Sobre o risco de se ver em cena: um esclarecimento

Texto sobre o processo de criação da peça À Gaivota, montagem de Maíra Kestenbergh

31 de julho de 2012 Processos

Falar sobre um processo não é apenas descrever ou narrar o que acontece entre as quatro paredes de uma sala de ensaio. Talvez, sim, mas é possível que seja em um tom pouco íntimo ou até, quem sabe, incerto. E é na convivência quase diária com o grupo que será colocado aqui o processo de A Gaivota, de Anton Tchekhov. No caso, a montagem é À Gaivota, homonimamente como homenagem ao autor, dirigida por Maíra Kestenberg.

O desejo de montar a peça é tão antigo que se perdeu entre as atividades da diretora. Há mais ou menos 10 anos, em um curso com Matheus Nachtergaele, Maíra Kestenberg teve acesso ao texto como base para a oficina ministrada pelo ator. Desde então, A Gaivota passou a fazer parte do cotidiano, em suas funções básicas, em suas obrigações diárias, em amenidades quaisquer. Mas suas personagens estavam lá, amadurecendo, crescendo e se tornando aptas a aparecer, assim como a coragem de colocar em cena tudo o que o mundo tchekhoviano oferece ao leitor / espectador. Além da formação em Interpretação, a extensão no curso de Direção e então, no segundo semestre de 2011, a oportunidade de trabalhar um texto que se desdobraria em uma montagem estava ali: foram seis meses de trabalho divididos de forma bem precisa e equilibrada, diferentes técnicas como bases para extrair da dramaturgia o que seria, mais tarde, o suporte para o espetáculo.

No total, foram 4 atores em 5 etapas no Laboratório: a primeira era a pesquisa das forças da natureza, como elas apareciam e influenciavam na peça; depois, as rasaboxes, técnica desenvolvida por Richard Schechner, diretor e ator americano, que treina o ator a unir as emoções e experiências em um único corpo. Mais tarde, rede de afetos, uma espécie de árvore genealógica dos sentimentos dos personagens; o quarto passo foi a investigação da metalinguagem dentro da obra de Tchekhov e o quanto dessa linguagem permeava a convivência diária dos atores. Não como processo atoral, mas também como pessoas. E, o último, referências a outras poéticas. Músicas, poesias, literatura, artes plásticas, qualquer arte que dissesse respeito ao entendimento pessoal sobre a peça e seu personagem.

Ao longo dessa pesquisa acerca do texto e das reflexões trazidas para a época atual, é inevitável que se descubra ou tangencie algo em si próprio, no que diz respeito à individualidade e comportamento diante das próprias escolhas. E foi a partir desse ponto de vista das relações de A Gaivota que se desenvolveu o conceito de direção para a montagem.

Laboratório feito e projeto no papel: a dificuldade de colocar em palavras o que até então havia sido apenas experienciado em cena e o que foi vivido naquele presente sem registro escrito. No entanto, foi tal subjetividade que serviu de base para o início de algo concreto, como a construção das cenas em consonância com esse espaço de experiência cênica e dramatúrgica. Para essa parte do projeto, novos atores foram selecionados, já que seria necessário que aquilo que se obteve como olhar por parte da direção fosse aplicado de forma mais acertada, menos experimental, porém instigante a ponto de fazer esses atores criarem dentro da proposta de encenação. Mas até agora, qual o conceito da diretora e qual o método pra dispor em cena o alcançado através do laboratório?

A grande questão da Maíra era esclarecer que entre os personagens e atores não há limite de separação. Não há obstáculo no meio dessas instâncias aparentemente distanciadas pelo tempo da criação da obra e do tempo em que será executada. O que existe nesse entremeio é apenas uma adequação da experiência do ator e das possíveis vivências mediadas pela cena e, não somente isso, mas, também, a oportunidade de atribuir ao personagem o que é habitual do ator na fala, no gesto e na flexibilidade para mudanças. Não é o caso de igualar os dois, ator e personagem, como advindos do mesmo lugar, tampouco de eleger um melhor que o outro, mas apenas, de colocá-los como iguais a partir do momento em que o texto passa a ser tridimensional quando está concretizado em um corpo físico. Richard Schechner, em O que é performance? diz que o fato de estarmos expostos em uma sociedade regrada, com conceitos pré-determinados já nos faz um pouco performers ou personagens de nós mesmos. Que somos apenas uma combinação de gestos e ações já conhecidas e o que varia são as condições em que estamos imersos, é o que ele chama de movimento restaurado.

Essa concepção foi ponto de partida para a criação do cenário e figurino, ambos de muita importância e complementares na montagem. O esquema era justamente desfazer qualquer divisão entre a coxia, o palco, espectadores e vestimentas do final do século XIX e o ano de 2012. Elaboramos – direção e cenógrafos – penteadeiras com espelhos enormes e figurinos com moda atual além do visagismo discreto, mas visível. Não pretendemos que fosse algo perceptível a olho nu, mas algo que pudesse chegar pela escolha de cada elemento presente, pelas roupas, material usado, objetos e familiaridade com o que estava ali, em cena. Estabelecemos quatro espaços básicos, um de maior importância: o escritório de Trepliov. Esse escritório comporia a cena como lugar de trabalho do jovem autor e com significado maior para os atores, lugar onde toda a peça seria criada. Ainda no laboratório, a pesquisa avançava com o surgimento da ideia de que toda a história era contada por Trepliov, como se A Gaivota fosse criação dramatúrgica do rapaz e, aos poucos, se tornasse real conforme escrita. O outro era o espaço das cenas e onde as penteadeiras estavam dispostas para servir de cenário e de camarins para os atores sem cenas principais.

