Homenagem à paródia

Crítica da peça The Cachorro Manco Show

15 de dezembro de 2008 Críticas

Em um texto publicado há pouco, comentei que o teatro carioca apresentou, recentemente, alguns trabalhos solos bem interessantes. Esses trabalhos colocavam em movimento alguns pressupostos estabelecidos sobre nossas noções de atuação e de construção de personagem e permitiam que os atores trouxessem à tona, na materialidade da cena, suas teatralidades particulares. Parece, no entanto, que o público, de um modo geral, tem um certo preconceito contra monólogos. É como se a idéia de monólogo fizesse vir à mente o enfado de um discurso pedante, de um depoimento ou, quem sabe, de alguma espécie de sermão. E é justamente com o formato de sermão que a peça The Cachorro Manco Show brinca, misturando-o com outros formatos monológicos, em voga nos dias atuais: a stand-up comedy dos palcos e a fala dos pedintes das ruas.

O texto de Fábio Mendes venceu a edição de 2008 do Prêmio Luso-Brasileiro de Dramaturgia António José da Silva, que neste ano homenageou o quadricentenário de Padre Antônio Vieira, de forma que a obra de Vieira deveria inspirar os autores concorrentes. Com isso, não só o sermão está em evidência, mas também a própria língua portuguesa – o que é enfatizado pela dimensão exacerbada do microfone no centro do palco. A paródia parece ter sido a ferramenta escolhida pelo autor para manipular as referências e encontrar uma voz própria que faça sentido num texto que já deveria partir de pressupostos pré-estabelecidos.

A cenografia também faz a sua paródia, concentrando os elementos cenográficos numa espécie de nicho por trás do púlpito, colocando a cidade por trás do mendigo, como a cruz que fica por trás do padre. A iluminação de Aurélio de Simoni é inquieta como o cachorro pedinte e provoca a atenção do público ao ameaçar se apagar por completo algumas vezes. Os elementos visuais do espetáculo são pontuais e discretos, assim como a trilha sonora de Tato Taborda.

A peça nos faz ver que o discurso do pedinte já tem a sua doxa, as suas características imediatamente identificáveis. A direção de Moacir Chaves explora variações sobre esse modelo, diversificando a forma como as frases “clássicas” do pedinte são ditas, marcando assim cada reinício do discurso (“Com licença, um minuto de sua atenção. (…) Eu poderia estar…”), o que confere uma dinâmica de percurso ao formato cíclico do texto. Soma-se a isso a destreza com que Leandro Daniel Colombo articula as estratégias de sedução do pedinte/pastor e as transições entre esses dois tipos de discurso, que acontecem de forma sutil e revelam – quase denunciam – uma aproximação entre eles. Este é um dos trunfos do texto e materializar essa sutileza é um dos pontos fortes da encenação.

Temos diante de nós um cachorro-mendigo, um pedinte-pastor, um sem-nome que, como uma criação divina, espera ser nomeado por seu dono/criador. Há uma aproximação entre a relação do cachorro com seu dono e a relação do homem com seu deus. No discurso do cão, vemos o discurso do homem. Na história desse cão que foi muitos cães, teve muitos nomes e muitos donos, vemos uma retrospectiva-relâmpago da história do homem ocidental, que parte da Grécia, passa pelas grandes navegações e chega no mundo de hoje, das Topics de cahorro-quente e dos políticos com dinheiro escondido na roupa, em que a igreja continua sendo cenário de encontro da miséria e da fé. O cachorro que faz o sermão viveu todas essas situações e nos relata cada uma delas explorando o humor, a violência, a densidade e a crítica que permeiam seus relatos.

Entremeadas ao texto da peça, estão as citações de Padre Antonio Vieira, que são como comentários ao que está sendo dito. A relação entre texto e citação é sempre temática e o estilo das frases apresenta um contraste gritante. Na encenação, essas citações também foram marcadas pela diferença de estilo: são ditas com a carga de verdade absoluta e a retórica perfeita dos sermões, com uma dicção e entonação bem diferentes da fala do cachorro.

A presença dessas citações, um pouco estranhas nas primeiras vezes em que surgem, parece indicar que o autor conseguiu operar alguma subversão da idéia de homenagem, que é sempre um tanto pedante e costuma gerar um sem-número de espetáculos pouco inspirados atrás de um ganho de mídia. A peça de Fábio Mendes se vale de um potencial crítico muito bem articulado pela dramaturgia e conta com uma leitura fina e atenciosa de Moacir Chaves e Leandro Daniel Colombo.

Vol. I, nº 10, dezembro de 2008

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