perfeitamente tudo, você não tem que entender perfeitamente tudo… Mas alguma coisa se compõe como o mistério da vacuidade, em algum lugar isso se junta, e eu não sei onde é… E o tempo está passando, e a vida também, e eu vou morrer daqui a pouco… Tem alguma coisa desse vazio que ele usa muito bem. Então, o desfecho, ele é uma amarração, mas ele não é só um truque. Ele é mais do que isso, na elaboração da peça como um todo.

Essa coisa da invenção da verdade, que eu acho muito legal, que fala da Bíblia, lembra? Ele fala da Bíblia, é invenção ou é verdade? E como ele, durante a peça você vai fazendo a associação dos planos, depois você vai entendendo que todos aqueles planos já são alguma coisa além daquilo, porque a vivência que a gente tem da própria ficção, você vai vendo que tem uma profundidade maior que é aquilo pertencer àquele autor, de alguma maneira, e nem mesmo ele sabe o quanto aquilo pertence. Vai se revelando pra gente algo que vai se revelando também para aquele personagem; o personagem vai percebendo que tem coisas que não estão na alçada do racional dele. Que estão além. E isso é muito legal. É uma sensação de surrender, tipo: tem coisas maiores que a gente. Então eu acho que eu estou aqui, estou controlado, tem uma coisa maior. E o outro personagem, o personagem do Emílio, fica o tempo todo esperando pra revelar uma coisa que o outro personagem não tem noção. E que é do nível do afeto. Isso é muito legal, é muito interessante.

DANIELA AMORIM – Aqui tem uma coisa: a opção de atuação de olhos sempre marejados do Fernando chegou a me incomodar durante a peça, porque eu via um ator com um olhar emocionado, e no controle, o que dava a ele um certo privilégio, era um olhar sobre o personagem, me pareceu, quando em resumo, a matéria de que se está tratando ali é a morte, a falta de controle. Ao mesmo tempo, no fim, a coisa toda pode ser repensada… Por isso eu te perguntei do desfecho: então tem um “pra trás” que se deve elaborar, conduzindo para o fim, como é isso?

ENRIQUE DIAZ – Isso é um mistério. O que eu sinto é que é assim: você tem que fazer escolhas em relação ao que você sabe que a plateia não sabe. Você tem que fazer escolhas. Uma coisa que de alguma maneira está relacionada a alguma coisa que vai ser revelada no final, então você tem uma certa vivência daquilo, quer dizer, aquilo tem uma certa lógica, aquilo tem que ser atuado, dirigido pra se procurar uma lógica, enfim, compor aquela história, que seja “verdadeira”… Não que isso seja importante, mas a gente usou dessa maneira. E aí, ao mesmo tempo, o quanto que você vai ficar apontando para a plateia, dizendo, olha, presta atenção que isso aqui não foi revelado, mas está aqui; até que ponto você precisa, e até que ponto não é interessante que você engane a platéia mesmo. Ou seja, você só dê o que ela pode receber para que depois ela entenda. Então esse jogo é complicado. Mas é a mesma coisa de: começa a peça, duas cenas, três cenas: por que o Emílio está dando tanta pinta? O Emílio está dando pinta… Será que o Emílio…! O Emílio é um ator que tem uma gama enorme, e é uma pessoa delicada, no sentido mais legal do termo. Então ele poderia estar dando pinta um pouco. Mas aí quando a coisa vai se encaminhando, você vê e tal. E nesse nível, é interessante. Teoricamente, nos ensaios, eu falei: vamos tentar aquele jogo de puxa e solta, morde e assopra, pra ver se a coisa vai indo, e a pessoa vá encaixando e juntando, sem que ela fique criando quarenta mil enigmas na cabeça dela. Então tem um jogo que são escolhas mesmo… O Fernando, às vezes eu acho que ele pode segurar um pouco a onda. Mas em geral, pelo que eu tenho visto, as pessoas vão naquilo ali e vão caminhando, se incomodam uma hora, mas não saber também incomoda, então… E a peça é cada dia de um jeito.

E por outro lado, o personagem do Emílio – não sei se a gente escancara logo o que é –, ele não tem nada a perder, e o do Fernando está passando pela coisa; o do Emílio é o Grilo Falante um pouco. Então ele está ali, supostamente eles estão conversando no mesmo nível, mas tem uma hora que você vai percebendo que aquilo é outra coisa. Então ele não tem o envolvimento que o Fernando tem com a catarse, ou com o movimento de entender alguma coisa que tem ali. Ele está em outra…Tanto que ele pode mostrar o cartaz da peça e ser irônico, porque ele está pouco se lixando: “Relaxa filha, rebola, pára de achar que tudo é sério!”. E aí a qualidade deles é diferente, mas a função é também diferente. Então, eu acho que o Fernando faz uma função que, independente de mais pra cá ou mais pra lá é melhor ou não, ele faz uma função de uma âncora emocional que eu acho legal, acho interessante. Nas vezes em que eu vi a peça e que eu me emocionei, eu não entendia porquê.

Por exemplo, a impressão que eu tenho da montagem do autor, em que ele atuava também, é bem mais cômica. E menos bem acabada, em termos estéticos, assim. Não que a gente faça nada demais, mas tem uma atenção pra limpeza, pra luz, pro espaço, pra escolha de espaço, o figurino, tudo, que eu acho mais legal do que eu vi. O cartaz, por exemplo, da montagem dele, e de uma outra montagem que ele dirigiu com atores americanos, é bem mais “bagaceira”. O cartaz que a gente usa na cena, que não é o cartaz da nossa peça, o nosso cartaz é bem mais legal, em termos de design – o cartaz da peça dentro da peça -, do que os cartazes que eles usavam lá, é mais sofisticado, mais trabalhado e tal; ainda teve essa coisa de não querer fazer daquilo o nosso cartaz real. Eu acho que a gente acaba dando um valor maior a outras camadas, não do truque, ou não da comédia, o que enriquece. Nesse sentido é que eu acho que talvez a coisa da emoção, ela invada um pouco, porque a gente acha que a brincadeira é mais complexa, me parece. Mas é questão de gosto também.

