VemVai – O Caminho dos Mortos

Conversa com a Cia Livre

20 de março de 2008 Conversas
Foto: divulgação.

Esta conversa foi realizada no dia 1º de março de 2008, durante a breve passagem da Cia Livre pelo Rio de Janeiro. A diretora Cibele Forjaz conta a trajetória da montagem do VemVai, fazendo um relato importante sobre o período de pesquisas do grupo e explicitando como isto se deu na prática, como a pesquisa e a cena estão intrinsecamente conectadas. Num segundo momento, os integrantes da Cia Livre falam sobre o lugar do VemVai na trajetória do grupo, seus pontos em comum com os outros espetáculos e suas características particulares. Falamos ainda sobre a relação da peça com o público carioca e com um público mais específico, a crítica.

CIBELE FORJAZ – Por uma questão de costume, o diretor fala pelo espetáculo. Então as pessoas geralmente querem fazer as entrevistas comigo. Mas de fato a criação do VemVai é tão coletiva que é difícil saber onde começa a ação de um e a ação de outro. É lógico que as funções são delimitadas e que quem, digamos, finaliza do lado de fora sou eu. Mas o projeto inteiro é coletivo, desde a hora em que a gente inventa ele até a criação das cenas, a pesquisa, a escritura do texto. Da mesma forma, o Newton finalizou a dramaturgia, mas quem criou estas cenas no próprio corpo foram os atores. Então seria muito legal você dar uma palavrinha, por exemplo, com o Edgar, que está na Cia desde o começo, e com a Lúcia que fez uma parte da dramaturgia junto. Isso dá uma pluralidade e tem a ver com a forma de criar o espetáculo. É uma forma de furar essa cara de que é o diretor que é o criador do espetáculo.

DANIELE AVILA – A gente pode começar conversando sobre a trajetória do espetáculo, desde o processo criação até este momento, em que vocês vieram para o Rio de Janeiro.

