Descendo a escada

Crítica da peça Brasil subterrâneo – A escada de Jacó, da companhia Studio Stanislavski, com direção de Celina Sodré.

24 de dezembro de 2015 Críticas

Vol. VIII n° 66 dezembro de 2015 :: Baixar edição completa em pdf

Resumo: o autor tece considerações sobre A escada de Jacó, da companhia Studio Stanislavski, montagem que estreou em agosto de 2015, no SESC Copcabana. Trata-se de uma reflexão sobre as imagens produzidas pelo espetáculo, que reverberam um substrato insondável, porém fundamental, da cultura brasileira.

Palavras-chave: imagem, cultura brasileira, estranho

Abstract: the author gives thought to A escada de Jacó, work by Studio Stanislavski company, premiered in august 2015 in SESC Copacabana. The text is a reflection on the images produced by the presentation, which reverberate an inscrutable substract of Brazilian culture, but certainly a fundamental one.

Keywords: image, Brazilian culture, uncanny

 

A Celina Sodré, pela atenção.

Jacó sonhara com uma escada. Por ela, anjos transitavam entre o céu e a terra, levando aos homens a mensagem de nosso Senhor. Próximo aos degraus mais baixos, o homem deveria manter seu horizonte no ponto mais alto da escada, onde estaria Deus guardando a entrada de seu reino divino. No simbolismo da escada de Jacó, há um inegável sentido ascendente: subindo os degraus, revela-se a verdade por trás do dogma divino, a verdade cósmica superior à imperfeição terrena. Na vida proliferante das imagens simbólicas, percebe-se que essa tendência se dissemina por toda a iconografia e a mitologia cristãs, configurando uma imagem ou estrutura simbólica amplamente reconhecível no mundo ocidental.

Porém, na dramaturgia de A escada de Jacó – peça dirigida por Celina Sodré, que também assina a dramaturgia junto a Henrique Gusmão e Marcus Fritsch –, o sentido é decididamente outro. Ao contrário de anjos levando a palavra de Deus aos desorientados seres terrenos, são como que astronautas terráqueos que descem do alto de sua exuberância tecnológica para um mundo inferior desconhecido. Eles não tanto trazem uma mensagem, como os anjos; e tampouco almejam, como os cristãos, por uma verdade transcendente de alturas incomensuráveis. O percurso desses homens é descendente, oposto ao sentido consagrado pela experiência religiosa ocidental.

O ano é 2337. O futuro distante permite vislumbrar avanços inimagináveis da tecnologia, provavelmente responsáveis por um processo massivo de globalização. No enigmático vídeo-prólogo do espetáculo – que teve curta temporada de estreia no Espaço SESC, em agosto – um relator (interpretado por Henrique Gusmão) narra os sucessos e as etapas de uma missão arqueológica, permutando no seu discurso idiomas diversos, numa fala robótica e de cadência lenta.

Ele nos narra o percurso da BUM – Brazil underground mission – que daria continuidade, mais de duzentos anos depois, à pesquisa do professor Américo Sanches sobre a Capela Santana, “subsolo maravilhoso repleto de pinturas anônimas nas paredes e no teto”, que apresentam “aspectos sincréticos das culturas africana, incaica, indígena e cristã, formando an extraordinary kaleidoscope” (texto da peça). A missão assim comicamente intitulada parece denunciar o seu próprio caráter ficcional, assim como o das referências de que se vale. De acordo com o vídeo, a fictícia pesquisa de Américo Sanches remontaria aos séculos XVI e XVII, buscando ao longo da história todas as referências à misteriosa capela, que vão rareando até o vago registro de uma peça de teatro, na esquecida cidade do Rio de Janeiro, que teria sido encenada no ano de 2015.

A ficção histórica do prólogo atinge, então, o próprio tempo dos espectadores, que serão levados em seguida a um espaço contíguo, e testemunharão a encenação teatral dos momentos decisivos da expedição: a descida dos exploradores à misteriosa capela Santana. Ali, experiências inesperadas terão curso. Uma espécie de impulso místico atravessará corpo e espírito dos cientistas, que sofrerão uma experiência difusa de conversão e metamorfose. O sagrado retornará não pelos dogmas vindos dos céus, mas pelo mergulho nas raízes obscuras da religiosidade popular brasileira, recalcadas pelo imaginário institucional e pela história oficial. O fluxo de imagens que se vê em seguida – cenas míticas, nas palavras de Celina Sodré – formará uma sucessão de quadros difusos, tableaux emoldurados pela luz de Mauricio Fuziyama, num vertiginoso processo de montagem de referências religiosas e rituais.