Por exemplo, o Fernando, a cena em que tem a segunda jogada de casaco no chão, e que ele bota a mão na gravata, e o outro fala “O que você está fazendo com a mão na gravata? Ela usa gravata?” E ele pára, e ele fica assim… É como se ali fosse a única cena do real, a única cena em que ele está ali com aquele casaco e está tentando traduzir o que aconteceu com a vida dele. E ele faz essa cena, ele sempre fala: “Eu quero fazer essa cena sempre sem saber, sem saber, eu não quero saber essa cena, eu preciso não saber!”. Porque essa cena é sobre isso. E aí tem uma marca de uma “contraluzinha” que vai caindo assim… Cara, outro dia eu vi a cena, e ele foi pro outro lado! “Meu deus, o Fernando não faz a marca, não faz a marca…!”. Ele foi de um jeito…

DANIELA AMORIM – Ele saiu da luz?

ENRIQUE DIAZ – Não, ele foi pra um outro lado, que não era o lado certo, mas a luz está numa geral ainda, e ele fez de um outro jeito, sempre renovando a cena, completamente sem saber, super bonito, mas foi caindo na marca de novo… No final da cena, quando é a luz realmente, ele tava na marca! E ele mesmo, eu falei depois, ele mesmo não sabia! Mas ele foi pra marca e conseguiu fazer a cena sem saber, renovando, entendeu? Então é muito legal.

DANIELA AMORIM – Tem uma cena que ela refaz o texto. É essa cena? Que ela fala uma coisa e diz não está bom?

ENRIQUE DIAZ – Ela se justifica, a personagem se justifica, aí vem uma cena de passado, pra mostrar que ele não está entendendo que aquele personagem, que aquela cena tem mais a ver com ele do que ele imagina, que é a jogada do casaco no chão; eles fazem a cena da briga que acaba com o casaco no chão, e aí o Emílio fala: tenta de novo, se defende agora. Ele tenta fazer como personagem, e o Emílio fala: “O que você está fazendo?” “Estou escondendo a gravata”. “Ela usa gravata?”. Aí ele entende que não é sobre ela, é sobre ele. Aí ele fala o texto, não é o mesmo texto, mas é parecido, aí sim falando como ele mesmo, como ele, sem usar o personagem. Aí ele começa a perceber que a história é sobre ele, não sobre a peça dele. A parada, uma das camadas que tem, é que ele vai percebendo… Ele é o autor, então ele acha que o objeto daquilo ali, daquela situação, eles dois juntos, é a peça dele. E o Emílio fala que não, tem um espetáculo rolando. Ele não sabe que ele é o espetáculo. A revelação dele, de alguma coisa dele é o espetáculo. Ele não sabe, ele acha que ele está falando de alguma coisa que ele controla, que é a peça. Ele fala no começo “Coisas sobre controle: alguém que escreve uma peça, alguém que casa, alguém que constrói um barco…”. E ele não sabe que o espetáculo é o desvelamento dele, em relação à própria peça. E o Emílio está só ali, esperando ele sacar. E essa hora é que vai pra um lugar que é realmente de análise. Na análise você está ali, fazendo seu personagem, até que uma coisa faz “tuf”, e você fica: hã… Aí cai uma ficha de que aquilo que você está fazendo ali é só máscara, tem um negócio ali, você não tem nem reação. Aí que você começa a trabalhar. Esse lugar é um lugar muito, muito chocante da peça. E o mais engraçado: eu vi toda a série In Treatment, que é uma série originalmente israelense, mas que foi refeita pelos americanos, que é só psicanálise, é só um analista, e cada dia um analisando, um paciente, a cada dia da semana; são cinco pacientes. A minissérie é só a sessão de análise. E é muito legal. E eu vi todos! São 43 episódios. Todo dia eu chegava no ensaio, e falava “Gente, não sei quê, não sei quê…”. Eu fui psicanalisando tudo, e aí teve uma hora que eu tive que parar. Voltei a fazer análise no meio também…

DANIELA AMORIM – Tem uma vertente da crítica especializada em teatro, que tende a criticar uma atuação segundo a adequação ou não ao texto, que pensa teatro ainda como o lugar do texto hegemônico. Então o bom ator seria aquele capaz de adequar seu instrumento às questões do texto, em ilustrar um texto, alcançar algo que já está lá. Esse seria um ator dramático, o que não é bom nem ruim, é específico. Outro pensamento seria, e que tem a ver com o seu trabalho, do ator criador, do ator autor, e que é coerente com a pesquisa que vem amadurecendo e ganhando complexidade na sua história, mas que já está no início da Companhia dos Atores; no livro da Cia. tem até um texto seu que fala disso. Pensando sobre isso, eu não acho que exista, a priori, o bom ator; diria que existem atores e suas histórias, qualidades e falta delas nas pessoas que se dedicam a atuar, e você joga com isso quando faz um casting. Pra você, essa discussão existe? O que é um bom ator hoje? Existe isso? Está confusa a pergunta?

