Teatro Oficina: um espaço metonímico

Estudo sobre o espaço do Teatro Oficina

10 de junho de 2008 Estudos

“No espaço que funciona metonimicamente, um caminho percorrido pelo ator representa, sobretudo, uma referência ao espaço da situação teatral; como parte pelo todo, refere-se ao espaço real do palco e, a fortiori, do teatro e do espaço circundante como um todo”[1]

No capítulo designado ao estudo do espaço dramático e pós-dramático, do livro Teatro Pós-dramático de Hans-Thies Lehmann, é criado um contraponto entre ambas as noções a partir do princípio espacial que foi se configurando após a crise do drama. Para Lehmann o espaço dramático se constitui numa condição espacial mediana entre o intimismo e a imensidão. Essas seriam umas das prioridades para a realização do espelhamento, tão caro ao drama, que se estabelece na relação entre o palco e o espectador por meio da identificação do que vê com o que está sendo visto. Então, uma das condições necessárias para que o drama ocorra acaba por ser uma demanda espacial em que, além de mediana, deve ser isolada, independente e com uma identidade própria do que está sendo apresentado em relação ao mundo daquele que assiste. Somente com essa isolação entre palco e platéia bem definida que esse processo de identificação ocorre, pois assim a separação espacial entre a emissão e a recepção acontece de fato e propicia o espelhamento. Pensando na interferência que a aproximação e o distanciamento do espectador da cena tem para a recepção teatral, Lehmann afirma que:

“Quando o afastamento entre atores e espectadores é reduzido de tal maneira que a proximidade física e fisiológica (respiração, suor, tosse, movimento muscular, espasmos, olhar) se sobrepõe à significação mental, surge um espaço de intensa dinâmica centrípeta em que o teatro se torna um movimento das energias co-vivenciadas, e não mais dos signos transmitidos… Já o espaço de grandes proporções representa uma ameaça para o teatro dramático por seu efeito centrífugo”[2].

No Teatro Oficina a proximidade e o distanciamento do espectador são possíveis e simultâneos durante o espetáculo. No entanto, o que parece predominar é a dinâmica centrípeta, ao qual Lehmann se refere, uma vez que a aproximação do fato cênico é extrapolada na medida em que o espectador participa da cena, ou seja, é trazido para o “centro”. A cena produzida pelo grupo Usina Uzona só parece fazer sentido quando parte dos espectadores são vistos pela outra parte de espectadores que assiste. Ao assistir aos espetáculos do grupo é possível arriscar a impressão de uma pretensão de que não haja mais espectadores e somente espectadores/atuantes, fazendo da cena um momento de energias co-vivenciadas e não mais dos signos transmitidos. O autor diz que: “Em todas as formas espaciais para além do palco de ficção dramático, o espectador se torna em alguma medida ativo, converte-se voluntariamente em co-ator”[3]. Uma das características do Teatro Oficina que o torna pós-dramático é justamente o fato de ele fragilizar as “certezas das linhas divisórias” que Lehmann acredita serem imprescindíveis para o drama. A partir das encenações de José Celso Martinez Corrêa, conjugadas com o espaço arquitetado por Lina Bo Bardi, não existem linhas divisórias estabelecidas nos espetáculos. Apesar de haver arquibancadas que delimitem o espaço do espectador como o lugar daquele que assisti, ainda assim esse espaço é problematizado na medida em que ele é freqüentado pelos atores e o espaço dos atores é freqüentado pelos espectadores.

Essa energia co-vivenciada do espaço provocada pelo rompimento da separação entre palco e platéia, no caso do Teatro Oficina, parece ser propiciada pela arquitetura de Lina Bo em que o corredor similar a uma passarela de sambódromo é o lugar em que predominantemente acontecem as cenas. Esse espaço se assemelha à estrutura de uma rua, lugar público e transeunte. Essa “passarela carnavalesca” propicia uma das características mais recorrentes nas encenações de Zé Celso de inclusão do espectador na cena. Isso parece ocorrer em virtude da proximidade que o público tem com o espetáculo, mas também pelo fato da configuração espacial remeter à uma grande festa popular, que é o carnaval. A “passarela” também é uma característica arquitetônica que possibilita a des-hierarquização espacial, pois se assemelha a um lugar público, logo, de todos. Nos espetáculos do grupo o espectador é convidado pelos atores e instigado pelo espaço para ser um transeunte, dentro e fora de cena, tal qual se estivesse na rua, em uma praça pública ou de carnaval, ou num campo de feira. Foi esse espaço cênico que propiciou ao Zé Celso a legitimação do seu conceito Te-ato que, segundo Armando Silva, em Oficina: do Teatro ao Te-ato, seria “(…) a informação proveniente do testemunho de um corpo em contato com outros corpos, na medida em que todos se dispõem a um contato vivo e criativo”[4]. Lina Bo cria uma arquitetura cênica que considera o espectador inserido no acontecimento teatral, descartando a recepção somente como contemplação.

Lehmann ao utilizar o espetáculo 1789, do Théâtre du Soleil, como exemplo de um trabalho que nega uma estruturação cênica ilusionística (fundamento básico da configuração da cena dramática) afirma:

“Os estrados cênicos interligados por pranchas e as massas de espectadores aglomerando-se e dispersando-se por entre eles conferem ao teatro uma atmosfera semelhante à do circo, mas ao mesmo tempo o tornam o equivalente espacial-cênico das ruas e praças da Paris revolucionária”[5].

A franqueza da praça pública parece estar impressa no espaço do Teatro Oficina por intermédio não só da configuração da platéia, mas da parede de vidro e das estruturas à mostra impossibilitando uma encenação ilusionística. A passarela estreita entre as arquibancadas coloca o espectador próximo do acontecimento cênico (ora de frente para os outros espectadores e ora de frente para uma parede de vidro) e solto para circular pelo espaço, imprimindo inclusive a liberdade que o espectador tem em escolher os seus pontos de vista. No livro Lina Bo Bardi: Teatro Oficina – 1980-1984, Zé Celso revela que o desejo maior com a construção desse espaço cênico era “(…) tirar os muros que separam teatro da luz do mundo e a sala de espetáculos dos bastidores”[6]. Essa frase imprime o desejo do diretor de estar sempre em contato com a “praça pública”, mesmo dentro de um espaço fechado. O entendimento do ato teatral como produtor de efeito ilusório estava fragilizado para a geração de artistas da década de 1970.  

Segundo Lehmann: “Tal apagamento das fronteiras entre a vivência real e a fictícia tem amplas conseqüências para a compreensão do espaço teatral, já que ele deixa de ser um espaço metafórico-simbólico e se torna um espaço metonímico”[7]. Metonímico é o espaço que não tem compromisso em representar uma realidade, mas em ser essa realidade. A realidade se materializa espacialmente na medida em que esse espaço não se nega ou se disfarça, mas se assume, tornado-se dramaturgia cênica. Em um espaço metonímico o espectador torna-se ativo, mas em um lugar em que o objetivo não é ser um aparato simbólico para um mundo fictício, e sim ser ocupado como extensão do espaço real do teatro e do mundo em que esse espectador vive. No Teatro Oficina a parede de vidro, que fica de frente para uma parte das arquibancadas, revela o viaduto do Minhocão. Com isso, a arquiteta Lina Bo Bardi provoca no espectador a capacidade de estar fora do espaço ainda que estando dentro. Então, o espaço do Teatro Oficina difere-se de um espaço dramático que é caracteristicamente metafórico por simbolizar um mundo isolado como totalidade.

O espectador do Usina Uzona está sempre em conexão com a rua mesmo que esteja numa estrutura espacial fixa. Armando Silva cita em seu texto uma frase de Zé Celso, retirada de um periódico, em que ele se refere ao espaço teatral como “rua, local sem nenhuma estrutura teatral fixa”[8]. No Teatro Oficina Zé Celso consegue, por meio dessas características arquitetônicas, deslocar o espectador do Teatro, recuperando o espaço mais caro ao diretor que é a “praça pública”. A parede de vidro permite ao espectador assistir ao espetáculo sempre em conjunção com o que está do lado de fora do edifício teatral, que é real. Como diz Lehmann:

“Já no teatro pós-dramático o espaço se torna uma parte do mundo, decerto enfatizada, mas pensada como algo que permanece no continuum do real: um recorte delimitado no tempo e no espaço, mas ao mesmo tempo continuação e por isso fragmento da realidade da vida”[9].

No Teatro Oficina, por conta dessa característica metonímica, há um prolongamento do espaço e conseqüentemente da cena. O que está sendo assistido está sempre numa constante relação com a cidade, com o entorno do edifício teatral. O teatro e a realidade tornam-se elementos complementares em que o espectador não precisa ser iludido para acreditar que o que está sendo visto é real, pois o real não se deixa disfarçar, “comentando” a cena. A ficção nunca foi tão realista como tem sido no teatro pós-dramático. Zé Celso diz que o princípio da construção do Teatro Oficina era: “Reconstruir tudo à vista, comer Brecht”. Tudo no espaço fica à mostra do espectador (até mesmo os bastidores), fazendo com que todos os elementos expostos façam parte do espetáculo, inclusive o espectador. O público do Usina Uzona está condicionado a sempre relacionar o que está assistindo com a realidade. Todas essas características da arquitetura de Lina Bo Bardi fazem com que esse espaço metonímico propicie ao grupo a produção de encenações que estejam sempre em relação direta com o mundo real. Com isso, assumem uma instância de apresentação, como diz Zé Celso, pois a representação do real parece não ser mais possível para o Usina Uzona e para o teatro pós-dramático.

Referências bibliográficas:

BARDI, Lina Bo; ELITO, Edson e CORRÊA, José Celso Martinez. Teatro Oficina -1980-1984. Lisboa: Editorial Blau, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1999.

JORGE, Luís Antônio. As lições da arquitetura brasileira de Lina Bo Bardi. Revista Projeto Design, São Paulo, nº212, p. 102-105, set.1997.

LEHMANN, Hans-Thies. Espaço dramático e espaço pós-dramático.  In: Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007 (p. 265 – 269).

NANDI, Ítala. Teatro Oficina: onde a arte não dormia. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1989.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Editora Pespectiva, 1999.

PEIXOTO, Fernando. Teatro Oficina (1958 – 1982): trajetória de uma rebeldia cultural. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.

RAMOS, Luiz Fernando. Dez Anos de Usina Uzona e Trinta Anos do Exílio Português. In: Literatura/Política/Cultura: (1994 – 2004). Izabel Margato, Renato Cordeiro Gomes (Org.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

SILVA. Armando Sérgio da. Oficina: do Teatro ao Te-ato. São Paulo: Editora Pespectiva, 1981.

TEIXEIRA, Coelho Netto. A construção do sentido na arquitetura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.

Notas:

[1] LEHMANN, 2007 (p. 268)

[2] Ibidem (p.265-266)

[3] LEHMANN, 2007 (p.267)

[4] SILVA, 1981. (p.203)

[5] LEHMANN, 2007 (p. 266)

[6] BARDI, ELITO e CORRÊA, 1999.

[7] LEHMANN, 2007 (p.267)

[8] SILVA, 1981. (p.200)

[9] LEHMANN, 2007 (p. 268)

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