Debate teatral a partir de Tchekhov

Crítica da versão brasileira da peça Espia uma mulher que se mata

10 de maio de 2009 Críticas

Anton Tchekhov lançou discussões artísticas – presentes em suas grandes peças, escritas na primeira década do século XX – que permanecem atuais. Talvez a mais evidente possa ser encontrada em A gaivota através do contraponto entre Arkádina e Treplev, mãe e filho que travam uma relação absolutamente passional, ambos defendendo visões de teatro contrastantes – ela uma atriz-diva, símbolo de uma cena atada a convenções, e ele, promissor aspirante a dramaturgo, escrevendo em busca de “novas formas”, norteado pela inquietude.  Em Tio Vanya, o acalorado debate artístico também desponta, mesmo que de modo um pouco mais discreto, sinalizando uma das fontes de frustração do personagem-título. Atormentado pelo descompasso entre o que gostaria de ter sido e o que efetivamente se tornou, ele já começa a peça revoltado com o fato de ter passado anos devotado à figura do professor Sérébriakov.   

Daniel Veronese, dramaturgo e diretor argentino responsável por uma apropriação de Tio Vanya – intitulada Espia uma mulher que se mata, que ganha versão brasileira assinada por Marcelo Subiotto (integrante do elenco da montagem dirigida por Veronese e apresentada no Festival Porto Alegre em Cena) –, parece ter valorizado o potencial de reflexão teatral contido no texto de Tchekhov. Logo no início, Sérébriakov, transformado agora em professor voltado para o estudo do teatro, e sua filha, Sonia, conversam sobre formas tradicionais e novas, até que ele afirma de modo taxativo: “não podemos representar a vida como ela é”. A sentença entra em choque com uma determinada fase da trajetória de Constantin Stanislavski, de quem Tchekhov foi bastante próximo, normalmente lembrado pela determinação em reproduzir uma fatia da realidade no palco, a tal ponto que sua cena era conhecida como “ateliê de minúcias”. Uma perspectiva em relação a qual Stanislavski e Tchekhov discordavam, com o segundo revelando insatisfação diante da persistência do primeiro em reproduzir com exatidão as rubricas em seus espetáculos.

Durante essa conversa, que abre a encenação, logo após uma interessante e incômoda cena inicial em que Sonia e Sérébriakov permanecem mudos, ela fala sobre a propriedade da família, onde se passa toda a ação da peça, fazendo alusão ao espaço cênico: “nesse cenário em que se transformou a nossa casa desde que o senhor chegou com a sua Helena”, diz, chamando atenção para a concepção cenográfica original, a cargo de Veronese (responsável ainda pelo desenho de luz). Um espaço propositadamente assumido como cenário – nesse sentido, realçado em sua artificialidade – e não como ambientação “verdadeira”. Mas um espaço que ganha autenticidade ao se completar com as marcas gastas das presenças dos atores, a julgar pelos sinais espalhados das mãos poluindo as paredes brancas da cenografia.

Daniel Veronese suprimiu uma personagem do texto, Ba, e inverteu o sexo de outra, Teléguine. Também entrelaçou Tio Vanya com trechos de As criadas, de Jean Genet, ensaiados por Vanya e Astrov, o médico, de maneira afetada (com exceção da bela e última inserção do texto “estranho”, na qual Roberto Bomtempo e João Vitti visitam um registro de atuação bem mais sóbrio). O intuito talvez seja o de contrapor o “teatral” ao real – no caso, contrapor um evidente e ultrapassado tom de representação a um naturalismo refinado, que pauta as interpretações durante a maior parte do tempo. Um naturalismo calcado no rompimento com um tom de declamação tradicional e na procura por uma veracidade através, por exemplo, da sobreposição das falas, ditas ao mesmo tempo pelos atores e quase sempre de maneira coloquial.

A maioria dos atores transita bem por essa linha de atuação distante do virtuosismo gratuito, em especial João Vitti nas descrições de Astrov. Roberto Bomtempo se mostra adequadamente discreto como Vanya, externando com competência a contundente indignação do personagem no desenlace final. Symone Strobel é uma Helena expressiva, que acerta ao não enveredar por uma trilha melodramática na construção da personagem. Flavia Pucci sustenta com habilidade um certo estado de embriaguês de Teléguine e procura tirar partido cômico das situações, como na cena em que Astrov é indagado por Helena acerca de sua relação com Sonia. Regina Sampaio, como a mãe de Vanya, se vale de uma oportuna neutralidade que sintetiza a proposta lançada pelo diretor Marcelo Subiotto. Marco Miranda é linear em excesso como Sérébriakov, abrindo mão de um colorido ofertado pelo personagem. E Miriam Freeland faz um esforço de composição (voz angustiada, olhar transbordante) que acaba infantilizando Sonia.

Tio Vanya já rendeu trabalhos de muita qualidade, valendo citar o excelente registro de Louis Malle para a montagem de André Gregory no filme Tio Vanya em Nova York, realçada por excelentes interpretações. Em Espia uma mulher que se mata, Daniel Veronese dá a impressão de continuar valorizando o verdadeiro pela via da contenção – imperante em alguns de seus espetáculos, como os ótimos La forma que se despliega e La noche canta sus canciones –, mesmo (ou talvez justamente por isso) ao transitar por registros não só diversos como opostos.

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