Rainhas ao quadrado

Crítica das peças Rainha[(s)] e Maria Stuart

20 de abril de 2009 Críticas

Mary Stuart, clássico de Schiller, é encenada em São Paulo e no Rio, mostrando como anda a produção teatral das duas cidades.

De tempos em tempos, o público tem a sorte de ter em cartaz simultaneamente duas versões da mesma peça. Aconteceu recentemente com Ricardo III, de Shakespeare, quando Jô Soares dirigiu Marco Ricca e Roberto Lage dirigiu Celso Frateschi ao mesmo tempo na cidade de São Paulo. Com duas montagens em cartaz do mesmo texto, as opções de cada uma ficam bem mais evidentes, revelando não só o quanto o teatro é uma arte de infinitas possibilidades, mas principalmente como a arte é feita de várias escolhas que – esperamos – se traduzem no palco como uma realidade inventada. Obviamente, ao relevar alguns aspectos do texto e ignorar outros, ao escolher uma tradução ou realizar cortes no texto original, um diretor e sua equipe direcionam também a maneira pela qual o público vai usufruir daquela obra.

Desta vez, é o clássico Mary Stuart, escrito em 1800 pelo alemão Friedrich Schiller, que ofereceu suporte para encenações bem diferentes – uma no Rio de Janeiro e outra em São Paulo.

Em Mary Stuart, Schiller cria um encontro fictício entre duas personagens históricas do século XVI: a Mary do título, presa sob acusação de conspiração, e sua prima Elizabeth, Rainha da Inglaterra. A história mostra, através da disputa das duas pelo trono, um embate sobre grandes temas da humanidade, como amor, fidelidade, poder e liberdade. Se, por um lado, abordar com maestria temas pertinentes até hoje é o que faz desse texto um clássico, por outro exige que saibamos traçar a ponte que liga essa história de quatro séculos atrás com o mundo de hoje.

Recentemente em São Paulo, Cibele Forjaz dirigiu Georgette Fadel e Isabel Teixeira no espetáculo Rainhas – Duas atrizes em busca de um coração. As três, trabalhando juntas, extraíram do texto o duelo entre as duas personagens principais e amplificaram esse duelo para o jogo entre duas atrizes que dividem o palco numa peça. Cibele, que já vem desenvolvendo uma pesquisa de direção teatral bastante autoral na sua Cia. Livre, não teve nenhum pudor em desmontar o texto, e mergulhou com suas atrizes numa busca pelos sentidos e provocações que ainda pode suscitar. Estão lá os mesmos medos, ódios, apegos, fragilidades e carências que Schiller soube alinhavar tão bem, com uma encenação que remete às reflexões mais atuais da cena teatral: a confusão proposital da linha que divide ator e personagem, a fragmentação da narrativa, a dramaturgia colaborativa, o espaço não-convencional. A dramaturgia a seis mãos traduz-se em cena num embate vigoroso entre duas atrizes das mais representativas de sua geração. Reside aí, inclusive, uma certa dose de autoironia, na medida em que se diluem os limites entre atrizes e rainhas. E foi justamente neste aspecto que o espetáculo correu o risco de se tornar autorreferente demais para duas atrizes tão jovens. Mas, se a dimensão do risco a que um artista se propõe é o que determina o tamanho do brilho que ambiciona, podemos constatar, pelas críticas e pela carreira que o espetáculo vem cumprindo, que as atrizes foram coroadas rainhas, especialmente Isabel, que teve a ideia original para o projeto e acaba de ganhar com ele o prêmio Shell de melhor atriz.

Mary Stuart, a outra versão, está em cartaz no CCBB do Rio de Janeiro com direção de Antônio Gilberto e traz Julia Lemmertz e Clarice Niskier encabeçando um elenco de quinze atores. Quem quiser conhecer o texto de Schiller, com certeza deve optar por essa versão, pois a encenação teve o mérito de colocar o texto em primeiro plano, numa bela tradução de Manuel Bandeira. A produção organiza-se num formato que é bastante usual no teatro carioca, onde atores consagrados nos palcos e na televisão protagonizam grandes elencos, reunidos entre participações especiais de veteranos dos palcos e atores que estão mais evidentes na temporada teatral. Mas, apesar do talento das atrizes principais e do elenco de modo geral, algo tende a sufocar a potência do espetáculo, talvez por um excesso de reverência ao fato de se trabalhar com um texto clássico. Não que não se possa fazer uma encenação respeitando o texto do autor, e tampouco acho que a desconstrução do texto é a única maneira de dar vida a uma obra, mas assistindo ao espetáculo me veio à mente a também clássica pergunta: para que montar essa peça hoje? Qual a importância para nós, brasileiros de 2009, da disputa pelo trono entre uma rainha protestante e uma católica na Europa do século XVI, a não ser que essa disputa se transforme num espelho onde cada um de nós possa refletir suas próprias ambições e vaidades? Da mesma maneira que Schiller quis reavivar a tragédia em seu tempo, repensando a partir de sua época os dilemas entre a moral e a liberdade, como esse embate pode ser traduzido para o público de hoje, mesmo que para isso se opte por utilizar seu texto quase na íntegra?

Parodiando a história das duas rainhas da peça que só se encontraram no texto de Schiller, as duas produções estiveram no Festival de Curitiba deste ano. Mas, diferente da peça, não devem ter se encontrado, pois as apresentações ocorreram em datas diferentes.

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