Eis então a primeira parte da trilogia Brasil subterrâneo, a mais recente proposta teatral do Studio Stanislavski. A escada de Jacó inverte a topografia religiosa e imprime uma descida arqueológica, agregando à experiência do sagrado camadas de sincretismo, estética das imagens, pensamento cênico e pesquisa antropológica. Um olhar teológico poderia tentar destrinçar cada elemento e inseri-lo em sua respectiva matriz cultural. Contudo, darei destaque para o aspecto que mais me impressionou como espectador: o impacto das cenas rituais, as imagens condensadas que provocam os nossos sentidos. Cabe, portanto, enxergá-las como nódulos ou núcleos irredutíveis, que dão vazão a fluxos diversos do sincretismo religioso, concentradamente caóticos.

Tal visão pede que se faça, inicialmente, rápidas considerações sobre o processo criativo do trabalho, cujos relances pude obter em conversa com Celina Sodré e nos apontamentos de Dinah Cesare, que acompanhou parte do processo[1]. Houve nesse trabalho do Studio Stanislavski a singularidade de um começar do zero: ao contrário de práticas anteriores, em que a companhia partia de um material imaginativo prévio (romances, peças, universos autorais etc.), para daí urdir sua própria dramaturgia, a primeira parte da trilogia Brasil subterrâneo surge do próprio risco da experimentação, da imprevisibilidade dos caminhos. O projeto criativo começou apenas com um conceito, que foi desenvolvido exaustivamente ao longo de dois anos, o tempo mais longo de processo que a companhia já teve, de acordo com Sodré. Dessa forma, com A escada de Jacó, a companhia assume frontal e agudamente o desafio da dilatação do tempo de feitura da obra, nos termos do acaso e da liberdade que todo trabalho de criação pressupõe. A pesquisa parece ter se inaugurado num terreno neutro, em que a experimentação com os atores – marca distintiva do trabalho de Celina como diretora e professora – foi a fonte de onde brotaram os temas e as práticas cênicas que embasam a dramaturgia. O Brasil subterrâneo surgiu, portanto, desse terreno neutro e efervescente do trabalho e da pesquisa do ator, que poderia muito bem ser pensado como um laboratório de onde surgiu o caos originário das manifestações primitivas da cultura.

As ideias foram brotando no trabalho e pensamento colaborativos, e não consigo deixar de associar esse dado à fatura do espetáculo: os transes e atos ritualísticos dos atores assumem uma tal organicidade e aderência aos seus corpos que o sincretismo difuso de suas performances parece se ligar inevitavelmente ao engajamento psicofísico do processo criador pelo qual passaram. Nesse sentido, o caos do processo criativo parece ter sido esteticamente transfigurado no caos religioso da cena.

Esse caos religioso semelha a um caldo primitivo, caldeirão de referências que tanto mais impacta nossos sentidos quanto mais se mostra desfigurado e desfigurador dos signos religiosos. Se não há uma experiência propriamente sacra ou mística em A escada de Jacó, o trabalho atoral e dramatúrgico certamente garante a reatualização (artística, é preciso lembrar) das esferas do rito e do mito. Fato esse que inclusive reflete as concepções de Grotowski, autor quase onipresente no trabalho do Studio Stanislavski, conforme podemos ver nas notas de Dinah Cesare sobre o processo criativo da companhia:

Grotowski afirma que o teatro é um ritual laico e deve então procurar por suas formas na direção de proporcionar o mesmo estado de revelação que o ritual conferia aos seus participantes, porém, por meios laicos. (…) Em seu entendimento, o mito deve ser confrontado, profanado, para que ganhe significação na nossa atualidade de perda de um ‘céu comum’ (CESARE, 2015, nota 19).

 

Se, para recuperá-lo, vivenciá-lo novamente pela via do estético, o mito deve ser tensionado em direções outras, vemos que A escada de Jacó propõe operação semelhante à do ritual laico grotowskiano. Referências díspares se costuram umas às outras: a ficção científica de filmes como 2001: uma odisseia no espaço e Stalker convive com a cultura primitiva da antropologia de Lévi-Strauss, da mitologia dos orixás e dos estudos de Ernesto de Martino. Há, à primeira vista, um certo atrito entre a música de Pink Floyd da primeira parte do espetáculo e os cantos arcaicos – de resto, presentes na avançada pesquisa do Studio sobre o canto ritual – das cenas míticas que se sucedem na peça. Ademais, as incursões de Marcus Fritsch nos intervalos entre as sequências rituais, recitando o Sermão da Sexagésima de Antônio Vieira, traz à tona questões ético-religiosas, provocando uma interessante releitura do sermão do século XVII em diálogo com o percurso ritual da peça.

Diante de dados de origem tão diversa, em cada um dos quais identificamos um imaginário díspar e específico, percebe-se que o espetáculo realiza um encontro desses universos extremos, como se fossem todos fruto de um onirismo produtor de imagens sacralizadas e remotas. Uma psicologia profunda, um inconsciente coletivo parece perpassar todas as imagens, unindo futurismo e primitivismo na tessitura do trabalho. Essa conciliação se traduz claramente nos figurinos dos pesquisadores-exploradores, na primeira parte da peça: macacões feitos de uma lona que lhes confere ares de astronauta, utilizando, por outro lado capacetes quadrangulares de palha, que lhes cobrem a cabeça como se fossem uma espécie de orixá. As pontas do arcaico e do tecnológico se unem e, nesse percurso, se enfeixam os variados ramos (pretéritos, atuais, futurísticos) concebidos pelo projeto Brasil subterrâneo – seja o ficcional de Américo Sanches, seja o teatral de Celina Sodré e do Studio Stanislavski.

