O que nos livra do esquecimento

Crítica da peça Cowboy, de Daniela Pereira de Carvalho, direção de Henrique Tavares

29 de abril de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

O espetáculo Cowboy, com dramaturgia de Daniela Pereira de Carvalho e dirigido por Henrique Tavares, apresenta um pensamento sobre os estados de loucura e seus limiares colocando em confronto duas perspectivas: uma é a daquele que passa por um estado de sofrimento mental, e outra, é a do que sofre sua repercussão. Neste atrito, mostram-se duas solidões em sofrimento e se dá a ver a inelutável restrição edificada pela afirmação de um único ponto de vista. A questão da loucura não é tratada por tentativa de sublimação ou mesmo de criação de um lugar de valor, o que demonstra uma visão sensível e constrói uma poética transgressora das nossas referências mais comuns.

O texto de Daniela é uma composição em dialética de lógicas invertidas. A dramaturgia se desenvolve por meio de uma montagem singular em que as surpresas não encontram no choque o seu dispositivo. As imagens faladas são poéticas de uma linguagem que se desenvolve pela impressão de devires. Então, o tempo é um elemento estrutural que mostra suas lógicas próprias no desmonte da sucessão causal dos acontecimentos e das personalidades dos personagens. A meu ver, trata-se de uma lógica imaginativa no desmonte da razão lógica que, criteriosamente, Daniela construiu em dois monólogos. O primeiro é o do filho morto que expõe a imaginação como fonte para nunca ser esquecido. Não ser esquecido seria o que dá significação aos nossos atos na vida. O segundo é o da mãe que expõe seu desejo de esquecimento que, de modo semelhante aos sintomas do filho – mas por puro transbordamento de afeto – está com a mente preenchida por uma voz (sabendo ser a sua própria) que insiste em saber por que os pais amam seus filhos.

O filho é vivido por Saulo Rodrigues, que investiu em um preciso trabalho de composição entre os enunciados imaginativos e delirantes de seu personagem e suas imagens corporais. Tal construção permite o aparecimento de estados de interiorização justamente por não permitir que esses dois elementos (interiorização e corporalidade) entrem em competição. No delírio em questão, a crença é total e, portanto, não é necessário que se perca a calma. Falar do lugar daquele que já morreu é um distanciamento que Saulo soube transpor criando uma espécie de personalidade-limite na medida em que vê o mundo naturalmente no lugar de suas bordas. A direção imprimiu características de limpeza e precisão gesto-espacial que desenham um percurso no espaço, cujo efeito é o de deixar marcas, vestígios de uma existência conturbada que se quer viva no mundo.

Foto: Divulgação.

Susana Ribeiro vive a mãe que, em contraponto com a atuação de Saulo, apresenta uma composição permeada pelo “ar” de quem já viveu. Um vivido que está pleiteando o esquecimento, ou pelo menos, uma medida de seus efeitos. Seu olhar aumenta as potencialidades do espaço, sem tentar manter o horizonte. É como se diante do sofrimento nós não pudéssemos traçar uma revolta, mas apenas continuar vivendo cada dia com suas delicadas potências, incluindo o brincar. Susana perfaz suas ações nesta bela tensão.

A cenografia criada por Aurora dos Campos tem a força das imagens poéticas que a dramaturgia cria com as palavras e com suas surpresas. Trata-se de um painel que cobre toda a extensão do palco e que diminui substancialmente a área dos atores, parecendo assim que eles estão premidos por um abismo que se abre à sua frente. As possibilidades de movimentação ficam reduzidas e provocam uma visão em superfície semelhante a uma foto na moldura, esta última o vestígio da presença que restou da ausência do filho morto: sua fotografia emoldurada em um porta-retratos. A estampa retrô e psicodélica do painel que cobre também o estofado de uma cadeira colocada simetricamente no meio do palco materializa os estados limites e alucinatórios do filho. Mais uma vez, há sensação de não ter saída, a não ser por meio da invenção, pois o único objeto manipulável pelo personagem/filho é revestido pelo mesmo motivo do que está às suas costas. No segundo ato, a mesma estampa tem as cores esmaecidas o que denuncia ainda mais o desejo da mãe pelo vestígio, pelas dobras do seu amor tomando outros matizes que a façam suportar a existência com a dor da perda. O vestígio do painel se soma ao gramado artificial numa proposição em que a imaginação é o que pode ser sempre revivificada.

O porta-retratos seria a margem, o limiar da imagem fixada do filho que, como não aparece como objeto propriamente dito na encenação, reforça sua poética como um espaço que se aloja no “entre”, dando a ver uma zona de invisibilidade. Não se trata de apostar na ideia mais comum de uma imagem em que falta alguma coisa, mas que ali em sua imanência congrega elementos do que não está visível. Não é uma aposta na noção de que obra se cria pela falta, mas pelo excesso, pelos transbordamentos que aparecem em suas dobras, como na profusão dos brinquedos de criança no segundo ato. Neste sentido, a placa transparente colocada verticalmente no lado esquerdo do palco é uma equação das dobras do porta-retratos. O efeito alcançado, em conjugação com a luz, quando o personagem/filho se coloca atrás, é o de que ele está na superfície da placa. Se mais uma vez esta imagem de superfície insiste, aqui neste momento da encenação ela se dobra ainda como espelho. Mas um espelho em que o que interessa é o que está às suas costas.

Uma poética criada assim pelas imbricações de elementos materiais/metafísicos, que surgem juntamente com o movimento que tem a dramaturgia, dá a ver uma direção que também busca por um caminho de uma compreensão nova dos acontecimentos e da matéria textual. O filósofo Vilém Flusser argumenta que a virada do espelho é um caminho de conhecimento:

Pois bem: está virado o espelho. Descobrimos (ou redescobrimos) o nada que nos fundamenta enquanto seres que refletem. Descobrimos aquilo que a Idade Moderna encobriu com conversa fiada. E daí? Esta pergunta marca a atualidade. A resposta depende do tom pelo qual pronunciamos a pergunta.

A meu ver, a resposta que o fragmento de Flusser aponta está em Cowboy como busca por uma série de novas perguntas entre afirmações da imaginação, suas frágeis formulações e o desejo de viver na ultrapassagem do par sofrimento/esquecimento. Este percurso imaginante que se interessa pelo avesso ou, melhor dizendo, pelo avessamento das coisas, se dá ainda pelo que se pode captar por meio da luz elaborada por Tomás Ribas, que traça campos de ludicidades coloridas. Em outra proposição, os recortes de luz ainda dão a ver o espaço limitado em que a imaginação pode cair.

Os figurinos de Marcelo Olinto também buscam por tais elementos e permitem abstrações que conjugam a visão de diferentes dimensões. Estas se desdobram em um vestido de festa rosa (impacto de superfície preenchida que toma o campo visual, de referência possível associada ao título), uma espécie de meia/membrana em uma das pernas da atriz e em uma boina que, vista da plateia quando Saulo está de costas sentado na cadeira, nos oferece uma perfeita geometria na forma de um cristal que reúne possibilidades. Se estas se encontram na escolha pelo delírio ou pela lógica geométrica, o espetáculo não responde, mas propõe continuarmos com a questão.

Referências bibliográficas:

FLUSSER, Vilém. Do Espelho in Ficções Filosóficas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. Páginas 67-71.

Dinah Cesare é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na linha de pesquisa Poéticas Interdisciplinares, é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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