CIBELE – Ele surgiu de um tema bem amplo, uma pesquisa de fomento que chamava Mitos de Morte e Renascimento na Cultura Brasileira. Era uma pesquisa que começou bem ampla para que o foco fosse dado pelo coletivo. Em processo. O que é muito diferente de dizer: vamos trabalhar sobre esse aspecto. A gente queria que começasse de uma maneira geral. A gente procurou um parceiro na antropologia que foi o Pedro Cesarino, que de cara deu pra gente uma espécie de curso beabá, desde a história da mitologia, não a mitologia em si, mas a história do conceito: quando o conceito foi criado, o porquê, quais são as formas de pensar a mitologia, como os estruturalistas pensam, como os românticos pensavam e, principalmente, como a antropologia brasileira começa a ver isso. E aí a gente passou a três linhas de pesquisa: África-Brasil, povos ameríndios e a mestiçagem, a hora em que tudo começa a confluir e a se comer, digamos assim. E tivemos neste um mês e meio ou dois um beabá de só de pesquisa, estudo, leituras, de cada uma dessas relações. E então escolhemos, neste momento, que o foco seria povos ameríndios, que já era muita coisa pra um espetáculo só. Depois disso, todo dia, oito horas por dia, um trabalho intensivo. Na segunda parte, que eu chamo de imersão, a gente escolheu o foco da pesquisa e teve mais quatro meses em que levantamos vários mitos de morte de várias partes; tivemos um curso de antropologia um pouco mais aprofundado, principalmente sobre a noção de vida, a noção de morte, formas de caminhos-morte, canibalismo guerreiro, canibalismo funerário, quais são as diversas visões que a antropologia vai ter do rito. Tem muitos cronistas de 1500, 1600 que fazem inscrições e a antropologia vai lendo isso de forma diferente no decorrer do tempo. Os antropólogos dos anos cinqüenta têm uma noção, os dos anos oitenta têm outra. A gente trabalhava sempre de duas formas: uma pesquisa teórica e analítica e uma pesquisa cênica. Uma pesquisa é assim: você puxa um fio, depois vem uma coisa depois vem outra. A gente fez exatamente isso que se faz com uma pesquisa teórica, mas produzindo cena. Então o Pedro, que trabalha aqui no Museu Nacional do Rio de Janeiro, passava uma semana com a gente, lendo, pesquisando, levantando mitos. Então a gente passava quinze dias criando cena sobre tudo o que era lido e analisado, inclusive texto teórico, texto de antropologia, tudo era relido, a gente comia tudo cenicamente. Depois a gente apresentava pra ele e analisava. Isso foi de abril a julho. Depois disso, chegou o Newton. Então, quando ele chegou, em agosto, a gente apresentou cenas durante três semanas, todos os dias. A gente fazia cena sobre tudo, não tinha um roteiro a seguir. Depois dele ver tudo, sentamos – ele, eu e Pedro – e fizemos um roteiro de começo, meio e fim, do que seria o percurso do VemVai. Sendo que ali no meio das pesquisas eu já tinha chegado ao conceito básico do espetáculo, que é essa idéia de caminho dos mortos. Tinha alguma coisa na diferença do que é morrer e as noções de morte pra cada povo. E a gente não tá trabalhando com um povo, são cento e oitenta povos existentes – a gente estudou mais profundamente uns dez, doze. Não dá pra gente botar tudo no mesmo balaio e dizer: é índio. Não é. Então, o que eu achei de comum era essa idéia de caminho, ou seja, que tinha um caminho entre aqui e lá e que, para aquele lugar que era lá, embora se constituísse como uma forma diferente de lugar pra cada povo, existia um caminho. E um caminho com uma idéia de geografia mesmo. Então a gente já tinha chegado a essa conclusão que seria um espetáculo de percurso, no qual o público seria de alguma forma um duplo do morto, ou seja, o público é – como um morto – alguém que atravessa esse caminho. E ele seria nosso parceiro na criação deste espetáculo. Aí fizemos um roteiro e voltamos à sala de ensaio. Voltamos a fazer um workshop de improvisações só que a partir de um roteiro feito. Então pegamos os mitos escolhidos e começamos a re-improvisar sobre tudo. O Newton escrevia, mandava pra gente, a gente levantava, devolvia pra ele e assim por diante. E assim foi até quase perto da estréia, até gente finalizar a dramaturgia. Algumas cenas foram rápidas, já a cena dois foi escrita umas onze vezes. O VemVai, por exemplo, que é a passagem do caminho, era um canto, são dois poemas-canto. É um poema concreto, dificílimo, parece Joyce. A gente acabou chegando numa cena musical porque se tratava de uma compreensão difícil do que aquilo significava. Cada cena foi escrita de um jeito diverso. As três primeiras cenas têm a mesma estrutura, que é um problema no presente que é resolvido com a narrativa de um mito e que transforma o fim da história, resolve de alguma forma aquele conflito a partir do mito. Porque era importante pra gente essa idéia de “a Cia conta”, que já vinha do Danton. Porque é muito delicado você falar sobre um tema desses. O que você vai dizer? Você vai falar “por”? Não dá, né? Ou eu vou dizer o que eu entendi “de”? Então o máximo, como artistas, que a gente pode dizer é: comemos esse material. E o que a gente tá trazendo aqui é um material nosso, no qual a gente recria aquilo que a gente entendeu daquilo. A vida que a gente tá mudando é a nossa. A gente não pode falar por ninguém.

DANIELE – E vocês estrearam em São Paulo em março.

CIBELE – Começamos no dia 1º de abril de 2006 e estreamos no dia 31 de março de 2007. A gente ficou quatro meses lá, depois foi pra um festival em Suzano, Recife e Cariri. E agora aqui no Rio. Agora vamos fazer interior de São Paulo e os festivais nacionais.

DANIELE – Como é estar no Rio no meio dessa trajetória? Como é a relação da peça com as pessoas na platéia, por exemplo?

CIBELE – A gente tem vindo ao Rio seguidamente, com quase todas as nossas peças. É engraçado, ontem a gente tava falando sobre isso, que a gente deveria dedicar o espetáculo à diferença. Porque cada público é um público, cada pessoa é uma pessoa.

DANIELE – O espetáculo evidencia mesmo isso. A recepção é muito pessoal, não dá pra falar de uma maneira geral que há um público do espetáculo. A peça se relaciona com a subjetividade de cada um.

CIBELE – E a idéia é um pouco essa, que cada pessoa complete o espetáculo, porque ele não tem uma moral da história. Ele é incompleto. A idéia é que tenham lacunas que possam ser preenchidas pela imaginação e a relação que cada pessoa que passa pelo caminho tem da morte.

DANIELE – E como se situa o VemVai dentro da trajetória do grupo? O que essa peça tem de comum e o que ela tem de particular com relação aos outros trabalhos?

CIBELE – Eu acho que ela é um desenvolvimento do trabalho que a gente vem fazendo, de uma linguagem que a gente vai criando. A gente passou quase dois anos imerso no Nelson Rodrigues, montamos dois espetáculos dele. Depois Tennessee Williams. E aos poucos a gente achou que era necessário ter uma criação mais autoral. Essa é uma pergunta que você pode fazer pro Edgar, por exemplo. Já no Danton, a gente tinha essa idéia de uma completude realizada com a platéia, com a presença da platéia. Todo espetáculo de teatro é assim: acaba na presença do espectador. Mas radicalizar essa idéia de jogo, de incompletude, pra que realmente tivesse alguma coisa de rito, que é diverso de acordo com a platéia. Então no caso do Danton realmente a platéia participava da feitura do espetáculo. No caso dessa peça, a gente já começou disso, a gente já sabia que seria um espetáculo que exigiria a presença da platéia.

DANIELE – E o que ela tem de mais particular? O que vocês nunca tinham trabalhado antes? Tem algum elemento que seja especial desse espetáculo?

CIBELE – Acho que sim. Acho que principalmente esse “de onde nós viemos”. Acho que a nossa educação é muito européia, europeizante e colonizada. Nós temos sim, muito, da cultura africana, da cultura ameríndia na nossa existência, nos nossos hábitos, dentro da nossa casa, dentro da nossa língua, mas a gente não sabe e não dá valor a isso. Então pra gente foi muito impressionante descobrir isso. Eu tenho 41 anos de idade, sou razoavelmente bem formada, fiz universidade, fiz pós, sou artista, e não sabia nada, nada, da nossa matriz ameríndia. Tudo o que eu sabia eram mitos. Era índio de penacho. A gente faz escola e a gente sabe sobre romantismo alemão, sobre teatro mundial, e a gente não sabe nada sobre as relações de cunhadismo, sobre as relações entre parentes e afins, sobre luto, sobre nome, sobre como se constitui a nossa cultura.

DANIELE – Os livros de história que as crianças estudam na escola não têm foto de índio, têm desenhos, romantizados.

CIBELE – É óbvio que isso não é ingenuidade, é óbvio que isso é um massacre. É quase como se a gente descobrisse que a gente é cúmplice de um massacre. Mesmo que seja por desconhecimento. A gente não pode, como artistas, como pessoas intelectualmente bem formadas, aceitar que não se saiba, que não se entenda, que não se repita, que isso não seja material fundamental da nossa criação. Isso foi muito novo pra gente e acho que isso é uma responsabilidade de cada um de nós. Todos nós, brasileiros. Cada um de nós. De saber de onde a gente veio, pra onde a gente vai e qual é a nossa responsabilidade nisso. Isso foi muito novo.

DANIELE – Tem um momento no espetáculo em que o Edgar pergunta “o que fazemos diante do outro?” Essa me pareceu ser uma pergunta que o espetáculo pode fazer para o público do Rio. O VemVai é um “outro” no circuito carioca. Tem uma estética muito diferente das peças que estão nos teatros da cidade agora. Você percebe uma diferença no público do Rio?

CIBELE – Ontem eu disse pra todos que a gente tinha que aceitar a diferença, porque a gente tá lidando com isso. Porque se a gente se sentisse recusado e recusasse, a gente ia criar um abismo entre a gente e o público e a idéia é que o público é o ator principal da peça. Se o público é o ator principal da peça, a gente tem que ter muita sensibilidade com a diferença. É, sim, diferente. Mas é uma diferença que talvez seja uma defesa em relação à diferença. Diante do diferente, antes de comer eu digo: não, não sei, não gosto, acho estranho. Se a gente tivesse isso em relação ao público, aumentaria o abismo. E, realmente, quanto mais a gente aceita, mais a gente vê que somos todos diferentes. Esse abismo faz parte do nosso trabalho, que é o trabalho da comunicação, da criação conjunta, de você realmente criar coletivamente num mundo onde a individualidade é cada vez maior. A gente tem que acreditar que para além das diferenças, metafisicamente, a questão da morte é uma questão fundamental pra cada um de nós e que a gente tem que ritualizar isso de alguma forma. Então é coletivo.

DANIELE – É possível ver essa diferença na platéia – duas pessoas sentadas lado a lado tendo reações completamente diferentes sem se contagiar mutuamente: uma pessoa assistindo com uma atitude interessada e outra bastante incomodada.

CIBELE – Às vezes, o incomodar-se é um jeito de se transformar, de ser tocado pelo espetáculo de uma forma muito grande. Porque tem carne podre. Carne podre é uma forma de ritualizar a morte. Não é simples. O assunto não é simples. Algumas perguntas, se você quiser fazer pros atores, eu vou ficar muito feliz.