ENRIQUE DIAZ – Não, confuso não, eu só não sei… responder. Concordo com o que você falou assim: existem atores, então existem também trabalhos de direção mais para um caminho ou mais para o outro, textos e textos. Existem textos de qualidades x e y, existem relações da encenação com esse texto que podem ser: ir mais no mesmo caminho do próprio texto, ou acreditar que aquele texto propõe um espaço grande de trabalho, portanto, ir no mesmo caminho que o texto está indo já é bastante coisa, e muitas vezes é… Outras vezes, por mais que este texto ofereça esse espaço, como no Hamlet – não dá pra negar que o texto oferece um espaço enorme pra você ir dentro do próprio texto, no caminho do próprio texto, se é que isso existe. Quer dizer, o texto é um texto, é um material que está ali…

DANIELA AMORIM – E isso é um olhar específico também. Você pode olhar pro Hamlet e dizer: aqui tem que ter uma montagem que…

ENRIQUE DIAZ – Exatamente, você faz a escolha de fazer um tipo de dialética x, que no caso foi de receber o texto como herança, então a gente fala do próprio eixo temporal na hora que faz as operações que a gente fez, sem desrespeitar ou ignorar o que estava ali na origem, mas supondo que a nossa função, ou a nossa única possibilidade seria essa, no nosso caso. Em termos de atuação a mesma coisa, aí falando mais de uma experiência pessoal, mais do que tentar categorizar ou escolher se isso é legal ou aquilo é legal, o trabalho que eu fiz nos últimos anos tem muito a ver com o ator como performer, e ao mesmo tempo ele articula elementos da compreensão do texto, do interior do texto como personagem, com uma leitura artística/estética hoje, então onde é que esse texto está inserido, e pessoal, enfim, uma operação bastante complexa que inclui o ator como pensador do que ele está fazendo. Então esse diálogo meu com eles e deles comigo é nesse âmbito, no âmbito de como atuar no sentido de como performar, o que é mais interessante, o que nos parece mais interessante na afirmação daquilo que está sendo feito, e como pensar a coisa toda. Na hora que vem um texto como esse que …

DANIELA AMORIM – Aí você está falando da peça?

ENRIQUE DIAZ – Do In On It.  Que foi trabalhado – assim o autor é diretor e é ator – que foi trabalhado em workshops… Ele mesmo fala: olha, esse texto ele propõe certas convenções, você pode fazer de outra maneira, mas o meu conselho é que tente seguir isso, porque isso é baseado em experiências com o público, durante muito tempo. Então tem uma herança de um trabalho de ator pensando, sentindo, percebendo a platéia, jogando com aquilo, em termos de codificação, nesse nível de codificação, as convenções dos três planos que tem na peça e tal.

DANIELA AMORIM – E da própria relação com a platéia, ele coloca ali: aberto, de frente, tem quarta parede, não tem…

ENRIQUE DIAZ – Exatamente. Nesse momento, aí o nosso foco realmente passa a ser uma atuação – ainda mais no tempo que a gente teve; não dizendo que se tivesse tido mais tempo seria diferente necessariamente, não estou dizendo isso -, mas, já é muita coisa… Então quando você fala de um ator que se adapta às demandas do texto, na minha experiência com esse texto, isso é muito legal, porque já é muita coisa, e eu acho que eles fazem um milagre, e que poucos atores fariam. Aí eu vejo as pessoas menos envolvidas com uma leitura mais contemporânea das artes cênicas, dizendo: “olha aí!” Inclusive eu vi pessoas da minha idade, que fazem cinema, por exemplo, falando: “olha, eu acompanho seu trabalho, mas parece que agora alguma coisa…” (faz um gesto de juntar as mãos). Então o que me parecia mais careta, pra algumas pessoas, acessou, chegou, e acessou de uma maneira complexa, sofisticada, e então eu acho bacana ver isso.

DANIELA AMORIM – É bacanérrimo, mas esse texto, especificamente, tem por dentro isso que você falou: ele é um texto contemporâneo, ele tem vários planos, ele é auto-referente. A leitura dele já é absolutamente complexa.

ENRIQUE DIAZ – Exatamente. Ele é constelacional…

DANIELA AMORIM – Fazer isso em seis semanas é realmente absurdo. Mas o que eu estou falando é da idéia do ator como uma enciclopédia, capaz de ler os clássicos, e da idéia de um texto que tem que ser atingido, ele existe lá em si, o ator é o cara que vai lá tentar fazer isso. Eu acho isso uma herança ruim, que de alguma forma é reducionista, que vê tanto a possibilidade de montar um texto como o ator só de um lugar.

ENRIQUE DIAZ – Eu acho sinceramente difícil de caracterizar isso porque, claro, a princípio eu estaria um pouco do seu lado, achando uma bobagem essa proposição de uma coisa utópica que se deve atingir e tal. Ao mesmo tempo, isso é a própria tradição, quer dizer, é tradição de montar os clássicos. Existe o caminho, existe o conhecimento que é supostamente de quem viu várias montagens e tem uma noção de até onde se foi. Uma coisa dentro disso é você fazer uma montagem inteiramente diferente disso com outro propósito, com outro caminho, e outra coisa é fazer uma montagem que não chega a ter outro propósito, mas é ruim, no sentido de não avançar nesse eixo aqui (da tradição). Então eu não posso ir contra essa discussão, porque nesse caso dessa montagem que não chega a lugar nenhum, nem é uma proposição, nem realmente é um Hamlet x, o que é esse Hamlet? É falar o texto? Hello, falar o texto não dá! Falar o texto só não dá, o texto é lindo e incrível, sempre vai ser bom ouvir aquele texto, mas se você comparar uma montagem com outra, com um ator chegando em algum lugar, como ator, só como ator, sem essa questão de elaboração de uma estética…

DANIELA AMORIM – Tentando atualizar já o texto, enfim, já uma discussão do que seria no caso do Hamlet

ENRIQUE DIAZ – É… Eu acho, por exemplo, nem sei é o caso agora de falar, mas eu acho o Hamlet do Wagner e do Aderbal, eu acho que ele tem vários méritos, acho que a maneira que ele faz, assim, é muito raro ver um ator fazer o que ele faz, sinceramente. Acho a montagem bacana também, só que se eu parar para falar sobre o Hamlet, vou falar, ah, está faltando coisa ali; pro que eu acho que é o Hamlet, está faltando coisa. Porque ele faz de uma maneira tão virtuosa, que parece que a performance dele é mais importante que do próprio vazio com que o Hamlet se depara. Ele não fala de morte, na verdade.