Foto: Rodrigo Castro.
Foto: Rodrigo Castro.

Porém, logo em seguida, as cenas míticas se iniciam, e desejo agora focar o impacto que elas provocam. Retomo os tableaux: em recente conversa, Celina me fala da dificuldade de operar a luz, em clarões e apagões que devem flagrar com precisão certos momentos e movimentos dessas cenas. Ela busca aquilo que define como teatro de “presentação”, e não de “re-presentação”. Há um investimento na imagem como forma de atualizar a força do sagrado e do ritual pela via do estético. E, para tal, valoriza-se a potência do que chamo aqui de “choque” ou “susto”: as imagens surgem em flashes rápidos, ou em rápidas sequências rituais, que capturam a atenção menos por indução do que por súbito estranhamento, mais por comoção do que por paulatina construção estética. Reforçando esse efeito, uma lona circunscreve o espaço subterrâneo da capela (sugestão da cenografia de José Dias), criando uma textura difusa e onírica que soma diafanidade ao forte elemento de “presentação” da cena. O resultado são fantasmagorias que nos confrontam e dançam perante os nossos olhos, delineadas a partir de “golpes” de luz.

Num suposto enredo da peça, as cenas míticas poderiam ser percebidas no espectro que vai da encenação das supostas pinturas nas paredes da capela Santana, até o transe místico sofrido pelos exploradores sob os eflúvios mágicos que emanam do lugar. Muitas leituras possíveis dessas cenas me ocorreram de chofre: considerações sobre as epifanias divinas na Grécia antiga, a partir de textos de filólogos alemães; a clareira que encerra a origem da obra de arte, para Martin Heidegger; a filosofia da linguagem e do mito, na perspectiva da metáfora mítica, em Ernst Cassirer; a antropologia da religião e dos cultos primitivos – tudo isso como forma de dar uma resposta ao que vi no teatro, reagindo à luminosidade e à obscuridade daquelas imagens remotas que repentinamente vinham de encontro à percepção.

Mas é preciso refrear o ímpeto monográfico: é necessário dar conta de um espetáculo, e não dar cabo dele. Dar conta daquilo que se vê e se sente, e não dar cabo das teorias que embasariam essa experiência. Nesse sentido, aceitemos um pensamento talvez de curto fôlego teórico e escassa justificativa racional, mas prenhe de sensações profundas – estéticas, religiosas, inconscientemente coletivas. Gostaria de sublinhar com isso o efeito que me atravessou como espectador: a dimensão do susto, do sagrado cenicamente elaborado, do rito teatral que traz à tona o estranhamento de uma imagem, a sua impressão peculiar na memória do espectador.

Em conhecido texto de 1919, intitulado em português de “O estranho”, Sigmund Freud se debruça sobre um tema estético: o efeito psíquico que certas obras (como o conto fantástico “Homem da areia”, de Hoffman) nos provocam. Ele qualifica, em alemão, de unheimlich esse efeito de estranhamento e fascínio diante de certas imagens perturbadoras com as quais a arte nos sensibiliza. Adverte-nos da proximidade ou da presença da palavra heimlich no sentimento do estranho, ou seja, no un-heimlich – a saber, a dimensão do heim, o íntimo, o doméstico, o familiar, ou ainda o confiável. Assim, para Freud, o estranho portaria em sua natureza algo de íntimo, reconhecível, e mais: algo que fora deveras recalcado no processo de formação da consciência. O efeito do estranho seria, então, produto desse retorno de algo próprio que teria sido deixado para trás, e cuja lembrança – via literatura – nos despertaria inquietação e comoção.

As imagens “subterrâneas” de A escada de Jacó impressionam pela capacidade de, como as imagens do estranho freudiano, despertarem determinados sentimentos de inquietação e consternação. O que é aquilo que vejo? O que exatamente retorna, cenicamente, do recalcado – no indivíduo, no coletivo – na montagem do Studio Stanislavski? O fôlego teórico e especulativo arrefece. Mas a obra faz com que o subterrâneo resista. Quanto mais camadas lhe são superpostas, ele retorna com tanto mais força. A escada de Jacó faz o subterrâneo vir à luz. Ele está aí. Cabe decifrá-lo.

 

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. “O estranho”. In: –––––. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

 

Renan Ji é Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Colaborador regular da Revista Questão de Crítica e membro das comissões julgadoras dos Prêmios Questão de Crítica e Yan Michalski.

 

[1] Cf. os apontamentos em http://www.revistaensaia.com/#!notas-do-subterraneo/c1jqk

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