A crítica, o artista e o intocável
Crítica da peça O bom canário, de Zacharias Helm, com direção de Rafaela Amado e Leonardo Netto
Uma história que fala do medo da exposição e o seu limite. O bom canário, texto do norte-americano Zacharias Helm, que esteve em cartaz no Teatro Poeira até o dia 4 de março, expõe a vida do casal Annie e Jack no momento em que os dois tentam lidar com um sucesso literário e um vício em anfetaminas.
Com direção de Rafaela Amado e Leonardo Netto, a peça começa com uma espécie de prólogo, no qual os atores caminham em torno de Flávia Zillo (Annie) que, parada no centro do palco, nem parece escutar as falas de seus companheiros de cena que ditam as características do que seria uma pessoa de personalidade fraca e vulnerável. Insistem em sublinhar a ideia de que “não é o mundo que é pesado demais”, mas sim algumas pessoas que não têm força para viver nele. E esses seres não são geniais, são “bundões”.
Quando a história começa, Annie inicia com seu marido, Jack (Joelson Medeiros), uma conversa alucinada por conta dos efeitos das anfetaminas. A personagem torna-se cada vez mais dependente dos comprimidos na medida em que a pressão externa (social) aumenta sobre ela. Jack, um marido apaixonado e paciente, releva o vício até que, quando fora do controle, o único caminho é lutar pela vida de Annie. Mas retornando ao inicio da cena, bastante cauteloso, Jack abre o jornal e lê, animado, uma crítica “positiva” sobre seu romance recém lançado. Para surpresa do marido, e suponho, do público também, Annie rejeita a crítica “positiva”, mesmo sabendo que esta pode mudar a carreira do marido. Chego, enfim, ao ponto que me interessa refletir sobre este espetáculo – Jack, confuso, olha para a mulher e pergunta: “Para que detonar uma boa crítica?”
Por razões claras, a palavra “crítica” desperta inevitavelmente o meu interesse. A palavra crítica usada nesta indagação me fez voltar para casa pensando no assunto. Óbvio que no contexto das personagens uma “boa crítica” era uma crítica normativa, que elogiava e enumerava os atributos do livro, ou melhor, do autor do livro – uma crítica mais sobre a qualidade do artista do que da obra. E ainda assim uma crítica temida e rejeitada por uma das partes. Por quê? Se pela lógica esta crítica traria bons frutos, ao contrário de uma “má crítica”, que além de evidenciar “defeitos”, causaria prejuízos à carreira do autor.
A recepção da crítica, neste caso, é abordada de uma maneira que pouco se vê ou se fala nos teatros. Sem ironias quanto à utilidade, sem brincadeiras bobas com relação a nomes de críticos conhecidos (refiro-me aos representantes da crítica jornalística. E que aqui, por conta da nacionalidade do dramaturgo, deveriam ser os críticos americanos), sem uma crítica da crítica. Existe uma legitimação por parte da maioria das personagens da crítica em formato anacrônico, o que significa dizer que se aceita o crítico como aquela figura que discursa sobre a verdade – O bom canário estreou mundialmente em 2007, em Paris, sob a direção de John Malkovich e recebeu inúmeros prêmios e indicações. Interessante porque é uma dramaturgia que realmente merece reconhecimento, mas por outro lado, a capacidade comunicativa do texto em outros países nos permite pensar que o entendimento sobre a crítica não varia muito nos outros lugares.
Voltando à peça, pode-se dizer então que existe uma divisão entre as personagens em conformidade com o tipo de crítica apresentada, e Annie, que rejeita todas as formas de crítica possíveis. Annie, em uma festa, encontra o crítico que escreveu sobre o romance, e juntos vivenciam uma discussão exaltada sobre verdade e rejeição da crítica. Não há diálogo, somente dois modos extremamente afirmativos e autoritários de fala, contudo, Annie sai perdendo por ter misturado anfetaminas com álcool e ter “falado mais do que deveria”. Este “mais do que deveria”, normalmente, não seria revelado numa crítica, porém, para que eu possa continuar este pensamento, será necessário que isto ocorra. De qualquer maneira, esta crítica (a minha) não se pretende ser propagandista (ou pelo menos, alcançar isto por meio do suspense). O que vou escrever está longe de ser o final da história. E quem foi que disse que uma história só vale pelo seu final?
Annie é a verdadeira autora do romance. Mas não agüenta a exposição, não suporta ouvir que se fale da sua obra, nem bem, nem mal, nem de uma outra maneira que sequer chega a ser imaginada. Annie não precisa de críticas, e por não ter força para lidar com esta realidade usa o marido como escudo. Como artista, seu ego não está sujeito à exposição. Sua reação ofendida com um ar pretensioso de “vocês não sabem o que estão falando” demonstra sua fraqueza diante do mercado literário, do comércio da sua literatura que é, numa análise fria, o que custeia suas anfetaminas, seu vício. Annie é uma artista intocável – “Não falem de mim. Não me analisem”. Mais uma vez, não é uma negação ao que uma crítica judicativa, de alguém dito importante, pode provocar de bom ou de ruim na vida do artista. É uma negação à crítica.
Poderia ser só fraqueza de uma pessoa que se droga como desculpa para fugir da realidade, mas criando uma hipótese sobre a história, – e isto, eu sei, é algo estranho de se fazer – Annie, no auge da sua desaprovação à crítica, era a única personagem que poderia questioná-la. Questionar a crítica do modo que lhe é apresentada, já que assim a mesma não faz sentido para a ela. Porém Annie, a artista, não faz isso, prefere se esconder no marido. E os outros personagens, o editor, o dono da editora, o marido, o crítico e o traficante não têm motivos para “detonar uma boa crítica”. Neste contexto, é a boa crítica que aumenta o valor do produto e melhora a vida financeira de todos (menos do crítico, talvez). Em outras palavras é dizer que a crítica normativa está, hoje, plenamente de acordo, e favorece as relações mercadológicas. Mas disso nós já sabemos. O que tem que ser dito é que uma vez sem questionamento esta crítica que atende ao mercado também está intocável.
A crítica intocável. O artista intocável. Um tempo de intocabilidade. Um problema.
A dramaturgia, na medida em que também é metáfora do comportamento contemporâneo, não nos deixa de jogar na cara a total falta de estranhamento que pode ser vista na reação do público em relação ao lugar de alocação da crítica em O bom canário. E isto só acontece porque ser intocável, ou estar intocável é normal. Um artista intocável, a verdade intocável da crítica. Isso é “normal”? De que período histórico este texto está falando? Do nosso mesmo (infelizmente).
E agora?
Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO.