Mosaico de atuações

Crítica da peça O Jardim das cerejeiras

10 de junho de 2008 Críticas
Foto: Guga Melgar

Na peça O Jardim das Cerejeiras de Anton Tchekhov, dirigida por Moacir Chaves, uma primeira imagem se coloca para o espectador: um mosaico de tapetes entremeados de pequenos retângulos de grama artificial está estendido sobre o chão e pode ser visto desde o momento em que o público entra no teatro. Ao longo da peça, o mosaico permanece sempre em cena e às vezes ganha um tratamento especial da iluminação. É possível fazer associações entre os recortes de tapete e de grama que coexistem naquela imagem e as diferentes formas de ver o mundo que convivem na peça. O cenário e a iluminação apresentariam, dessa forma, uma metáfora para a fábula. No entanto, essa mesma cenografia imprime na visualidade do espetáculo o espelhamento de uma questão formal – embora não esteja claro se essa questão formal é uma opção estética da direção ou uma contingência do processo. Neste caso, a cenografia poderia até ser vista como um ato falho, uma fala que, sem querer, revela um problema.

Assim como vemos ali uma série de desenhos e formas colocados lado a lado, na própria encenação também é possível ver diferentes desenhos para as cenas e diferentes formas de se fazer a peça. No início, todos os atores entram em cena e se posicionam sentados em bancos que ficam à direita e à esquerda do grande tapete. Uma das atrizes, Elisa Pinheiro, que faz o papel de Vária, se coloca de pé e, olhando para o público, diz o nome da peça, do autor, de todos os personagens e diz também a primeira rubrica da cena inicial, descrevendo o aposento em que a cena acontece, enfim, dando todas as coordenadas do começo da história que vai ser contada. Esse início pode gerar a expectativa, em algum espectador, de que a história vá de fato ser “contada”, e não “representada”, ou que os atores vão atuar sobre aquela fábula em vez de mimetizá-la. Depois, alguns atores se movimentam pelo espaço traçando ângulos retos (como aqueles do mosaico), fazendo percursos imprevisíveis para se posicionar de modo simples e objetivo. A atuação, nesse início, também traça ângulos retos: os atores não tentam criar uma atmosfera preenchida de emoções nem conferem aos seus personagens um desenho fechado.

Logo nas cenas seguintes, os atores, que no início estavam sentados nos bancos, vão para as coxias. As entradas e saídas ficam mais soltas, sem aqueles trajetos imprevisíveis. Alguns personagens começam a ganhar composições que remetem a um fazer teatral mais compatível com as expectativas que o público em geral pode ter de um Jardim das cerejeiras. Parece que há uma oscilação na encenação entre duas opções diferentes: fazer a peça de modo distanciado – não necessariamente frio – que revela procedimentos da feitura das cenas; e fazer a peça de uma maneira convencional, sem correr riscos. Para exemplificar isso, podemos comparar dois momentos distintos da peça: o início, em que a atriz fala as rubricas iniciais e o fim da cena entre seu personagem e Lopakhin no quarto ato. No início, ela precisa dizer as falas, sem fazer um personagem. Na cena com Lopakhin, ela faz a cena, como Vária. Quando ele se retira, ela fica no palco, ainda fazendo o personagem, como se estivesse chorando. No entanto, seria possível esperar que ela olhasse para a platéia e dissesse: “Lopakhin sai rapidamente. Vária senta no chão e chora.” A quebra de previsibilidade que a inserção das rubricas poderia gerar não entra justamente em momentos como esse, em que o desenrolar da história prevê uma emoção. Não digo que seria ruim assumir essa característica do texto, mas há indícios no começo do espetáculo que apontam em outra direção e, depois de apontar, é difícil voltar atrás.

Algumas rubricas ainda são ditas, até o fim da peça. Alguns atores parecem atuar em convivência com aquela exposição dos procedimentos de construção do texto e do espetáculo. Outros ignoram isso completamente e fazem a peça apesar desse recurso. Outros, ainda, oscilam entre uma coisa e outra.

