Avessamentos

Crítica da performance O outro beijo no asfalto da Companhia Excessos, de Portugal

10 de março de 2009 Críticas

A performance passou a ser considerada uma expressão artística independentemente de definições na década de 1970, época em que o conceito se impunha mais do que o produto propriamente dito. Quando pensamos em performance, pode surgir a idéia de que ela tem como um de seus objetivos ou conseqüências provocar o choque. Os artistas elaboravam manifestações em espaços urbanos, avaliando de certa forma o fazer artístico em meio ao cotidiano das pessoas. O choque podia ser compreendido tanto pelo lado de quem fazia, quanto pelo lado da recepção, pois não era possível prever as reações. Uma das idéias de performance está associada mesmo à sua característica de acontecer uma vez e nem sempre deixar registro. O caso feliz da Companhia Excessos de Portugal é que ela realiza uma gravação do seu trabalho e veicula na internet, como no caso da performance O outro beijo no asfalto. O que acontece é que mais pessoas podem se envolver e os sentidos se alastram. Esse texto, portanto, é um exercício crítico mediado pelas imagens capturadas por outro, já nasce de uma operação de olhar conjunto e se constrói mais obviamente por uma alteridade.

A performance faz referência à peça do dramaturgo Nelson Rodrigues O beijo no asfalto escrito em 1961. Na peça de Nelson, um homem na rua perde o equilíbrio, cai e é atropelado por um ônibus. Outro homem que passa vai ao socorro do acidentado que agoniza, que lhe pede um beijo. Ele atende o que seria o último pedido e beija o outro. A partir daí o homem que dá o beijo cai numa rede de intrigas que o enreda em questões homossexuais e criminais. Seu fim é trágico.

Em O outro beijo no asfalto o espaço é uma rua de Lisboa em um horário comercial. A exterioridade dos papéis trocados discute definição de gêneros. A corporalidade dos atores parece conversar de certo modo com nossos princípios de fisionomia, pois a atriz é baixa, porém, robusta, compacta como se pode pensar de uma fisicalidade masculina. O ator é alto e magro como o ideal de beleza feminina. As roupas, tanto o terno quanto o figurino feminino, são de cortes e motivos antigos, o que parece sinalizar que a questão de gêneros não é uma ocorrência contemporânea, ou seja, discutem a temporalidade, nosso modo de estar no tempo. Se a performance por característica possibilita ao espectador ter acesso ao mundo da arte em uma interrupção impensada em seu cotidiano, aqui nossa concepção cultural toma, ao menos, um golpe bem-humorado. Mas o curioso é que nem nos damos conta de que realmente, ao contrário da peça de Nelson, o beijo é entre um homem e uma mulher. Talvez isso queira dizer que continuamos os mesmos sendo diferentes: lucidez sutil do trabalho que quase passa despercebida. Porém, a placa de contramão que surge na esquina quando o casal desaparece sinaliza a vigência de uma não aceitação e a contravenção do ato.

A gravação da performance realizada em preto e branco me fez lembrar da foto de Robert Doisneau que mostra um casal se beijando em uma rua de Paris em meio aos transeuntes. A referida fotografia é do ano de 1950 e durante muito tempo se pensou que fosse um instantâneo casual, porém, ao sabermos de que se trata de uma pose elaborada pelo fotógrafo, ela parece evocar a felicidade e a promessa fictícia dos anos após a Segunda Grande Guerra. Os elementos ficcionais da performance da Cia Excessos, a gravação que deixa à mostra pessoas fotografando e filmando com seus celulares, nos sugere que a discussão da sexualidade possui diversos planos entre o que conquistamos em termos de direito e a fogueira na qual nos deixamos arder.

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