DANIELA AMORIM – Ele preenche absolutamente tudo.

ENRIQUE DIAZ – Ele preenche absolutamente tudo.

DANIELA AMORIM – Aí que eu queria chegar, porque você chegou num lugar que é a performance do ator que preenche absolutamente tudo, no sentido em que ele conseguiu alcançar aquele texto na totalidade, ele como ator chegou num lugar que ele conseguiu alcançar o que ele achava que é o Hamlet, ou de um diretor que chegou naquele lugar; politicamente eu acho confuso, porque…

ENRIQUE DIAZ – Mas aí você está supondo que este suposto lugar que é “chegou lá” é o lugar que preencheu tudo, e eu estou falando ao contrário, que o suposto lugar que “chegou lá” é o que não preencheu tudo e deixou claro, quer dizer, deu a ver – a tal expressão que as pessoas adoram na UniRio – deu a ver essa relação com esse vazio, senão você está falando de um ator virtuose.

DANIELA AMORIM – O que você está falando vai junto comigo no sentido de que esse lugar que não dá a ver – achar que realmente chegou e não estar lidando com o vazio – pra algumas pessoas isso é bem atuar, é preencher, é saber do que se está falando, é ter segurança, e é politicamente confuso, porque coloca, assim, que humano é esse que sabe…

ENRIQUE DIAZ – Aí você está falando já do detalhe, é um detalhe já, acho que sai daquele eixo da expectativa em relação à tradição, de que exista um personagem em algum lugar e que se vá em direção a ele, e você está falando de um outro lugar, que é o detalhe entre a leitura de uma pessoa que chegou, e se ele preencheu, ou se deu a ver, isso já é uma coisa muito detalhista, eu acho, não é a mesma discussão.

DANIELA AMORIM – Como assim? É a mesma discussão, pra mim é.

ENRIQUE DIAZ – Pra mim não. Você pode ter um crítico, qualquer que seja, de um gosto x, que trabalha nesse eixo desse personagem que supostamente existe por causa da tradição, por causa de montagens que foram feitas com um texto do Molière, sem mexer demais, e…

DANIELA AMORIM – Esse personagem não existe por causa da tradição. Esse personagem existe. Existe lá um texto.

ENRIQUE DIAZ – Não, eu estou falando por causa da tradição no sentido de que eu acho que a crença de que existam maneiras de fazer não tem só a ver com uma maneira de interpretar o texto como uma coisa que exista na realidade, que seja concreta e real. Eu estou supondo que seja como interpretar os grandes clássicos do piano ou os grandes clássicos da ópera. Existe uma tradição de várias montagens, que estabelece um lugar ali, que pode ser mais pra cá ou mais pra lá, que não tem a ver com um personagem real, tem a ver com uma cultura, um caminho que não permite uma ruptura total, como seriam as leituras contemporâneas, mas que estabelece: “Ah, o adágio foi bem executado…”. Mas é vivo, é vivo. Ainda acho que tenha espaço pra vida ali dentro. Existe um espaço pro cara fazer e tal, aí um crítico vai falar isso e aquilo, e um outro crítico vai falar outra coisa. Mas dentro de uma mesma tradição. Por oposição a uma outra coisa que é o contemporâneo, que é você se utilizar daquele material de outra maneira, com outro enfoque. Acho que entrar na discussão se aquilo chegou lá ou não, aí não cabe à gente.

DANIELA AMORIM – Mas de alguma maneira, a gente tem que lidar com essa crítica. E não é só a crítica, a crítica conduz o pensamento do leitor, conduz o senso comum. É grave, até a utilização de certos termos, ela categoriza coisas que não são a princípio, tão claramente categorizáveis assim, tem uma noção de teatralidade implícita numa crítica desse teor, que o público não sabe, e ele vai ler aquilo como: ah, é assim.

ENRIQUE DIAZ – Isso é o senso comum também, não é só a crítica. É o senso comum também, qualquer discurso, qualquer enunciado vai ser particular e até você revelar o quem tem ali, é…

DANIELA AMORIM – E aí eu tava pensando na crítica nas artes visuais, a gente tava falando do livro do Camillo (Luis Camillo Osório), Razões da Crítica. Ele fala da construção conjunta que é o crítico dialogar com a obra, se colocar ali em discussão, fora de um lugar de segurança; ele está tentando elaborar, tanto quanto um outro crítico pode falar, como o curador pode colocar aquela obra ou não dentro de um lugar de exposição e aí ele tem uma outra função que é também um discurso, que é agrupar, enfim, ao colocar na mesma sala ele está propondo alguma coisa… Aqui no Rio, especificamente, eu acho que a gente, em teatro, circula num âmbito muito mais fechado. Aí tem duas coisas, uma é crítica: eu vi que você coloca várias críticas no teu livro sobre o Hamlet, ou sobre…

ENRIQUE DIAZ – Sobre o Melodrama.

DANIELA AMORIM – Isso é ótimo porque quem vê, tem a condição de comparar um crítico com o outro, a gente tem na realidade poucos críticos, então você não pode que nem no cinema, comparar…

ENRIQUE DIAZ – E relativiza de cara. Você pode se apegar mais a um outro, mas… É muito legal, dá um problema pro leitor, né?

DANIELA AMORIM – É, passa o problema adiante um pouco, tira o lugar da verdade… E aí eu queria te perguntar também da relação com os curadores, porque você trabalha bastante fora, principalmente na França, existe uma parceria. Eu já ouvi algumas queixas do pessoal de dança, de que às vezes é uma relação difícil, que acontece um espelhamento: os curadores procuram ou reconhecem aquilo que o olho deles é capaz de reconhecer, quer dizer, num largo espectro entre o Brasil exótico e o contemporâneo muito contemporâneo, eles enxergam coisas parecidas com o que eles produzem, de alguma forma. Quer dizer, os dois pólos são estranhos, têm um pouco essa relação de uma cultura hegemônica com o resto do mundo. Você reconhece algo assim? Enfim, como é isso?