Talvez seja possível tomar como exemplo os trabalhos de Leandro Daniel Colombo (Lopakhin) e Deborah Evelyn (Liubov) para pensar essas formas distintas de estar em cena. A atuação de Leandro Daniel – assim como a de Gláucio Gomes e André Stock – conta com certa familiaridade com a direção de Moacir Chaves. Não acho que seja o caso de dizer que ele leva adiante as propostas da encenação, mas penso que a encenação arrisca alguns apontamentos quando ele está em cena. Um exemplo disso é a cena entre Lopakhin e Trofimov no início do quarto ato, acompanhada por duas atrizes. A cada final de frase de Lopakhin, as duas atrizes deixam cair um dos tampos de um banco, produzindo um som seco. A fala do ator conversa com esse ritmo sem ficar cadenciada ou mecânica. Aqui, o recurso do diretor e o trabalho do ator constroem juntos uma cena que, na medida em que destoa de quase toda a peça, apresenta a possibilidade de uma encenação mais autoral que acabou por não acontecer.

Já a atuação de Deborah Evelyn não parece se encaixar naquela moldura proposta inicialmente, que parece sugerir, de algum modo, certa atitude crítica com relação à construção da peça e dos personagens. Fica a impressão de que ela faz a mesma Liubov que também poderia fazer em uma encenação mais tradicional, sem experimentação. Com isso não quero dizer que ela deixa de fazer uma ou outra coisa que o diretor tenha proposto. Pelo contrário, parece que, quando ela entra em cena, a direção se retira e deixa que ela faça o Jardim das cerejeiras dela. No segundo ato, quando ela tem um pedaço de texto mais longo, é possível perceber o peso de um momento em que a atriz diz um texto difícil da grande personagem. O tom de voz é solene, o sofrimento da personagem é reiterado, como se fosse preciso deixar visível o esforço de fazer Tchekhov. A cena não combina com os recursos descritivos que sugerem uma quebra na emocionalidade da fábula. A própria disposição da cena mostra uma distância entre a precisão e a secura de outras partes da peça e a movimentação dispersa e sem desenho desse ponto específico.

Os momentos em que Liubov e Lopakhin dialogam, que poderiam ser os de maior tensão do espetáculo, são os que me pareceram mais dispersos. É como se o embate entre os personagens – que não conseguem se comunicar de fato, tamanha a diferença de suas visões de mundo – fosse boicotado pelo embate que se dá entre duas noções de atuação que não convivem bem. É como se tivessem duas gerações de atores ali, cada uma com seu pensamento, com referências e formações diversas. Mas não se trata de uma diferença entre gerações: no papel de Ánia, a atriz Claudia Sardinha, possivelmente a mais nova do elenco, atua num registro parecido com o de Deborah Evelyn. É como se essa atriz mais jovem tivesse como referência uma forma de fazer teatro calcada em estéticas antigas, como se, na atuação, ela imprimisse o peso e o orgulho de fazer um grande texto.

Outro exemplo que se pode apontar está nas atuações de Peter Boos e Monica Biel. Neste caso, entretanto, os dois assumem com mais força as suas opções. O primeiro cria seu personagem apostando em trejeitos, em uma forma de falar, uma determinada postura e, principalmente, mostrando reações para o que acontece à sua volta. Na cena em que seu personagem fica bêbado, ele vai mais fundo no histrionismo e, embora quase nunca seja o foco da longa cena, ele sempre chama a atenção para si. Já a atuação de Monica Biel é o extremo oposto disso. Com segurança, ela diz o seu texto e se coloca como a personagem Charlota dentro das cenas sem fazer coisas que indiquem que ela está fazendo a personagem. Até os números de mágica, que poderiam ser feitos de forma espetacular, são feitos com uma serenidade surpreendente. Talvez seja possível dizer que há uma serenidade parecida na participação de Aurélio de Simoni. Por não ser ator, ele também faz uma espécie de não-atuação. Não se trata, em nenhum dos casos, de uma atitude sem energia, uma morosidade. Pelo contrário, essa forma de estar em cena tem uma presença diferente: a não-atuação pode ter mais a dizer dentro da peça que o excesso de atuação.

Assim, essa encenação de O jardim das cerejeiras poderia ter se configurado como uma montagem, poderia extrair significado justamente dessas convivências improváveis, dessas seqüências de cenas que parecem sinalizações de encenações possíveis. Num texto publicado recentemente, Emanuel Aragão cita um montador de cinema: “a partir de todo o material bruto de um filme, só há, ao contrário do que todos pensam, um filme possível. E é esse que vai passar a existir”. Nesta encenação, não vejo uma peça possível, vejo uma grande quantidade de material bruto; material este, heterogêneo e plural, mas que não se funde em uma singularidade.

Vol. I, nº 4, junho de 2008

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