Leve tom crítico de uma brincadeira desvairada

Crítica da peça Me salve, musical! de Pedro Brício

24 de fevereiro de 2011 Críticas
Atores: Susana Ribeiro e Gustavo Gasparani, à frente. Foto: Cabéra

Pedro Brício parece mais disposto a brincar do que a fazer uso do tom crítico em Me salve, musical!, mas, apesar disso, distribui, ao longo desse seu novo texto, diversos comentários relacionados a um modo de entender e, por conseguinte, fazer teatro.

Os personagens principais – o casal George Simas e Alma Durán – já evidenciam, de certa maneira, algumas tomadas de posição. Ele é um diretor de musicais que procura copiar o padrão de realização da Broadway, proposta que limita seu alcance artístico. Essa ambição – não exatamente a de copiar, e sim a de atingir o know how dos espetáculos americanos – é externada com frequência por produtores e diretores contemporâneos. Logo no prólogo, George surge em cena lançando uma provocação ao público: diz que o teatro deve ser encarado como uma diversão escapista cujo principal sentido está em propiciar que se esqueça das agruras do dia-a-dia. Alma, em contrapartida, é uma atriz com vocação para a tragédia, dona de personalidade passional, bem menos disposta a fazer concessões.

De maneira despretensiosa, Pedro Brício carimba “musical” no título de um espetáculo que caminha no sentido do anti-musical, pelo menos de um dado formato. Os personagens ouvem música ou cantam discretamente em espaços pouco glamourosos. Não há preocupação com coreografias mais elaboradas – até porque elas seriam de viabilização quase impossível diante da dimensão limitada do palco do teatro do Oi Futuro/Flamengo. Na direção, Brício brinca com essa limitação espacial através da inserção de instantes de malabarismo, de reduzido efeito cômico. Como autor, segue lançando provocações ao reproduzir chavões relativos ao teatro investigativo, à cena pautada pela experimentação de linguagens (“falta de dinheiro no Brasil é desculpa para utilização de metáforas”).

Atores: Fernando Alves Pinto, Isabel Cavalcanti, Gustavo Gasparani, Susana Ribeiro, Celso André, Keli Freitas e Juliana Medella. Foto: Cabéra.

De determinado momento em diante, Me salve, musical! passa por uma evidente transição. O tom menor, contido, é substituído por um clima feérico, quase aloprado. Os atores se desdobram na apresentação de um mix de músicas conhecidas. Na iluminação (de Tomás Ribas), cores mais chamativas se impõem. Essa passagem, propositadamente algo brusca, traz à tona uma das principais características da dramaturgia de Pedro Brício: a mistura de estilos e gêneros, a rebeldia diante de um eventual risco de enquadramento em classificações. O autor substitui a verossímil orquestração de embates num saguão de aeroporto por uma situação fantástica, na qual os personagens começam a ser contaminados pelo vírus da felicidade. Apenas Alma dá sinais de lucidez ao se mostrar imune à contaminação. Não por acaso, é a única que traja uma cor forte (vermelho), em contraste com a neutralidade dos demais figurinos (de Rui Cortez), com predomínio de variações de cinza, e o visual asséptico da cenografia (também Rui Cortez).

Se como autor Pedro Brício mantém certo espírito inquieto, ainda que seus comentários teatrais não cheguem a se constituir como uma fala artística consistente, como diretor perde parte da precisão da cena na transição da primeira para a segunda metade. Possivelmente por ser autor do texto, demonstra dificuldade em podar excessos, fazendo com que a montagem se alongue para além do necessário. Contudo, mesmo que a relativa contenção da primeira parte seja concretizada com mais segurança, os atores encarregados dos personagens mais expansivos (Celso André e, em especial, Isabel Cavalcanti) revelam apreciável afinação e adesão a uma brincadeira desvairada.

Daniel Schenker é doutorando em Artes Cênicas pela UniRio e crítico de teatro do Jornal do Commercio e da revista Isto É/Gente.

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