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Fantasmagorias da realidade
A cena é simples, na verdade, tudo dá a aparência de um cenário artificial. Uma sala de estar com duas paredes, uma ao fundo e outra na lateral direita. O cenário não tem um acabamento tradicional realista, é feito de compensado pintado, sem pretensões ilusionistas, propositadamente sem nenhum tratamento característico de uma cenografia figurativa. Na parede lateral vê-se um pequeno corredor que sugere um cômodo contíguo. O lado esquerdo é vazado para o escuro do fundo do espaço. Um carpete verde e um sofá marrom de dois lugares. A primeira impressão deste conjunto, juntamente com os atores no espaço, é a de que a narrativa humana se estrutura por enredos incompletos. Tudo sugere um desgaste pelo tempo. O que se observa é um desejo de realismo (de um regime estético mimético) insuflado pelo regime da realidade que se mostra como algo que precisa ser construído. A desejada imaterialidade humana de suas histórias está instalada numa região virtual que não está ali visível para o público, que se insinua pela qualidade de um cenário meio inacabado.
O texto externado
Em cartaz no Poeirinha até fevereiro, o espetáculo Mulheres sonharam cavalos dá continuidade à parceria entre a atriz e tradutora Letícia Isnard e o diretor Ivan Sugahara, que em 2011 trouxeram à cena carioca textos contemporâneas de autores argentinos. O primeiro, A estupidez, de Rafael Spregelburd, estreou em abril, com a Cia. Os Dezequilibrados, no CCBB. O segundo é o texto do espetáculo em questão, de Daniel Veronese, encenado por um grupo distinto, que envolve componentes da Cia. e outros atores.
Atitudes diversas diante do clássico
Daniel Veronese demonstra posturas diferentes em relação ao texto clássico nas montagens de Los Hijos se han Dormido e Un Tranvía Llamado Deseo, ambas em cartaz em Buenos Aires. A primeira resulta de uma operação dramatúrgica sobre A gaivota, uma das grandes peças de Anton Tchekhov; a segunda surge no palco como versão cênica destituída de ambições autorais de Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams.
Em Los Hijos se han Dormido, Veronese dá continuidade ao processo de apropriação de peças de Tchekhov, projeto que o público brasileiro já viu materializado através da encenação de Espia uma mulher que se mata, versão para Tio Vânia. Dessa vez, o diretor propõe, como interferência mais evidente, a supressão da cena da apresentação da peça de Treplev, o inconformado filho da diva Arkádina, que apresenta um teatro distante dos padrões instituídos.
Debate teatral a partir de Tchekhov
Anton Tchekhov lançou discussões artísticas – presentes em suas grandes peças, escritas na primeira década do século XX – que permanecem atuais. Talvez a mais evidente possa ser encontrada em A gaivota através do contraponto entre Arkádina e Treplev, mãe e filho que travam uma relação absolutamente passional, ambos defendendo visões de teatro contrastantes – ela uma atriz-diva, símbolo de uma cena atada a convenções, e ele, promissor aspirante a dramaturgo, escrevendo em busca de “novas formas”, norteado pela inquietude. Em Tio Vanya, o acalorado debate artístico também desponta, mesmo que de modo um pouco mais discreto, sinalizando uma das fontes de frustração do personagem-título. Atormentado pelo descompasso entre o que gostaria de ter sido e o que efetivamente se tornou, ele já começa a peça revoltado com o fato de ter passado anos devotado à figura do professor Sérébriakov.