ENRIQUE DIAZ – Essa coisa da curadoria é uma situação bem complexa mesmo, bem complexa. Eu não vejo assim um ponto…

DANIELA AMORIM – Tem curadores e curadores…

ENRIQUE DIAZ – É. Tem curadores e curadores e tem isso, não existe um lugar ideal onde a pessoa possa olhar assim com um olho neutro. Como você falou: na hora em que um crítico que se coloca à disposição da discussão, tão vulnerável quanto ou de forma semelhante ao artista, ele está colocando a coisa como incompleta, ele está ajudando o diálogo, não está determinando nada. O curador é a mesma coisa, ele vai chegar com o aparato dele, e vai…

DANIELA AMORIM – Que é poderoso; de alguma forma existe uma relação de poder e de grana…

ENRIQUE DIAZ – É, existe! E vai dialogar com aquilo sendo mais generoso, mais aberto ou se colocando mais em questão, ou menos; aí vai depender do curador. E existe a coisa do circuito, que é o mais complicado, eu acho.

DANIELA AMORIM – Que é uma coisa que existe também nas artes visuais.

ENRIQUE DIAZ – Com certeza. O circuito, ele vai criando um cartel, vai criando um tipo de comportamento. Na França isso é mais nítido assim, porque os curadores na verdade chamam “os profissionais”, é verdade, “ah, hoje tem muitos profissionais”. É o termo normal, não é que o resto seja amador. Mas um profissional não é o público normal, o profissional é o diretor de um teatro… E eles se vigiam mutuamente, tem uns que têm um peso maior, então alguns ficam esperando o que tem peso maior dar opinião pra poder dar opinião, e vão concordar sempre… Tem uns que são na verdade uns coitados, cujo emprego está sob risco… É complicado. No caso da França, a estrutura de produção cultural está toda ligada a isso. Existe uma casta de profissionais que são quem determina, em nível x ou y, quem vai fazer o quê, e quando, e quanto dinheiro vai ter. Isso faz parte de um sistema onde tem bastante dinheiro pra arte, os teatros são bem equipados, as coisas são muito legais, uma tradição que é legal, por outro lado tem esse “perhaps” aí: pra você entrar nesse circuito, é como se você tivesse que satisfazer uma certa casta.

DANIELA AMORIM – Dentro disso, você consegue reconhecer o que seria uma idéia do “contemporâneo” pra eles?

ENRIQUE DIAZ – Para cada um vai ser uma coisa. Muitas vezes são pessoas muito bem preparadas, cultas, interessantes, que lidam com isso há anos. Se você comparar com o Brasil, por exemplo, com o gerente de departamento de marketing da empresa, ou o administrador do teatro, eles estão a anos-luz; são pessoas que você pode realmente conversar sobre mil experiências estéticas contemporâneas que eles vivem, vêem, chamam, convidam ou não convidam… Enfim, são pessoas que estão ali não à toa. Não quer dizer que eles são sempre incríveis, sempre geniais. Não estou dizendo isso. O problema é que o sistema cria essa casta, isso é o complicado. No circuito internacional já é diferente, porque aí a diversidade é maior, não é o país, a França, que se defende de tudo. Por exemplo, eu tive um encontro em Bruxelas com um cara de um festival alemão, que é a cada quatro ou cinco anos em uma cidade diferente. Ele é super poderoso, inclusive antes de ser diretor desse festival, ele era diretor de uma estrutura de financiamento. Um cara inteiramente boçal! Chegou dizendo “Adorei, quanto é? Quanto é?” E tal. Aí fui ver um espetáculo japonês, e ele estava do lado, e ele é alemão, e a peça falava da invasão do Iraque, de um cara super legal: Toshiki Okada. E o cara saiu falando no meu ouvido “Ah, os caras jogam uma bomba em Pearl Harbour, e ficam fazendo…”, como se ele não tivesse nascido na Alemanha e pudesse falar disso!  Quer dizer, um cara diretor de um festival enorme, não tem cabimento o cara falar pra mim, que sou artista, uma barbaridade dessas! Quer dizer, então, esse cara é um boçal pra mim. Tem outros incríveis, o Christophe do Kunsten (Christophe Slagmuylder, diretor artístico do Kunstenfestivaldesarts), por exemplo, foi ver a Gaivota aqui, o processo, ele foi lá, dialoguei, com ele… A peça depois estreou e ele me escreveu, falou “Ah, eu soube que deu uma encaretada no processo de estréia…”. Tinham várias pessoas de fora que vieram para a estréia aqui e tal… Aí eu dialoguei com ele e mudei a peça toda depois… Nessa conversa franca. E ele sempre falava “Olha, acredita no que você está fazendo”, assim, super bacana! A gente mudou bastante coisa antes de ir pra Bruxelas, a versão que ficou depois ficou bastante diferente, assim, diferente entre aspas… A gente deu uma quebrada, improvisou, depois de três meses de temporada. Então tem assim um diálogo super legal, ele é um cara mais aberto, que entrou no Kunsten um ano antes de eu ir. Então tem de tudo. E mais, só um exemplo que eu acho que é interessante, de polêmica: quando eu estava lá no Kunsten, eu fiz parte de uma residência, com vários artistas que estavam lá ou para discutir, ou para participar. Um deles é um cara da África do Sul, que eu vi agora no programa que está lá de novo esse ano, e que esteve dois anos antes, e que começava a peça, meio negada, meio clima favela em Joanesburgo, e tinha uma perseguição que ia para a platéia, e tinha um estupro de uma menina na platéia. Européia. Ali. No meio da platéia, assim. Começava uma coisa que era pra ser meio engraçada, quando via era uma coisa super violenta. Caralho! Interessante! Eu me senti ali meio da família dele, tipo aquela galera país em desenvolvimento… Aí foi indo a peça, a peça era ruim, ela tinha um princípio muito legal, mas a peça era ruim. E o cara foi fazer parte da residência, mas quase não ia, e teve um debate com ele e com o Christophe inclusive. E os atores da peça dele foram ver a Gaivota, e adoraram. Não entendiam nem português, nem alemão, nem francês (legendas usadas no festival) e porra, animados à beça, a galera, a galera, né?! E aí eu fui ver a peça deles, e quando eu encontrei com eles, comecei a falar sobre coisas da peça que eu achava que eram ruins assim, de atuação, de modelo de filme americano, modelo de clipe… E pro Christophe pouco importava. O legal era ele estar pondo aquele negócio ali pra aquela platéia ficar assim… Achando estranho, pode parecer ruim…  E é ruim mesmo… Mas e aí? É? E o diretor falava “Cara, se eu fizer alguma coisa um pouco mais ousada do que isso lá na minha cidade, eu não sobrevivo. Eu não tenho público, ninguém vê, ninguém quer ver. Isso aqui é o mais moderno que até hoje dá pra rolar”. E com certeza, ele teve um público bacana pra essa peça lá.