Mas a inquietação ainda estava por vir quando os ensaios começassem e tivéssemos compartilhando o mesmo espaço com tantos indivíduos e, assim tantas certezas e opiniões sobre a peça. Ao mesmo tempo que pode parecer simples o fato de não se querer separar dramaturgia e fala ou personagem e ator é nesse passo que se corre o risco de cair na armadilha da representação. Em processar que para se agir livremente e com autonomia na história é preciso o distanciamento para análise crítica do que está lá – só assim é possível enxergar as nuances do texto, da pausa, das entrelinhas e rubricas.

É difícil estar de fora sem precisar invadir o texto como o ator deve fazer. Ter essa visão sobre o como fazer, ter o procedimento claro para que a proposta seja executada como idealizada é mais fácil do que somente pensar que você é o fazedor dessa dinâmica, no caso do atuante. Partimos da leitura do texto e fomos designando os atores para os personagens, mais pelo entendimento e empatia deles com os papeis e menos pela semelhança física. Daí em diante, era apenas a divisão do texto em unidades, o que facilitaria a forma de enunciação e nos momentos de transição entre os atos. Desde o início mantivemos encontros com 3 horas de duração, no mínimo, e que pudéssemos trabalhar corrido as cenas e fazer um trabalho quase personalizado – dependendo do ator e da cena. Acredito que o nosso tipo de processo não priorizava uma montagem tradicional quando se fala de montar estritamente o que está ali no texto ou com as referências do autor e da época, prezamos pela possibilidade de sermos tocados com o que está por trás da dramaturgia, com os silêncios detentores de significados, das entradas e saídas de personagens que dizem muito mais do que estar ou não presente na cena.

O embate entre o pensamento e a ação foi o mais perceptível, por isso usamos os dois extremos a fim de mostrarmos a aridez do texto assim como sua sutileza. Ao mesmo tempo que nos “demos o direito” de suprimir algumas frases, também colocamos as didascálias na boca dos atores e inserimos textos de outras peças e músicas que remetessem à situação. Os recursos cênicos e abordagens utilizadas por Enrique Diaz, diretor da Cia dos Atores foi uma inspiração constante. Curiosamente, em 2007, a peça foi montada com direção de Kike Diaz e teve como mote principal a desconstrução da peça. No nosso caso, tentamos não desconstruir, mas investigar e apontar em quais pontos poderia haver uma ruptura ou quebra na obra teatral de Tchekhov. E foi à procura de uma estética assim, fragmentável e passível de ser mais uma parte para o todo que dirigimos a cena e, sobretudo, o ator. Esse ator deveria ser presente o tempo todo, contracenando ou apenas como coadjuvante assistindo do seu camarim. Essa presença era e deveria ser considerada importante, já que os espelhos refletiam suas expressões, suas mínimas ações e mostravam ao público que mesmo de costas para a plateia era possível ser observado. Ao passo que a plateia se via refletida e podia ser observada pelo ator que tinha o espelho à sua frente.

De certa forma, com a encenação de À Gaivota, pudemos trazer essa unificação de atores, técnicas e platéia no sentido de que tudo era mostrado e todos, sem exceção, podiam ser vistos em um único lugar. Essa linha ou hierarquia do que é observado e quem observa se perdeu quando o suposto observador podia ver a si próprio e o observado podia se enxergar e perceber seu observador julgá-lo em cena. Fragmentamos o texto, as cenas, os personagens e atores e público. Fizemos por partes para, no final, juntarmos como em um quebra-cabeça e visualizar o todo com a distância necessária para pensar o resultado. Participamos em um conjunto comum e, inversamente, o separamos, distribuímos as partes para termos o panorama do que foi e está sendo criado. Pensamos o processo, executamos e só agora, depois de pronto é que podemos dizer com algum argumento sólido no que acertamos e o que poderíamos fazer diferente. O processo não acaba. Pela nossa proposta, a peça nunca ficará pronta, ela passa pelo crivo da experiência humana e, ainda bem, está sempre em movimento.

No meu exemplar da peça está escrito: A GAIVOTA, Comédia em quatro atos, 1896. Essa peça mais parece um drama, pela sua estrutura formal e conteúdo realista, mas ela só o é, dramática ao extremo, por conter doses homeopáticas de ironia, ingenuidade e auto-piedade em seus personagens. Características que poderiam passar despercebidas quando a leitura ou encenação é levada a sério demais como se a peça fosse sempre a palavra certa e final a ser obedecida. Cravamos em nós a responsabilidade de não julgar os personagens nem atribuir a eles obrigações além das suas próprias. O que se pode concluir dessa homenagem a Tchekhov é que antes de tudo foi expor nosso ponto de vista sobre sua obra sem desmistificar seu papel no teatro nem sobrepor nossa opinião, apenas admitir que ainda experimentamos e queremos absorver a excelência do teatro de tempos atrás e, acima de tudo, as relações humanas como subsídio para a arte.

Referências bibliográficas

ALICE, Tania. Performance.ensaio:desmontando os clássicos. Rio de Janeiro:Confraria do Vento, 2010.

BOGART, Anne e LANDAU, Tina. The Viewpoints Book: A Practical Guide to Viewpoints and Composition. Ed.Theatre Communications Group.

LEHMANN, Hans-Thyes. Teatro Pós-Dramático; tradução Pedro Sussekind – São Paulo: Cosac Naify, 2007;

RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política; tradução Mônica Costa Netto – São Paulo:EXO experimental org; Ed. 34, 2005

SCHECHNER, Richard. O que é performance? In: Revista Percevejo nº 12. Estudos da performance. Rio de Janeiro, UNIRIO, 2003

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores