Nós precisamos sonhar com uma frágil sinfonia?

Crítica da peça Sinfonia Sonho, do Teatro Inominável

27 de abril de 2012 Críticas
Foto: Thaís Grechi.

O espetáculo Sinfonia Sonho do Teatro Inominável, dirigido e escrito por Diogo Liberano, busca pensar o absurdo dos massacres infantis em espaços escolares, partindo de dois motes: a ficção presente no livro We Need to Talk About Kevin de Lionel Shriver e o caso real ocorrido na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo. Nesse sentido, a obra reflete sobre o espanto que nos atingiu ao assistirmos no Brasil um incidente semelhante ao de Columbine.

Tal acontecimento nos fez pensar sobre a brutalidade da globalização, visto que traduzimos/importamos um modelo de violência oriundo de outro contexto social à nossa realidade. Não sei se foi o primeiro fato de massacre infantil no Brasil. Mas certamente foi o primeiro de grande destaque na imprensa local, seguindo uma lógica explicativa própria aos fenômenos americanos, firmada na terminologia clínica internacional – o bullying.

O termo é a causa do absurdo. Ele busca justificar o injustificável. O Teatro inominável não aceita essa lógica causal – não quer dar nome ao horror. Constrói uma obra que, do início ao fim, luta contra esta simplificação incutida em nossa mentalidade. A peça opõe-se ao esquematismo dos meios de comunicação por conta de uma vontade poética, reivindicando a força simbólica e reflexiva da poesia.

Há três blocos sociais em Sinfonia Sonho: a família extraída do livro americano, a família (mítica) de vizinhos, inspirada no massacre em Realengo, e as duas repórteres que entram em cena, expondo o automatismo da imprensa diante do pânico grupal. Além disso, em cena há o jovem Liberano lendo as rubricas. Ele é o poeta que busca o estado de ação, participando pelo simples ato de ler breves passagens descritivas. Aí se observa o estranhamento do poeta diante do episódio trágico da polis. Sua fala-leitura se faz presente até ser invadida pelas repórteres que roubam as suas palavras. Esta participação pequena e oprimida do dramaturgo-diretor no decorrer da peça reivindica o estranhamento trágico e expõe uma critica à nossa sensibilidade calcificada e cínica pela logicidade midiática.

O Teatro Inominável leva a sério a si e aos outros. Esta afirmação é propositadamente polêmica por perceber tal companhia fora de um veto a seriedade que atinge o nosso teatro. Porém, o termo sério aí não se refere ao narcisismo da seriedade (o mais comumente praticado), em que o sujeito/coletivo se liga a determinados temas e quadros referenciais com a aspiração de trazer para si autoridade. Tal sentido de gravidade brota da percepção de um ponto de interseção existente entre mim e o outro. Ou seja, a existência de um nós que não deve ser interpretado como fascista, visto que a necessidade dessa pessoa do discurso se dá pela indispensável aproximação dos sujeitos no momento da invasão do horror, uma vez que esse acaba por produzir uma aproximação solidária. Esta solidariedade se forma por meio de um conjunto comum (este nós) no que ele tem de arriscado, isto é, a minha dor + a dor do outro = a nossa dor. Daí nasce o desejo de sinfonia. Não de uma sinfonia romântica de aspiração fascista, nem de uma sinfonia real, mas de uma frágil e dolorosa sinfonia, isto é, um sonho de sinfonia – frágil utopia (como o desejo de Kevin de se tornar música).

Liberano percebe que determinados temas sociais e políticos devem ser discutidos e postos em cena de modo responsável. Certamente, a existência do humor em Sinfonia Sonho não está se opondo à necessidade de se trabalhar o tema do massacre infantil de modo respeitoso. O humor visto neste espetáculo não é aquele reivindicado por uma inteligência irônica (‘superior’), mas é o humor crítico, dobrado sobre si mesmo, pensando acerca de sua medida diante do advento catastrófico. Nesta peça, o riso nervoso chega por conta da falta de lágrimas, ou juntando-se a elas. Pois não rimos apenas porque somos superiores aos animais, como muitos já disseram, rimos porque estamos automatizados para o riso, assim como as nossas máquinas expõem o automatismo da nossa inteligência. Logo, nem todo riso é crítico. Torna-se crítico aquele que percebe o automatismo de seu riso e de sua inteligência.

A associação à ideia de tragédia contemporânea em Sinfonia Sonho deve ser lida pela vontade do coletivo de tematizar um acontecimento real e político que nos atingiu. Este ultrapassou o limiar do ficcional e da loucura e alcançou uma realidade esquecida: Realengo. Explicar, racionalizar o fato seria uma atitude ingênua. Deve-se preservar um sentido poético e trágico diante desses acontecimentos. Assim sendo, não há moralismos. Há seguramente o sentido moral da tragédia – seu espanto diante da desmedida do homem. Conforme Liberano relatou, este ultrapassamento se inscreveu no próprio processo de feitura da peça, uma vez que o coletivo estava fazendo suas pesquisas, lendo o livro de Gilles Deleuze & Félix Guattari O antiédipo… e o de Shriver, quando se sentiram forçados a reagir ao massacre sucedido nesta escola municipal do Rio de Janeiro.

Para compor essa tragédia contemporânea, o coletivo buscou máscaras sociais atuais. Em Sinfonia Sonho, os três grupos sociais (as duas famílias e as repórteres), apesar de se relacionarem e de serem fortemente estilizados, possuem um tratamento diferenciado. A estilização se dá pelo fato de no próprio figurino e na composição das personagens se verificarem o caráter reconhecível dos tipos solicitados dentro de um imaginário comum.

As duas jornalistas interpretadas por Natássia Vello e por Flávia Naves optaram por criar o estereótipo de suas figuras através de uma violenta apresentação dos clichês da profissão. Tal lugar-comum se acentua na fala ao microfone, expondo o automatismo da imprensa perante o ocorrido. No entanto, o trabalho com o clichê não impede que as atrizes construam momentos de quebra. Ou seja, na figura protocolar e burocrática da jornalista há espaços para a interiorização. A primeira aparição de uma delas (Natássia Vello) se dá mediante a exposição desta tensão, pois a figura pública e protocolar da âncora de jornal reage de modo grave ao conteúdo trágico da notícia. Há uma sutil diferença entre as duas atrizes: Flávia explora mais o humor artificial da atividade jornalística, enquanto Natássia está mais contida e interiorizada em cena. Tal diferença se efetua sem a perda da exposição da violenta artificialidade dos meios de comunicação.

A família retirada do livro We Need to Talk About Kevin de Lionel Shriver aparece em cena como se fosse composta por personagens em quadrinhos. A composição da mãe, Eva (Virgínia Maria), é bem requintada e muito apoiada na observação sensível de personagens caricaturais de famílias americanas, presentes em programas de TV/filmes/séries/desenhos-animados que expõem a célula familiar de modo crítico. Seguindo o mesmo recurso de observação, o ator e a atriz que interpretam o filho, Kevin (Márcio Machado), e a filha, Célia (Adassa Martins), constroem suas caricaturas. Eles, entretanto, ultrapassam o caricatural construindo um jogo de interiorização e exteriorização. Tal procedimento parece ser o coração da peça, uma espécie de intermitência entre a máscara ficcional e a morte real. Isso fica bem visível em dois momentos: quando Kevin e Célia estão ensaiando uma peça infantil depois do massacre das crianças e no final da peça quando estão caídos no chão.

Foto: Thaís Grechi.

A família mítica que alude ao acontecido em Realengo possui outro tratamento formal. Esse não está baseado na caricatura de programas de TV. As roupinhas da criança morta, retiradas por Célia de dentro da barriga de Moira (a mãe pobre do menino Thomas), expressam a qualidade de tratamento dado a essas figuras. Elas são uma espécie de monstruosidade social, condenada ao extermínio. A mãe, Moira (Laura Nielsen), o pai, Corley (Andrêas Gatto) e o filho, Thomas (Gunnar Borges) são frágeis interiorizações, assim como o ventre ficcional daquela mãe. As roupinhas expressam o desamparo destas figuras. Entre os três, há uma espécie de doçura doída de um real perdido. O Realengo da peça é cru, seco, mas irreal. Porém sua irrealidade é como a loucura daquela mãe. É a ficção mentirosa. E não a ficção em sua plenitude crítica e criativa. Realengo é o resultado da violência da globalização em nós – que pôde construir um assassino, vestido de mulçumano pela identificação com a cultura periférica do islã, mas justificando o seu ato pelo bullying psicológico, próprio da terminologia clínica americana.

No espetáculo, há uma belíssima cena em que o jovem Thomas relata a sua morte. Em outra de igual qualidade assistimos ao pai diante do corpo do filho morto. Elas retratam bem o desamparo desta família. De certo modo, é como se as duas cenas fossem as roupas da barriga fictícia da Mãe, Moira (o destino). Sinfonia Sonho formula uma ficção crítica e criativa que discursa sobre o horror presente em nossas ficções doentias, nossas tragédias. Isto se dá porque Moira (a mãe-o destino) está presa a esse engano, ao entendimento doentio sobre a ficção. Precisamos de um antiédipo para acabar com a lógica viciada e enganosa que constrói as tragédias humanas. Mas enquanto elas existirem vai ser necessário refletir sobre elas por meio do estranhamento poético próprio à ficção em sua face criativa e crítica.

Devido ao fato de essas máscaras serem reconhecíveis e de os acontecimentos estarem frescos em nosso imaginário, a peça faz menção aos fatos utilizando-se de elipses. Sabe-se do massacre, das máscaras sociais, da angústia dos acontecimentos, tanto do de Realengo quanto dos das escolas americanas, que alimentaram a ficção de Shriver, porém estes episódios não são sublinhados na narrativa do espetáculo. Em cena, não há massacre. Ele está presumido na mente do público e nas falas das personagens que se referem ao acontecido. Assim, Sinfonia Sonho nos mostra o tema referido sustentando o sentido de tragédia solicitado pelo espetáculo, visto que assistimos à peça com o libreto do ‘mito’ dos massacres em nossa memória.

Apesar da diferença entre os blocos, Sinfonia Sonho edifica um sentido de todo por meio da centralização em torno do tema, pela ocupação do espaço, e, principalmente, muito ancorado às direções de movimento (Helena Cantidio) e música (Philippe Baptiste). A totalidade dentro desse espetáculo se apresenta na forma de dobras, isto é, a peça se liga por dobras elípticas e não por ser um todo esférico sem rugas. Mas certamente há nela essa vontade totalizante própria à tragédia. A tarefa da direção de movimento deve ser entendida como uma tinta que une os desenhos. Ela faz com que essas máscaras e composições flutuem e se dobrem dentro desta ‘sinfonia’. Sem esse trabalho e sem a música, o espetáculo não alcançaria o seu desejo de ser uma tragédia contemporânea. Pois não há tragédia sem música e sem coreografia. Certamente, a qualidade das direções deve ser valorizada pelo grande desafio proposto pelo grupo e pelo resultado atingido.