Aqui, mudamos de ambiente e nos sentamos com os demais integrantes da Cia Livre: os atores Chris Amendola, Edgar Castro, Eda Nagayama, José Eduardo Domingues, Henrique Guimarães, Lúcia Romano e Raquel Anastácia, além da cenógrafa, figurinista e diretora de arte Simone Mina.

DANIELE – Eu tava perguntando pra Cibele qual seria o lugar do VemVai dentro da trajetória do grupo, o que teria de comum e de particular nesse projeto, o que ele tem de especial nessa trajetória.

EDGAR CASTRO – Tem uma questão que é comum da Cia, que é um campo de investigação.

SIMONE MINA – De certa forma, nos outros espetáculos, a platéia ficava um pouco mais estática, digamos assim. Apesar dessa relação mais próxima, de uma intimidade, não tinha um trânsito da platéia, que eu acho que é a particularidade do VemVai. No próprio nome, que diz “caminho”, a idéia de que as pessoas estão convidadas para esse caminho.

CIBELE – Acho que a gente vinha num caminho cada vez mais de conjunção com a platéia, foi uma aproximação cada vez mais dessa relação, que não é fechada, é um jogo sempre. A gente fica muito dependente dessa relação que é diferente a cada lugar, a cada platéia, a cada dia. Acho que é um lugar de investigação do qual a gente vem se aproximando – mais do que a cada espetáculo – a cada dia mesmo.

RAQUEL ANASTÁCIA – Engraçado, eu não tinha feito outros espetáculos, mas o Arena conta Danton já suscitava a participação do público logo no início. Tinha jogo. E isso se desenvolveu mais agora.

SIMONE – Agora tem um reconhecimento do espaço junto.

CIBELE – A gente tava brincando um dia que o nosso destino é um teatro épico-ritual. Tem um pouco a ver com um trânsito e uma pesquisa que vai desde a idéia do jogo, ou seja, da linguagem própria do teatro, com esses temas que a gente tá trabalhando no momento: o mito, o rito de passagem, a forma de trabalhar com os temas que a gente relia a cada espetáculo. Então, é um teatro épico-ritual porque o tempo inteiro a gente diz: estamos fazendo teatro, isso é um jogo, nós somos artistas-criadores, estamos aqui, inventamos isso, a cada dia diferente, improvisamos, quebramos. E, por outro lado, existe uma sacralização de cada dia que a gente passa por um percurso que possa de alguma forma nos transformar e transformar quem está vendo.

EDGAR – Acho que é a peça que mais aponta pra uma raiz cultural brasileira, apesar de eu ter passado por Nelson Rodrigues, mas parece que Nelson é uma raiz mais urbana e essa atinge uma raiz mais ampla, uma raiz inclusive obscurecida.

DANIELE – E como vocês, atores, vêm a relação da peça com o público carioca especificamente? O VemVai é, de certo modo, um “outro” no teatro carioca? Ele é uma diferença? Vocês acham que existe essa diferença?

RAQUEL – Pra mim toda platéia é uma platéia, é única, mas aqui no Rio o modo de fazer teatral é bem diferente mesmo, embora tenha grupos como o da Ana Teixeira, como a Cia dos Atores, que têm um trabalho mais de pesquisa… O que eu já ouvi de comentário das pessoas, até no banheiro depois da peça, são os mais diversos: dizem até mesmo que choca, e comentam muito essa relação com o índio Galdino, que já viu uma peça parecida, sobre o tema do índio. Mas é diferente.

EDGAR – Eu confesso que eu não consigo perceber muita diferença. Uma coisa que me chama a atenção é o público do SESC Copacabana. Me parece que Copacabana é um bairro que tem uma população de terceira idade bastante significativa e parece que esse espaço aqui é muito freqüentado por esses habitantes do bairro.

DANIELE – É um público de centro cultural, assim como tem o público do CCBB, que vai ver o que está em cartaz naquele lugar, e não aquela peça especificamente.

EDGAR – E o que eu sinto de diferença – e que é numa parcela de público – são esses moradores de Copacabana.

CIBELE – Uma pessoa ficar impressionada ou com ânsia de vômito, é um jeito de passar, muito forte, físico.

EDGAR – Isso não foi exclusividade daqui não, lá em São Paulo isso aconteceu muito.

