Morte e vida das hipóteses. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.*

Crítica da peça VemVai – O Caminho dos mortos, da Cia Livre de Teatro

15 de março de 2008 Críticas
Atrizes: Raquel Anastácia e Lúcia Romano. Foto: divulgação.

Uma das características da arte contemporânea é a proposição de um certo embaçamento das fronteiras presentes no estatuto tradicional da experiência de arte, a separação entre a obra e seu comentário. Em outras palavras, este embaçamento significa que o que nos é dado a ver, por um lado faz a afirmação do que vemos, e por outro lado, comenta o que estamos vendo. A sensação do fruidor no meu entendimento é a de uma atividade que transita entre a ilusão, a crença na representação e o seu questionamento. Na linguagem teatral este fenômeno se traduz no teatro narrativo, uma estrutura ficcionalizante que atua no espectador criando espaços internos de atenção para novos sentidos entre o real e o ficcional. Creio que o espetáculo VemVai – o caminho dos mortos é elaborado sob este regime duplo que compõe a dramaturgia, o espaço, a cena e a construção atorial. A questão que se coloca para esta análise tentará se deparar com esta relação.

VemVai, dirigido por Cibele Forjaz é o resultado da pesquisa, incentivada pela Lei de Fomento da Cidade de São Paulo, que a Cia Livre desenvolveu orientada pelo antropólogo Pedro Cesarino, a respeito dos mitos de morte e renascimento dos povos ameríndios. A dramaturgia de Newton Moreno foi construída pelo processo colaborativo do trabalho em grupo. A escolha do tema está ligada à trajetória da Cia Livre que mergulhou na história recente de nosso teatro quando ocupou, por algum tempo, o espaço do antigo Teatro de Arena em São Paulo. E se essa experiência revelou ao grupo que “para estarmos presentes no aqui-agora, temos que remontar nossos clássicos”, o resultado ultrapassou o lugar-comum de mostrar a história dos vencidos. A encenação canibaliza, pelo princípio ficcionalizante, nossos modos convencionais de lidar com as diferenças culturais. A narrativa performatizada da morte tensiona a relação do indivíduo com seus duplos para além de nossa perspectiva habitual e quebra o nosso olhar sobre a cultura indígena.

O espetáculo está dividido, por assim dizer, em cinco movimentos (estações) pelas quais o espectador transita: A Morte simbólica; O Canibalismo guerreiro; O Canibalismo funerário; Vem Vai O Caminho-morte; O Canibalismo celeste. O movimento sugerido no título e que a platéia também experimenta, não se limita a fazer o espectador transitar entre espaços. O percurso é elemento contextualizado que propõe uma apreensão elíptica da encenação. O movimento do público é estrutura visível do estado de atenção interna para as cenas construídas por desdobramentos.

Se o canibalismo consiste no ato de consumir uma parte, várias partes ou a totalidade de um indivíduo da mesma espécie, o canibalismo cênico de VemVai deglute acontecimentos e objetos presentes no cotidiano urbano e os devolve em meio às narrativas míticas. Esse procedimento, por exemplo, parece bem trabalhado na terceira estação, com o fogão, a churrasqueira e, principalmente, com a atriz segurando as víceras do filho morto, que claramente são lingüiças. Quando a iguaria é oferecida ao espectador, a operação de transposição temporal imediata se completa. Do terreno simbólico saltamos bem humorados para o nosso “aqui-agora”. Quando o ator diz a moral da história, na qual é perigoso guardar pente na palha da maloca por que vira escorpião, toda espécie de conteúdo moralizante já foi esfacelado pela pressão exercida pelos conteúdos ficcionais.

Esses contrapontos temporais estão materializados na cena (cenografia, direção de arte) pela movimentação caleidoscópia, pelas portas-umbrais, pelo espaço que possibilita ao público duplicar-se também. Porém, as possibilidades de sentidos se restringem quando algumas investidas tentam fazer analogias diretas como, por exemplo, a camisa do Brasil e o pagamento da consulta ao pai-de-santo em cartão de crédito. A meu ver, as elipses se realizam mais plenamente em elementos como a mistura da nudez do ator com as asas de palha, nas saias derviches do segundo movimento, no fantástico tamanduá-morte e na textura dos tecidos de tear em contraponto com a presença suave, e ao mesmo tempo constante dos tecidos sintéticos das roupas de baixo utilizadas pelas atrizes.

Contrariamente à idéia de canibalizar as formas tradicionais, a interpretação dos atores tem um registro mais aproximado do teatro de representação quando eles se ocupam da fábula. Esse registro, do modo como é realizado, ou seja, sem contrapontos sutis de distanciamento, parece mais nos colar aos modos convencionas de recepção. O resultado é o aparecimento de personagens e a conhecida idéia de representação teatral. As transposições temporais ficam prejudicadas e nestes momentos o espetáculo se mostra longo. Sentimos uma espécie de peso da contação de uma história, da repetição, e para o bem ou para o mal, o tempo real do espetáculo se impõe.  Salvo, eu diria, a narração da atriz na primeira cena no país dos mortos, favorecida pela tradução in loco de outro idioma. Esta operação revela de modo lúdico um componente importante do espetáculo que é a apropriação. Quando se traduz um texto, por exemplo, está implícito um trabalho de apropriação dos termos, da linguagem e das idéias, e não uma passagem literal.

Quando os atores realizam uma suspensão na cena propondo um distanciamento que quebra a ilusão da sala escura, como na cena inicial, isto é feito numa medida tão literal que beira a ingenuidade. A suspensão teatral pretendida é mais eficaz nos espaços simbólicos produzidos pela performance, quando desdobra diferentes níveis narrativos e deixa transparecer silêncios.

A pergunta a respeito da morte é esfacelada e retomada na forma de várias dobras de um tecido e não por uma narrativa com encadeamento causal. Como diz Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropofágico, provavelmente uma das inspirações do espetáculo, “nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós”. Mas a encenação parece superar vestígios de volta ao passado, e confronta o dito oswaldiano nos instigando ao pensamento canibal, que não se vincula à obediência a formas. O espetáculo VemVai nos desobriga de algumas tradições impostas ao próprio exercício da linguagem teatral.

* Frase do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928).

Vol. I, nº 1, março de 2008

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