Porém, a meu ver, a direção de movimento se excede com suas manchas de tinta em determinados momentos, fazendo com que o trabalho de corpo caia no risco da abstração: o vago. Às vezes, Márcio Machado se excede gestualmente, correndo o risco de apresentar em seu trabalho um exibicionismo corporal desnecessário. Mas a alta qualidade de sua pesquisa de ator não se perde. Já a gestualidade abstrata no corpo de Adassa Martins nunca cai nesse risco, seu corpo treme, desgoverna-se, mas não vagueia sobre si mesmo, nem perde o foco de contracenação ou de sua ocupação espacial. Laura Nielsen, Andrêas Gatto, Virgínia Maria, Natássia Vello e Flávia Naves atendem com precisão ao que lhes é solicitado, sem correrem o risco de se perderem sobre a partitura corporal. Gunnar Borges constrói momentos abstratos cheios de lirismo, repletos de atenção ao que está sendo trabalhado na cena. No início da peça, seu corpo parece flutuar dentro de um ventre materno, e, ao fim do espetáculo, flutua nas nuvens sendo dilacerado por um balão. Parece haver um elo entre o jovem morto dessa família e o pai pacífico da outra, vestido de branco. Entretanto, no trabalho de Dan Marins (Frank – o pai de Kevin e Célia), a vaguidão da expressão corporal fica mais acentuada. Sua diferenciação daquele ciclo familiar está muito apoiada numa execução de gestos, que, em alguns momentos, apresentam o esqueleto da partitura corporal, como se o ator estivesse dando atenção à sua ação física mais do que a contracenação com os outros atores do espetáculo.

É interessante quando a pesquisa corporal destrói o que determinados homens de teatro chamaram e chamam de psicologismo. Contudo, a execução acentuada de partituras, reconhecíveis em espetáculos de dança contemporânea, pode, igualmente, cair numa reificação de um mero fisicalismo. Por isso, gosto especialmente da coragem do coletivo de pôr em cena um gesto de tapa na cara melodramático (o de Moira em Corley), encarando toda a pieguice e anacronismo do ato. A execução desse gesto junto ao flutuar do menino obriga o público a perceber a justaposição dos procedimentos. Faz-se assim uma dobra.

Foto: Divulgação.

Em Sinfonia Sonho, a composição do espaço (Leandro Ribeiro) é crua e interessante. Ela me remeteu, sutilmente, à imagem de uma sala de aula. Essas famílias fictícias e o dramaturgo-diretor são os ‘alunos’ dessa escola sem uma figura de poder (o professor/ o Estado). Penso que essa ausência é crítica, pois o Estado abandonou as escolas, deixando o professor sofrer as consequências da revolta contra o poder. Sem poder algum nas mãos o professor virou o Judas dessa revolta social. Eis outra peça, outro tema para uma grande tragédia. Junto ao público estão as duas jornalistas. Na plateia, elas ratificam o nosso automatismo de receptores/consumidores midiáticos diante desse espetáculo atroz.

Então… Precisamos sonhar com uma frágil sinfonia? Se for possível sonhar sem o pesadelo do bicho-papão, sim.

Digressão final:

Fico feliz que o espetáculo tenha surgido numa universidade pública brasileira – UFRJ. De algum modo, há um retorno ao país, em forma de reflexão poética, sobre o absurdo de Realengo.

Na peça, há as famílias, a imprensa, os alunos, o diretor-dramaturgo (representando os artistas que trabalham com arte). Há, entretanto, uma ausência: a figura do professor, esquecido em nossa sociedade. Por isso, o meu agradecimento aos professores que orientaram essa peça de formatura. Sem eles, não há esperança para se construir uma arte reflexiva neste país. O fato de se fazer menção a essa ausência não se configura numa observação negativa à peça. Apenas é a exposição de uma constatação: há um veto estético diante da figura do professor. O empobrecimento dessa figura é tão grande em nossa cultura, que é mais fácil imaginarmos uma tragédia baseada em figuras marginais do que na imagem do professor.

Uma reflexão:

Haverá um Eurípides que terá coragem de trazer o professor para o centro de uma tragédia? Ou o professor continuará rebaixado pela violência das comédias cotidianas?

Uma dedicatória:

Sem o afeto que eu tenho por Marina Vianna (atriz generosa e professora de teatro) essa crítica não existiria. Foi ela quem me apresentou o Teatro Inominável, e me ensinou a apreciar a coragem desse coletivo.

João Cícero Bezerra é crítico teatral, dramaturgo e teórico de arte, formado em Teoria do Teatro, mestre em Artes Cênicas e doutorando em História Social da Cultura.

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