CIBELE – Tem pessoas que reagem no começo e podiam recusar e ir embora, mas elas vão até o final e se entregam de várias formas, inclusive tendo nojo. É tudo muito simbólico na peça. Ninguém pega um fígado e joga na cara de ninguém, é um rito que se faz, é uma cena simbólica. E eu sinto que existe uma aceitação – diversa – de alguém que se entrega. É muito bom você ter um público que aceita de outro jeito.

EDGAR – Tem um momento da peça que eu acho que é bem representativo disso, que é o momento final, quando as pessoas vêm queimar o seu vaká aqui. Eu sempre tenho observado o público nesse momento porque isso é um pouco um termômetro de como foi essa travessia toda, de como foi esse deslocamento. E são coisas muito bonitas que acontecem, pessoas que chegam e ritualizam a sua queima. Eu acho que não é realmente uma peça de fácil digestão.

LÚCIA ROMANO – Não é uma peça digestiva. Eu acho que tem um público especificamente… Quanto a isso eu acho que seria um movimento de todo o teatro do Rio de Janeiro, pra que isso fosse transformado. Existe uma chamada índole do espectador aqui no Rio que eu não sei se é real em relação às pessoas que vão ao teatro, mas é real em relação às expectativas da crítica. Acho que é um problema, porque o crítico também é um espectador. Os críticos em vigência no Rio de Janeiro são os nossos parceiros artísticos. A gente tava conversando sobre a crítica que saiu na Veja, que não é uma crítica negativa, mas que parece cobrar do espetáculo que ele fosse um pouquinho mais digestivo. E ele diz que essa indigestão que ele sentiu foi causada por um obscurantismo do espetáculo, uma opção do espetáculo de lidar com tripas, lidar com escuridões. Eu acho que isso não acontece no espetáculo. Isso tem a ver com a expectativa dele como crítico, dizendo o que a produção artística deveria oferecer para aquela platéia. Se o crítico acha que é isso o que deve ser oferecido, triste do teatro que vai dialogar com esse crítico.

CIBELE – Isso tem a ver com a formação do jornalista hoje em dia, que é: você tem que escrever para o seu público; de alguma forma não existe a idéia de que uma comunicação muda a pessoa – tanto quem escreve, quanto quem recebe – que isso é uma relação de transformação mútua, de afetação. Não. A idéia é que: se tal revista é consumida por tal tipo de público, nem eu afeto nem eu sou afetado, mas eu escrevo segundo a regra x, que diz assim: para consumidores de classe A e B se escreve assim e eles recebem assim e compram tal produto que, por sua vez, é a publicidade que paga aquela revista. Então, tudo é produto, tanto quem escreve quanto quem compra, quanto a própria revista. Não existe a idéia de afetação, transformação e uma transformação em relação.

LÚCIA – Nós estaríamos fazendo o mesmo se a gente exigisse que o espectador agisse assim ou assado no espetáculo. Isso a gente não pode fazer.

CIBELE – Cada um vai pra um lugar, tem gente que ri, tem gente que chora, é muito pessoal. E, de alguma forma, a crítica é perniciosa quando é um meio que já trabalha com uma expectativa de que aquele cliente – não pessoa, mas cliente – deve ou não achar de tal ou tal espetáculo. Como a pessoa da Veja que escreve para o público da Veja. Mas as pessoas não são assim. Elas não são classe A ou B que consomem tal coisa. Isso é a expectativa que o mundo tem delas. Elas são pessoas subjetivas, cada uma com a sua história, cada uma com a sua vida e têm reações absolutamente diversas. E a arte serve pra isso, pra relembrar as pessoas que elas são gente e não um número num produto.

DANIELE – Vocês tiveram recepção de uma crítica alternativa à crítica jornalística? Críticas de blogs ou feitas por estudantes?

CIBELE – Tivemos. Várias.

DANIELE – E como foi? Tem uma diferença entre esse tipo de crítica e a crítica jornalística?

CIBELE – Foi muito bom isso. Tem uma diferença sim, é mais pessoal, e mais livre, é maior.

RAQUEL – A gente teve uma crítica de quatro páginas…

CIBELE – …analisando cada coisa, cada detalhe. Pessoas que escrevem em blog, que escrevem coisas diferentes, que gostaram muito, que questionam, analisam ou reclamam. Você vê que é uma relação muito mais verdadeira, que independe se a pessoa diz que aqui foi positivo e ali não.

DANIELE – É um tipo de diálogo.

CIBELE – Um diálogo real, concreto. E não isso: a pessoa tem que avisar o leitor da Veja que pode ser que seja um pouco sujo.

Vol. I, nº 1, março de 2008

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