DANIELA AMORIM – O debate é interessante. Poder assistir o debate, junto com a peça.

ENRIQUE DIAZ – Exatamente, é… E é uma coisa complicadíssima… Mas eu como espectador, eu acho aquilo ruim. Eu não chamaria aquela coisa pra um festival. E o cara, ele “Não, vou continuar chamando esse cara”, porque, queira ou não, aí eu não conheço as intenções dele, não conversei com ele, é um cara da África do Sul conseguindo vir aqui, vendo coisas, sendo visto, isso provoca alguma coisa que vai se transformar. Então o pensamento de curadoria é muito mais interessante. É amplo. Agora, todos os curadores têm o cu na reta, de alguma forma. Eles podem deixar de ser curadores, eles podem num dia ter um poder enorme, e no outro dia, não ter poder nenhum. Então a programação deles, ela é avaliada pelo governo, pelos superiores deles, pela imprensa. Todos estão preocupados se deu matéria, se não deu, se as coisas foram bem faladas ou se não foram, se o nível de polêmica estava num ponto bacana para aquele festival, o festival é mais ousado ou mais tradicional? O festival é voltado pro grande público daquela cidade, é voltado pra aquele país ou não, ou é um festival com uma tendência mais cosmopolita? Aí depende da imagem que o festival quer ter e… Mas eles têm o cu na reta. Eles não são eternos. É um jogo complicado. Nesse sentido o ponto de vista dele não é só dele, é dos superiores dele, da imprensa da cidade dele, do país dele, da tradição daquele lugar. Não é tão simples assim.

Teve uma vez que eu estava jantando com a diretora do festival de outono, de Paris, eu e a Mariana, e aí a gente estava falando sobre essa abertura que a França tem, a França convida muito, tem muito essa curiosidade com outros países, e também essa coisa da francofonia, de tentar vender o peixe da francofonia pros outros países, então é uma coisa que parece muito interessante. Eu ficava na dúvida, pela personalidade que os franceses têm, se eles faziam esse movimento todo, mas se eles realmente assimilavam. Ou se eles meio que compravam as coisas para serem mostradas, e ficavam ali, chiquérrimos, e então tem uma peça do Senegal, uma peça do Brasil, uma peça não sei de quem… Aí eu falei pra ela: “E como é depois? Isso é assimilado mesmo e tal…?”. Aí ela achou que eu estava insinuando sobre o meu trabalho; quer dizer, eu estava lá e se no ano que vem eu ia ser convidado de novo, entendeu? Como é depois? “Ah, não, depois a gente vai ver e tal…”. Sabe assim? É muito louco!

DANIELA AMORIM – É que tem muita grana no meio, tem uma relação de ….

ENRIQUE DIAZ – É uma selva. É uma selva do mesmo jeito. É uma negociação ferrenha. É política mesmo. É compra, dinheiro, quem paga aquilo, dou esse crédito, não dou…

DANIELA AMORIM – Enquanto você falava, fiquei pensando aqui sobre os atores. Você fez um vídeo agora que passou no Sesc de um trabalho que teve atores de várias nacionalidades?

ENRIQUE DIAZ – Da École des Maîtres.

DANIELA AMORIM – Fiquei pensando se você poderia falar alguma coisa da diferença, se existe uma grande diferença no ator brasileiro… Quer dizer, não sei se eu agora estou querendo forçar “O Brasileiro”, mas tem uma diferença em relação à formação, na relação com a técnica, ou não?

ENRIQUE DIAZ – Não, acho que não tem “O Brasileiro” não. Mas essas diferenças eram bem nítidas sim.  Lá nesse projeto, especificamente, as nacionalidades eram uma questão… O mais curioso é que a gente trabalhou Suzuki, Viewpoints, Clarice Lispector, especialmente os Viewpoints, como uma maneira de criar um campo comum, pra todos ali, em línguas diferentes, mas todos fazendo a mesma coisa. A coisa começou a progredir quando a gente propôs esse exercício imbecil, que era re-endossar as nacionalidades. Então o grupo de belgas se juntou, o grupo de italianos se juntou, o de portugueses, e os franceses, e eles tinham que fazer coisas ali bem características, sem medo do clichê. E aí foi uma delícia, porque a coisa veio super forte, com autocrítica, com ironia… Cada um com uma característica superforte, e a partir daí a gente começou a ser menos Viewpoints e tal, botando pra dentro aquilo ali, a humanidade… E aí, no grupo dos franceses, tinha um suíço que mora na França, supertécnico, ator francês que sabe falar, e fazer pequeno, com charme e tal. Não tem essa coisa do Brasil assim meio pra fora, esporrenta…

DANIELA AMORIM – Sujo?

