Atitudes diversas diante do clássico

Crítica de Los hijos se han dormido e Un tranvía llamado deseo, dirigidas por Daniel Veronese

28 de julho de 2011 Críticas

Daniel Veronese demonstra posturas diferentes em relação ao texto clássico nas montagens de Los Hijos se han Dormido e Un Tranvía Llamado Deseo, ambas em cartaz em Buenos Aires. A primeira resulta de uma operação dramatúrgica sobre A gaivota, uma das grandes peças de Anton Tchekhov; a segunda surge no palco como versão cênica destituída de ambições autorais de Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams.

Em Los Hijos se han Dormido, Veronese dá continuidade ao processo de apropriação de peças de Tchekhov, projeto que o público brasileiro já viu materializado através da encenação de Espia uma mulher que se mata, versão para Tio Vânia. Dessa vez, o diretor propõe, como interferência mais evidente, a supressão da cena da apresentação da peça de Treplev, o inconformado filho da diva Arkádina, que apresenta um teatro distante dos padrões instituídos.

Trata-se de uma das cenas mais representativas de A gaivota, na qual Treplev evidencia sua adesão, como autor, à plataforma simbolista, em oposição ao teatro representado por Arkádina. Tchekhov trouxe à tona, no final do século XIX (a peça foi concebida em 1895), uma discussão artística então em voga: a oposição entre o teatro realista/naturalista e o simbolista, com o primeiro apostando numa recriação cênica o mais fidedigna possível de uma fatia de vida sobre o palco, e o segundo procurando aproveitar os recursos recém-descobertos da teatralidade sem as amarras da verossimilhança e investindo na imaginação do espectador.

Considerado um dos principais representantes da dramaturgia realista (designação que implica em algum nível de reducionismo), Tchekhov travou discussões com Constantin Stanislavski acerca da determinação deste último em fazer do palco um “ateliê de minúcias” na recriação do real. As discordâncias decorriam não só do debate da época como da proximidade entre ambos – Tchekhov era o autor mais louvado no Teatro de Arte de Moscou (cujo símbolo era uma gaivota), fundado, em 1898, por Stanislavski e Nemirovitch-Dântchenko. Em todo caso, não cabe insistir numa oposição maniqueísta entre os dois movimentos, seja porque o próprio Stanislavski também se dedicou a experiências simbolistas, seja porque havia certas características compartilhadas – como o apreço destinado ao texto.

Tchekhov materializou o embate entre realismo e simbolismo através da relação passional entre Arkádina e Treplev, cada um defendendo uma visão de mundo. Nenhuma das duas parece vencer. Se Arkádina permanece como uma atriz louvada, os primeiros sinais de desgaste de seu teatro começam a ser evidenciados. Se Treplev conquista um ou outro admirador algo tímido para sua plataforma teatral, ainda é cedo para colher reconhecimento pelo que descortina. Nesse sentido, Tchekhov flagra um instante intervalar.

Ao destacar o debate entre naturalismo e simbolismo, Tchekhov lançou um desafio àqueles que se propuserem a montar A gaivota: qual o teatro de Arkádina e qual o de Treplev? A questão, porém, não deve remeter o artista a uma pesquisa historiográfica, mas sim levá-lo a uma atualização de acordo com o momento em que a peça estiver sendo encenada. Talvez a armadilha principal resida no investimento num contraste entre um fazer teatral apegado às convenções mais evidentes e outro, transgressor (mas uma transgressão involuntariamente apoiada em clichês de experimentação).

Daniel Veronese escapa dos riscos ao suprimir a cena, sugerindo ao público que imagine o teatro de Treplev a partir dos comentários dos personagens tecidos logo após a apresentação. Mas o diretor não investe numa recriação convencional dos personagens de A gaivota. Arkádina surge em cena lembrando pouco da figura da diva incensada, do mesmo modo que Treplev não desponta segundo a tradicional imagem do jovem em trajes de farrapos.

A autoria de Veronese se dá, sobretudo, na cena, o que torna um pouco questionável o fato de assinar o texto, mesmo que realize operações, algumas sutis, sobre o material original. Na transposição para o palco, o diretor tangencia o realismo sem se fixar nele. Não por acaso, o espaço delimitado para a ação, que avança sobre a plateia sugerindo claramente a sala de uma casa, não só não reproduz a atmosfera aristocrática do que seria de se esperar da propriedade de Arkádina como se impõe como um ambiente neutro. Mas é na condução dos atores – em particular, na habilidade em ocultar a construção da interpretação – que Veronese comprova a força de seu trabalho. Uma qualidade que também pode ser detectada na montagem de Un Tranvía Llamado Deseo.

Ao se debruçar sobre a peça de Tennessee Williams, Daniel Veronese se propôs a “tão-somente” transportar para o palco as qualidades do texto original através de uma montagem que reproduzisse com fidelidade a atmosfera evocada pelo autor e a célebre galeria de personagens encarnada por um competente núcleo de atores. Não há, no caso de Um bonde chamado desejo, uma disposição em realizar operações sobre o material. Diferentemente do que fez com A gaivota, aqui o diretor não produz uma fala específica em relação à peça escolhida. Esta decisão não é, claro, um defeito; no máximo, uma limitação.

O espectador não encontra uma nova leitura de Um bonde chamado desejo, mas aquela propagada ao longo do tempo. Também filiado à vertente realista, mas portador de características diversas das de Tchekhov, Tennessee Williams colocou em foco personagens inseridos no ambiente de discrepâncias sociais e preconceitos em vigor no sul dos Estados Unidos, na primeira metade do século XX, muitos incapazes de lidar com a crueza da realidade.

É o caso de Laura, munida de seus bichinhos de cristal em À margem da vida; e de Blanche Dubois, protagonista de Um bonde chamado desejo, que cria um mundo de ilusão onde passa a habitar depois de assistir à derrocada financeira da família e vivenciar um fato traumático. “Não digo a verdade – digo o que deveria ser a verdade”, sintetiza Blanche. O explosivo encontro com o rude Stanley, marido da irmã, Stella, fragiliza Blanche e a impede de preservar a redoma protetora que construiu.

A exposição da cenografia desde a entrada do público funciona como uma espécie de carta de intenções da encenação, que reconstitui, com riqueza de detalhes, o universo sócio-econômico dos personagens. Está lá a casa de Stanley e Stella, onde se desenrola a ação, moradia popular com poucas divisórias que garantam privacidade. Um espaço propício para a escalada da tensão sexual entre Stanley e a recém-chegada Blanche. Personagens de perfis bem definidos no texto que já ganharam interpretações emblemáticas no cinema, a cargo de Marlon Brando e Vivien Leigh em Uma rua chamada pecado, filme de 1951, de Elia Kazan, que, poucos anos antes, estreou encenação na Broadway, com Brando e Jessica Tandy.

Daniel Schenker é doutorando em Artes Cênicas pela UniRio e crítico de teatro do Jornal do Commercio e da revista Isto É/Gente.

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