Um teatro assombrado por belezas

Crítica da peça Assombrações do Recife Velho

10 de dezembro de 2008 Críticas
Foto: divulgação.

Um dos espetáculos mais concorridos do 11º Festival de Teatro do Recife, realizado mês passado, foi Assombrações do Recife Velho. Mesmo a apresentação sendo à noite, houve filas se formando em frente ao teatro Armazém desde o princípio da tarde. Há boas razões para este interesse. A primeira: o tema. A montagem é baseada em um livro homônimo de uma das maiores personalidades do Estado  pernambucano, o escritor Gilberto Freyre. A segunda: A companhia  Os Fofos Encenam, que assina a montagem, é de São Paulo, mas boa parte de seu elenco e o seu diretor  Newton Moreno são de Pernambuco.  A terceira: a peça, até então, não havia se apresentado em Recife.

Os lugares eram limitados. 70 pessoas por cada apresentação. A restrição quanto aos espectadores se justificava pela forma como o espaço era ocupado. A área do teatro ocupa o equivalente a um quarteirão. Da bilheteria, que já recebia uma luz vermelha de dois refletores postos ao rés do chão, até o portal de entrada fomos conduzidos por uma das personagens.          

Outros personagens eram encontrados pelo caminho. Eles estabeleciam uma interação. Contavam causos. Um deles vendia proteção, uma fitinha pelo preço de R$ 1. “O lugar aí é carregado”, dizia apontando para o teatro. Desta forma, pequenas ações eram construídas. Era uma espécie de prólogo realizado simultaneamente em pequenas rodas de espectadores que se formavam em torno de alguns personagens. O teatro funciona em um local imenso, às margens do Rio Capibaribe, que detém uma arquitetura ainda dos tempos em que era apenas um armazém que fazia parte do cais.

A iluminação no espaço da entrada do teatro até a caixa cênica era feita apenas por lanternas. Como o lugar era repleto de blocos soltos de concreto, a empreitada foi perigosa. Houve quem caísse, inclusive.  

Apropriação da cultura popular

Até a platéia ser conduzida e acomodada a uma passarela com duas arquibancadas de duas fileiras de frente uma para outra com quatro entradas laterais e mais uma em cada saída, por onde entravam os personagens, as ações se passaram em vários espaços dentro do espaço do teatro. A iluminação variava de acordo com o quadro, aproveitando bem o ambiente e os elementos que a dramaturgia oferecia, a exemplo do caso do negrinho encantado que aparecia embaixo da mesa quando duas mulheres, mãe e filha, preparavam um doce de banana.

À primeira vista a dramaturgia pode parecer limitada a episódios pitorescos nordestinos do século XIX e começo do século XX numa chave repetitiva que buscaria o susto ou o riso. Ocorre que estamos diante de Gilberto Freyre. O grande acerto da direção de Newton Moreno foi problematizar a figura do sociólogo e isso a partir da própria escrita do livro. Freyre era diretor do jornal A Província e encarregou seu repórter policial de investigar casas mal-assombradas e casos famosos.

O figurino é uniforme. Um tom meio pastel que vai, na medida em que o espetáculo caminha, sendo alterado para uma cor alaranjada. Exceção é feita à personagem da jornalista, uma moça com bolsa verde a tiracolo que sai de porta em porta em busca de histórias de assombração. Entre autoritária – ela pede que a dona da casa abaixe o volume da televisão enquanto grava um relato – e deslumbrada, de certo ao tomar contato com esta entidade que se chama “povo”, a personagem põe em cena as relações entre classes. A cultura erudita oficial e escrita, a se apropriar da cultura oral, anônima.

O elenco, quase todo de Pernambuco, soube traduzir com fidelidade aspectos da fala e do gestual nordestino. A montagem não correu o risco de colocar paulistas falseando o sotaque, mas, ao contrário, aproveitou a potencialidade de cada um, inclusive o sotaque paulistano de alguns atores que em conjunto apresentaram uma interpretação de muito vigor físico, chegando a ter um contato muito próximo com a platéia o tempo todo, até no instante em que as apresentações se concentraram na passarela cujas arquibancadas eram muito aproximadas, criando uma visceralidade entre elenco e público.            

Cordel e ditatura

Exceção feita a um quadro em que as falas são ditas em versos de cordel, ao fundo com um trio de forró, e as marcações evocam muito algo de caricaturesco, o que predominou no espetáculo foi um tom de desconstrução do folclórico, dentro do repertório de um imaginário nordestino, tudo isso com uma medida alternância de ritmo: do cômico para o trágico.

Newton Moreno não se esqueceu das implicações históricas, o conflito de classes presente a todo instante. Fez ainda uma reatualização do episódio do fuzilamento de Frei Caneca, revolucionário republicano, pondo-o no contexto histórico dos anos de chumbo. Transformado em mestre de Maracatu, Frei Caneca em seu terreiro fez com que os fantasmas da ditadura baixassem no corpo de uma Nossa Senhora torturada. A atriz estava de cabeça para baixo iluminada por fios de gambiarra e era eletrocutada sempre que dizia o nome de pessoas, uma evocação ao que se fazia na época com a chamada dos desaparecidos políticos em comícios.

Senti falta de uma investigação maior, de um estabelecimento mais atual com os fantasmas do presente e não apenas uma circunscrição no período declaradamente de trevas do Brasil, mas seria interessante uma busca sobre quais são as assombrações que campeiam por uma sociedade cheia de indefinições, de um tempo em que se diz que a história e a arte morreram que as utopias se foram e que tanto a direita quanto a esquerda ainda não reorganizam seus discursos.

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