ENRIQUE DIAZ – É tem isso, mas… A gente lá, eu, Daniela Fortes, Cristina Moura, e Mariana Lima já era uma mostra de uma gama absurda. A Cristina em cena é superminimal, supersutil, superforte, e violenta, e nada a ver com o ator brasileiro que seria assim, exagerado, aos olhos do francês. Só que a Mariana, por exemplo, tinha um descaramento de mudar de tom, de desafiar o status quo da prória cena, da própria improvisação, que os atores em geral não têm.

Por exemplo, tenho um amigo búlgaro que trabalha, dirige peças na Comédie Française, que está aqui no Brasil agora. Ele falou que muitas vezes dá workshops em que os atores ficam anotando tudo, como se aquilo fosse uma coisa a ser só introjetada, como se fossem ensinamentos. O nível de experiência que a pessoa se propõe a ter com a coisa em si, pra ver como antropofagizar aquilo, é mínimo.

DANIELA AMORIM – Você acha que aqui é mais fácil que isso aconteça?

ENRIQUE DIAZ – Eu acho. Eu acho sim, eu acho.

DANIELA AMORIM – Em relação às oficinas que você dá aqui?

ENRIQUE DIAZ – Aí é… Lá eram cada quatro atores escolhidos por um teatro, entre não sei quantos… A seleção é bem mais complexa do que seria aqui, no Rio. Aqui a gente faz uma seleção x e que é legal, mas é diferente, né?

Mas o que eu tava falando? Ah, é que fazendo o caminho contrário, não como ator, mas como diretor ali – não sendo o único, mas já o caminho -, eu senti que eu representava, de alguma maneira, uma mudança na própria tradição do projeto. Que tinha como eixo, tanto que chama Escola de Mestres, eu era chamado de mestre pela direção… Chegou uma hora que era brincadeira, mas… A tradição era aprender com os grandes mestres… Então lá teve Grotowski, teve Vassiliev, teve Mathias Langhoff, teve Dario Fo, de tudo… E a tendência dos últimos anos, que teve Rodrigo Garcia, era cada vez mais… E aí, eu e Rodrigo Garcia talvez mais, a gente tenha dado um tom de os atores jovens, em vez de eles estarem ali para aprender com um grande mestre como se faz, de estarem ali para entender o que eles querem fazer, o que é inteiramente diferente. E o cara que é diretor do projeto e tem oitenta e tantos anos, ele estava animado, ele estava percebendo que o que os atores jovens hoje em dia precisam é desse questionamento. A prática é feita para eles perceberem que a vida deles já é coisa, já é tema, já é objeto, e não que existe em algum lugar um conhecimento que será passado pra eles por um grande mestre. Inclusive, lambendo meu próprio ego, a minha própria experiência, a assessora direta, da secretaria geral do projeto, falou que sempre dá problema ou com o mestre, ou com os alunos, ou com os teatros. Dessa vez não deu problema com ninguém. Os atores tiveram uma sinergia, um movimento de se reconhecer, de gostar de trabalhar juntos super legal, porque os espaços estavam inteiramente abertos pra eles. Teve gente que foi expulsa. Teve gente que fez agora e que tinha sido tirada por um diretor italiano, que é ator também, e que falou que não queria mulheres, queria mais homens, e aí as mulheres ficaram jogadas lá. Num projeto que é pago pelo governo. E aí ela perguntou se mesmo não batalhando pelo personagem, se podia trazer coisas, e aí o mestre foi reclamar com a direção. E tiveram que tirar a menina, porque não tinha como ela trabalhar com aquele cara. E ela voltou, porque eu a conheci no festival, e ela ficou afim de ver como era o trabalho. Mas a tradição é essa. É inteiramente diferente do mundo hoje, da idéia colaboração.

DANIELA AMORIM – E de performance também.

ENRIQUE DIAZ – De performance, da experiência pessoal, teve muita coisa na rua com vídeo…

DANIELA AMORIM – Eu vi o vídeo, muito legal. Tem umas perguntas que eu queria fazer pra acabar. Tem algum espetáculo, assim, espetáculo-referência, que tenha mudado a sua percepção do que o teatro pode fazer, que você não tenha conseguido falar muito quando saiu do teatro… Tem algum que você lembre? Lá atrás, na adolescência, sei lá?

ENRIQUE DIAZ – Eu sempre esqueço. Sempre que fazem perguntas desse tipo, eu tenho dificuldade… Eu tenho preferência por esse mundo composto de uma maneira em que o mistério esteja presente… A poesia e o mistério, no sentido em que a articulação dos elementos da cena produza movimento em mim, mas não complete. Por isso um pouco o In On It, como texto básico, com dois atores, simples de fazer, me deixou com vontade como poucas peças. Porque tem uma coisa que não fecha, que rebate. O Alain Platel, tem essa sensação também, o C. de la B, o caos, mas é um caos que é feito de um jeito que eu continuo vendo; tem essa coisa contemporânea, bem dança contemporânea, que eu acho que ele representa de uma maneira muito legal, essa coisa suja e caótica, mas ela está pensada de um jeito, é trabalhada, tem uma energia animal de certa maneira. O último que eu vi era Vespers, baseado numa ópera do Monteverdi, que era muito a coisa da histeria, do Charcot, das virgens. E o Alain Platel trabalhava com coisas motoras, ele não era coreógrafo, trabalhava com reabilitação motora. Aí todo esse estudo médico, estetizado, de histeria, tinha no trabalho, e era muito louco, neguinho meio hiperativo, e coisas aconteciam aqui e ali… E até foi um espetáculo que foi mal falado na Europa, eu vi já numa remontagem, mas que me deixa assim, num estado assim de “Que loucura!” Ao mesmo tempo, “que interessante!”

Do Apocalipse (Apocalipse 11.1, do Teatro da Vertigem) eu tenho uma lembrança muito forte também, porque juntava de um jeito muito legal a coisa do site specific, do espaço, da arquitetura, uma pesquisa longa. E juntava a coisa de vir da rua… E a ancestralidade da Bíblia, bem mais do que o (O livro de Jó, da mesma companhia), que era muito sofisticado também, mas o Apocalipse já liberava uma coisa de humor, que eu acho mais libertadora, do que aquela coisa meio religiosa culpada… Eu acho forte.

DANIELA AMORIM – Tem algum mais antigo? É porque eu acho – não que isso tenha que ser cultivado -, mas tem alguma coisa lá atrás que dá um start, opera uma mudança de forma diferente, quando o olhar é mais virgem, mais desprovido de linguagem muito elaborada, de articulação pra responder a alguma coisa racionalmente…

ENRIQUE DIAZ – Eu lembro, quando eu estava fazendo A Bau A Qu, da Pina Baush. Que super influenciou várias coisas, objetivamente, eu propus vários jogos no ensaio. E eu estava ensaiando, saí do ensaio, peguei o avião, fui direto pro teatro, saí do teatro, fui jantar, fui pra rodoviária, peguei o ônibus. Em 89, 90, há quase vinte anos. E era uma referência super forte. A Pina Baush é a referência mais importante de todas no século vinte, pra mim.

DANIELA AMORIM – Você citou vários de dança.

ENRIQUE DIAZ – É porque a dança, quando é legal nesse sentido, do meu gosto, ela tem muito dessa coisa do mistério. Quando ela é “dança dança”, eu tendo a não gostar muito, não é o meu métier, “como é o movimento?”, eu não localizo tanto, é pessoal. Mas nesse sentido da teatralidade incompleta, como narrativa, eu gosto. Teatro…  É, essa coisa da Vertigem…

DANIELA AMORIM – Você até me falou de um espetáculo do Rosas, que eu fiquei com ele na cabeça… Que tinha uma luz, uma parede.

ENRIQUE DIAZ – Escandaloso! Era um solo da Anne Teresa de Keersmaeker, num espaço absurdo! Era um solo, e tinha a participação de um cara uma hora. Era um trabalho dela com uma outra mulher, de instalação com fumaça. Era um espaço absurdo, uma sala grande construída recentemente no Rosas, na escola, em Bruxelas… Uma sala monstruosa, e era um ensaio aberto, o que era mais legal ainda. Então ela estava ali, a gente meio parado ali, tinha pouca gente… E aí cara, é uma loucura, ela vai e bota o som, e tem uma hora que some tudo, e tem uma fumacinha, e um feixe de luz que cruza assim aquele espaço de 40 metros! E ela fica dançando, aparecendo, e o cara lá atrás, e fica um jogo de um pra lá e o outro pra cá… Lindo. E tem uma hora que fica uma voz de uma menina falando a Declaração de Direitos do Homem. Outra hora tem uma massa de fumaça, uma fumaça épica, ocupando, ocupando, ocupando aquela sala toda! E ela dançando… E outra hora, abrem eletricamente várias janelas, e você começa a ver toda a cidade, o pôr-do-sol, a relação do ar, o dentro e fora, a voz daquela menina, uma loucura, uma loucura… Aí, no final, fui falar com ela, achei ela sebosíssima…! Mas foi incrível.

DANIELA AMORIM – Aí voltando pra peça In On It, eu fiquei pensando sobre o que o personagem fala de criar o texto para inventar algum sentido… Também no seu primeiro texto, na introdução do livro da Cia. dos Atores, você fala sobre isso. Eu quero te perguntar se você enxerga a arte assim, se é um passatempo, e é também dar sentido; eu queria saber o que te move pra sair da cama e ir pro ensaio, qual é esse lugar…

ENRIQUE DIAZ – Chamar a atenção! Chamar a atenção e ser amado!… É, eu não sei… Como eu falei, eu gosto muito da idéia de poesia, de arte como poesia no sentido de uma articulação de elementos que não esgote o tema. No sentido de apontar para uma coisa, isso aqui é isso aqui, que é o poema…

DANIELA AMORIM – E que tem uma estrutura.

ENRIQUE DIAZ – Que tenha uma estrutura, tenha uma articulação e que fique em aberto em algum nível. Então essa sensação de mistério, eu gosto sempre. Então me parece que a idéia de passatempo fica em: vamos ficar dando formas, vamos produzindo sentidos, que são sentidos transitórios, mas que a nossa própria prática de ir produzindo sentidos já nos dá sangue correndo nas veias, dá à vida algum sentido. É claro, praticar isso inclui articular milhares de elementos da nossa percepção, da nossa observação, do nosso passado, dos nossos fantasmas, das nossas memórias, então não tem nada de absoluto em lugar nenhum aí. Mas tem um processamento contínuo do nosso conhecimento no nível estético. Então é cor, é espaço, é volume, é ritmo, é qual é a historinha, é tudo isso junto sendo articulado de uma maneira inteligente, musical… E muitas vezes, tem uma ênfase que eu me dou no trabalho, não deixando a idéia de absoluto chegar em lugar nenhum. Então se você constrói uma coisa, se você afirma, alguma hora você dá uma rasteira, você nega, você faz o público renovar o sentido. A idéia de afirmar alguma coisa e a coisa ser simplesmente afirmada, eu não gosto. Eu gosto da experiência de trânsito. Toda vez que você se move, você tem que se deslocar, e isso a peça tem de uma maneira muito esperta, o In On It, você é obrigado a se locomover como espectador, e isso ele fala no próprio texto dele, não sei se você se lembra, isso obriga a pessoa a mudar o seu ponto de vista a cada hora, reajustar a própria lente. O espectador tem que fazer isso nessa peça, ou ele não vê a peça. Eu acho isso um exercício muito legal. Porque a idéia de passar o conhecimento eu detesto. Sabe, “eu tenho o conhecimento, eu passo o conhecimento”, eu acho horrível. A idéia de provocar uma experiência – é claro, consequente -, eu acho mais interessante.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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